Nascimentos mais gentis
Paulistanas terão direito a parto humanizado no SUS, graças a lei elaborada pela CMSP
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Nascimento gentil é como os falantes de língua inglesa denominam o parto humanizado. A ideia pode ser traduzida pelo carinho e pela serenidade da auxiliar de enfermagem Marlene, que delicadamente trançava os cabelos da gestante Priscila Ortega, jornalista, enquanto esperava a dilatação aumentar. Marlene saía da sala de vez em quando e, na volta, trazia lanchinhos e chá de cravo-da-índia para Priscila. Ao longo de sete horas madrugada adentro, a enfermeira Maria segurou a mão de Priscila e disse que ela não precisava ter medo, que conseguiria ter seu bebê como queria: por parto normal e sem medicamentos ou anestesia.
Finalmente, às 4 horas da manhã, Marlene, Maria e outra assistente trouxeram ao mundo o forte Isaac, que em hebraico significa sorriso. O pai cortou o cordão umbilical e acompanhou o primeiro banho. “Não acreditei no amor com que elas me trataram. Me senti em outro mundo. Foi a experiência mais incrível da minha vida”, diz Priscila, que teve seu filho na Casa de Parto de Sapopemba, um Centro de Parto Normal (CPN) público municipal. Nesse local, o parto é um evento natural, que respeita o tempo do bebê, sem intervenção médica. O procedimento é destinado aos casos de baixo risco, com possibilidade de acesso ao hospital se houver alguma complicação.
O relato é um ideal de perfeição e lembra os clichês das telenovelas, em que as mães aparecem sorrindo ao ter seus bebês. Mas o momento também pode ficar marcado pelos traumas. De maio a novembro de 2013, a advogada Priscila Cavalcanti, especializada em direitos reprodutivos e sexuais da mulher, atendeu 30 mulheres que foram vítimas de violência obstétrica: “Elas chegam até mim reclamando de maus tratos verbais, de exposição de seus corpos sem consentimento, de procedimentos invasivos e dolorosos sem anuência, de intervenções sem justificativa médica”. Segundo ela, as mulheres ainda reclamam que os serviços não permitem a entrada do acompanhante, às vezes em nenhum momento do trabalho de parto, “por inacreditável que pareça”. As clientes chegam abaladas, com raiva, tristes, algumas em tratamento por depressão, segundo a advogada. “Elas choram nas reuniões comigo, contam detalhes que as marcaram e relatam muitas dificuldades em retomar a vida normal.”
Luciana Lima, que trabalha como secretária, é uma das clientes que está movendo ação por danos morais contra o hospital que a atendeu. Em busca de um parto normal humanizado, com respeito ao tempo do bebê, procurou um CPN particular. Com 39 semanas de gravidez, na instituição escolhida, começou seu pesadelo. Sem questionar a gestante, uma obstetriz induziu o trabalho de parto precocemente e propositalmente, durante o exame de toque.
Após quase 15 horas de contrações, sentindo-se esgotada e insegura, Luciana pediu para ser transferida a um hospital conveniado ao Sistema Único de Saúde (SUS). Ao chegar, presenciou uma discussão entre a equipe que a levava e profissionais da instituição receptora, que não teria sido avisada sobre a transferência. Com fortes dores, saiu da ambulância a pé, esperou a briga terminar e, finalmente, foi admitida. “Na sala de triagem, ao vocalizar minha dor pelas contrações, a enfermeira me mandava calar a boca, dizia: ‘Você não fala nada aqui! Fica quieta!’”. Após um exame de toque “superdoloroso”, a profissional disse que havia dilatação suficiente para o parto normal. Mesmo assim, ameaçou buscar o fórceps. Luciana se desesperou, e a enfermeira reagiu com riso e deboche.
