Nº05 – História

Emboscada para JK

Investigação da Comissão da Verdade conclui que ex-presidente Juscelino Kubitschek foi assassinado pela ditadura

Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br

“Aquele é o homem que matou Juscelino Kubitschek.” Ao longo de anos e em diferentes lugares, o motorista de ônibus aposentado Josias Nunes de Oliveira se cansou de ver as pessoas apontarem para ele e fazerem esse comentário. “Aquilo me cortava por dentro”, contou em depoimento à Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, da Câmara Municipal de São Paulo, em 1º de outubro do ano passado. “Fui acusado, fui humilhado, fui desfeito por isso”, relatou.

No mesmo depoimento, Josias disse ter sido procurado por dois desconhecidos, dias após a morte do ex-presidente, que lhe ofereceram uma mala cheia de dinheiro para assumir a responsabilidade pela morte de Juscelino. “Se eu dissesse que era o culpado pelo acidente, aquele dinheiro seria todo meu”, afirmou. Ele recusou o dinheiro e passou os anos seguintes se dizendo inocente.

POLÍTICO – Kubitschek participa de inauguração da Rede Mineira de Viação, em Belo Horizonte

Acervo Arquivo Público Mineiro

Mesmo assim, Josias não escapou de entrar para a história como o motorista do ônibus da Viação Cometa que, em 22 de agosto de 1976, chocou-se contra o Opala marfim onde estavam Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil entre 1956 e 1961, e seu motorista, Geraldo Ribeiro, na Rodovia Presidente Dutra, em Resende (RJ). O Opala dirigido por Geraldo teria feito uma ultrapassagem indevida do Cometa pela direita, na altura do atual km 331 da Dutra. Atingido pelo ônibus na traseira, o Opala perdeu o controle e invadiu a pista oposta na contramão, onde bateu numa carreta que ia para São Paulo. Ex-presidente e motorista morreram na estrada.

Pelo menos, era assim que Josias aparecia na história escrita até agora. Um relatório da Comissão Municipal da Verdade, divulgado em 9 de dezembro do ano passado, pretende mudar o enredo da história oficial. Após nove meses de investigação, analisando documentos e ouvindo dezenas de especialistas e testemunhas, a comissão concluiu que JK e seu motorista foram assassinados, vítimas de “conspiração, complô e atentado político”.

Opositores eliminados

“Nós estamos pedindo que o Brasil declare que Juscelino morreu de morte matada, e não de morte morrida. Não foi acidente. Foi um atentado”, afirmou o vereador Gilberto Natalini (PV), presidente da Comissão, no lançamento do Relatório JK, em 10 de dezembro. Ele assina o documento ao lado da vice-presidente da Comissão, Juliana Cardoso (PT), do relator Mario Covas Neto (PSDB) e dos demais membros: José Police Neto (PSD), Laércio Benko (PHS), Ricardo Young (PPS) e Rubens Calvo (PMDB).

TESTEMUNHA – Josias, motorista de ônibus, e vereador Natalini em sessão da Comissão da Verdade

Gute Garbelotto/CMSP

Enviado aos presidentes da República, do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e da Comissão Nacional da Verdade, o relatório reúne 90 “indícios, evidências, provas, testemunhos, circunstâncias, contradições, controvérsias e questionamentos” que apontam para a tese de homicídio.

O texto afirma que o regime militar decidiu eliminar Juscelino por temer as articulações que ele vinha fazendo para se lançar candidato nas eleições indiretas para presidente da República, em 1978, e sugere que a morte de JK faria parte de uma investida do governo para eliminar os principais opositores do regime naquela época.

“Em período de 272 dias, perderam as vidas, em condições suspeitas, três das maiores lideranças de oposição ao regime militar no Brasil”, afirma o relatório. Depois de Juscelino, morreram o presidente deposto João Goulart, em 6 de dezembro de 1976, e o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda, em 21 de maio de 1977. O relato da Comissão Municipal da Verdade sugere que as mortes podem estar relacionadas à Operação Condor, uma articulação entre as ditaduras militares do Chile, da Argentina, do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia e do Brasil criada para trocar informações e eliminar desafetos.

Versões e batidas

A conclusão de que JK e Geraldo morreram num acidente automobilístico foi registrada no inquérito policial de 1976 e reafirmada em outras duas investigações posteriores: uma reabertura do caso conduzida pela polícia em 1996, que exumou o corpo de