Transferida para a sala de pré-parto, a gestante percebeu que ficaria sem acompanhante. O marido, que assinava a papelada na recepção, foi proibido de entrar. Ainda lhe injetaram o hormônio ocitocina sintético, que acelera o trabalho de parto e costuma gerar dor intensa. “Fecharam o biombo e me deixaram lá, sozinha. Minha barriga endureceu, eu não conseguia parar de fazer força, pedia ajuda, meu queixo batia de tanto medo, a sensação de que o menino estava nascendo e que eu poderia morrer”, disse. Num grito, nasceu Thomas. E assim terminou o sonho de um parto romantizado. A enfermeira veio com uma bronca por Luciana não ter contido a expulsão, dizendo que a paciente tinha culpa por ter ficado “estragada”. Na opinião da mãe, entretanto, algumas das lacerações que sofreu devem-se às induções artificiais e à falta de assistência.
Frustrada, Luciana quis sair do hospital, mas os profissionais riram dela. O marido, quando foi apresenado à criança na sala de espera, chorou enfurecido, porque entendia ser seu direito ter acompanhado o parto. “Nos dois dias que passei naquele hospital, entre a admissão e a alta, fiquei totalmente acuada, sofri maus tratos, senti a repulsa e a rejeição dos profissionais”, diz a mãe de Thomas.
Histórias dramáticas como as vividas por Luciana são presenciadas frequentemente pela parteira tradicional Jéssica Nunes. Ela conta que, quando as parturientes assistidas por ela não têm sucesso na tentativa de dar à luz no lar ou em casa de parto e precisam ser levadas a hospitais, são recebidas com “violência verbal”: “Dizem atrocidades, tiram da mulher o direito da escolha”.
Boas memórias
ALEGRIA – Vereadora Patrícia Bezerra, que criou a lei do parto humanizado: “A mulher não pode ter trauma num momento tão especial”
Ricardo Rocha/CMSP
A Lei 15.894/2013, sancionada em novembro e à espera da regulamentação do Executivo para vigorar, quer garantir que mais mulheres tenham um parto humanizado e com boas recordações. O texto, da vereadora Patrícia Bezerra (PSDB), diz que toda gestante tem o direito à assistência humanizada durante o parto na rede de saúde pública do Município de São Paulo, integrante do SUS. “Você não pode ter um trauma num momento tão especial, ainda mais para a gestante que precisa do SUS. Na hora do parto, a mulher tem o direito de chorar apenas de alegria”, afirma à Apartes, A parlamentar elaborou a proposta inspirada no trabalho da médica obstetra Márcia Aquino, diretora da divisão médica do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, instituição pública estadual de referência que realiza em média 550 partos por mês – sendo 370 deles normais.
A lei aprovada na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) garante que a gestante possa receber informação e escolher os procedimentos que lhe tragam maior segurança, conforto e bem-estar, incluindo o alívio da dor por anestesia, medicamentos ou métodos alternativos, como massagens e banhos de água morna. O médico deve interferir o mínimo possível no parto e só poderá restringir as escolhas em caso de risco à saúde da gestante ou do bebê. Deve haver preferência por métodos mais naturais e menos invasivos.
A gestante também terá o direito de elaborar um Plano Individual de Parto, no qual ela indicará: o estabelecimento e a equipe que escolheu para fazer o pré-natal e o parto; as rotinas e os procedimentos de parto; se terá um acompanhante nas duas últimas consultas e no parto; se usará métodos não farmacológicos para alívio da dor (massagem e banho de água morna) ou anestesia e o modo como prefere que sejam medidos os batimentos cardíacos do feto (interna ou externamente).
Patrícia Bezerra diz que o direito de uso da anestesia é um avanço, porque a disponibilização desse recurso na rede pública não é usual, bem como os métodos alternativos contra a dor. Do mesmo modo, a presença de um acompanhante já é um direito previsto em lei federal, mas descumprido em 65% dos casos, segundo a vereadora. “A lei vem para dizer que agora não tem mais brincadeira. Tem que ter acompanhante e acabou”, diz a parlamentar. A médica Márcia Aquino explica que a presença de uma pessoa que tranquilize a parturiente aumenta até as taxas de parto vaginal, também chamado normal, que permite uma recuperação mais rápida à mãe, entre outras vantagens.
Outra previsão da lei é garantir que a mulher tenha liberdade de movimento durante o trabalho de parto. “Não precisa ficar deitada, pode andar. É bom porque, ao sentir menos dor, ela pode cooperar no processo de parto vaginal.” A legislação determina que será favorecido o contato precoce entre mãe e recém-nascido, e que é necessário preservá-lo da queda de temperatura.
O documento ainda coíbe práticas rotineiras nos partos, como lavagem intestinal, aceleração da dilatação com ocitocina, recomendação de esforços de puxo prolongado, ruptura artificial da bolsa e corte entre a vagina e o ânus (episiotomia) para facilitar o parto. Por levarem a sofrimento, constrangimento, lacerações e cirurgia cesariana desnecessários, com a lei o uso desses métodos ficará sujeito a justificação. “Racionalmente, eu sei que não é pra fazer a episiotomia. Mas a minha mão vai sozinha”, disse uma médica em entrevista para uma tese de doutorado apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) por Carmen Simone Grilo Diniz. Outro médico disse à doutoranda que profissionais forçam a cesariana por meio da ocitocina: “Tem colega que diz que vai fazer um parto normal, que é a favor, concorda em ir para aquelas salas bonitas de parto normal que tem nos hospitais caros. Mas quando chega lá, bota um soro bem firme na paciente e diz: ‘aposto que da segunda dor já vai sair pedindo cesárea’. E o pior é que saem contando isso como vantagem”.
Arquivo Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros
Para a médica Márcia Aquino, a lei deve enfrentar resistência nas unidades de saúde: “Vamos encontrar aquele pessoal do ‘por que preciso fazer diferente do que sempre fiz?’ Vamos precisar de boa vontade, de profissionais multidisciplinares, de capacitação permanente, atualização dos conhecimentos médicos, de os postos estarem em contato com as maternidades e de boa vontade política”. A obstetra, no entanto, acredita ser possível humanizar os partos, já que a mentalidade começa a mudar entre seus pares. A vereadora Patrícia Bezerra está otimista. Idealiza que seu projeto estimulará o aumento de partos normais e será repetido em outras cidades: “Tudo o que se faz em São Paulo é replicado em um monte de lugares nesse País. Então acho que demos um passo enorme”.
Entrevista – Vereadora Juliana Cardoso
“O ambiente de uma casa de parto é acolhedor”
Entre as propostas da CMSP para garantir melhores condições às gestantes e aos recém-nascidos, a vereadora Juliana Cardoso (PT) elaborou o Projeto de Lei 542/2009, que dá respaldo legal para o Município ter mais Centros de Parto Normal (CPNs), inclusive por meio de convênios com unidades particulares. O texto pede a observância de alguns critérios nessas casas, dedicadas ao parto vaginal (normal) humanizado para gestantes de baixo risco: permitir a presença de acompanhante, garantir a assistência quando não houver riscos à mãe e ao bebê, respeitar a individualidade da parturiente e disponibilizar remoção emergencial a hospitais de referência em eventuais situações de risco. Atualmente, existe apenas um CPN público na cidade, a Casa de Parto de Sapopemba.
Juliana, que estava no fim da gestação quando foi entrevistada pela reportagem da Apartes, em dezembro, também idealizou a lei do Programa Mãe Canguru (14.966/2009), para estimular o contato pele-a-pele entre mãe e bebê prematuro ou de baixo peso. Com isso, a criança gasta menos energia para manter a temperatura ideal, em 37ºC, e ganha peso mais rápido. Outras vantagens são a estimulação sensorial e a criação de laços afetivos.
Do que trata o projeto do Centro de Parto Normal?
Juliana Cardoso – Ele motiva o SUS a ter mais casas de parto fora do complexo hospitalar, porque dentro dos hospitais não se estimula o parto normal humanizado, em que a mulher sente seu corpo e tem mais benefícios do que se fizesse a cesariana, uma cirurgia com dificuldades de recuperação.
Hoje, a legislação não dá respaldo municipal para que casas de parto particulares ingressem na rede pública de saúde por meio de convênio. O projeto de lei vai possibilitar isso.
Algumas parturientes transferidas a hospitais citam preconceito por terem tentado antes uma casa de parto.
Não é possível ter tanto preconceito! O ambiente de uma casa de parto é acolhedor e aconchegante. Isso é muito importante, principalmente para as mães de primeira viagem, que têm muita dúvida, medo… Os médicos geralmente não dialogam e você tem que pesquisar por fora, mas na casa de parto não. Tem todo o acolhimento das obstetrizes, toda uma equipe para sanar suas dúvidas, dar atenção e carinho, o que é muito diferente de hospital.
Na primeira gravidez, tive minha filha por convênio e não tinha muita informação. Quando cheguei ao hospital, os profissionais não conversavam comigo. Eles te levam para uma sala, o médico te apavora para que você não tenha parto normal, diz que o nenê fez as fezes na barriga… E apavora a família também. Ele sai e diz: “A mãe não quer fazer a cesárea e está acontecendo uma complicação”. A família então apoia a cesariana, porque supostamente médico é médico, ele é quem sabe. Depois descobri que o que eliminei foi o tampão (secreção que bloqueia o colo do útero) e que, a partir disso, você ainda tem tempo para romper a bolsa.
Há espaço para a cesárea, mas também para o parto humanizado, natural (normal que dispensa medicação), sem o preconceito que já vem desde a faculdade de Medicina. A classe médica sempre alega que é perigoso ter parto normal. Mas, no fundo, tem a questão financeira, porque em uma cesariana é necessária toda uma equipe de profissionais, como o anestesista. E na casa de parto humanizado, não. O parto é o mais natural possível.
Deve haver algum cuidado especial ao se decidir por uma casa de parto?
É importantíssimo fazer um plano de parto, além de um acompanhamento bem antes para saber se está tudo certinho, já que não é um local anexo ao hospital. Fica a uma certa distância, permitida pelo Ministério da Saúde. Quando há complicações, ambulâncias removem a mãe ao hospital. Todo o trabalho pré-natal é feito para que a mãe tenha a segurança de ter seu filho na casa de parto.
Qual o objetivo do Programa Mãe Canguru?
Os prematuros acabam indo para a incubadora, que é uma máquina. Quero reforçar a questão de ter o bebê mais perto da mãe, sentindo seu calor e seu carinho. As estatísticas mostram que os bebês tratados nesse projeto saem muito mais cedo da UTI (Unidade de Terapia Intensiva) neonatal, em comparação aos que ficam só na incubadora.
As práticas que a lei quer
• Liberdade de movimento à parturiente
• Alívio da dor também por meios alternativos
• Alimentação (leve) da mulher em trabalho de parto
• Contato físico precoce entre mãe e recém-nascido
Os profissionais do parto humanizado
Doula: Dá suporte físico e emocional à mulher
Parteira: Traz o bebê ao mundo baseada no saber tradicional
Obstetriz e enfermeiro obstetra: Com funções semelhantes e curso universitário em Obstetrícia ou Enfermagem, com especialização em Obstetrícia
Médico obstetra humanizado: Respeita o ritmo da natureza, o corpo da mulher e suas escolhas
Médico anestesista: Aplica medicamentos para reduzir a dor ou anestesiar quando preciso
SAIBA MAIS
Tese de doutorado
Entre a técnica e os direitos humanos: possibilidades e limites da humanização da assistência
ao parto.. Carmen Simone Grilo Diniz. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 2001. Disponível na internet.
Livro
Parto com Amor. Luciana Benatti e Marcelo Min. Panda Books.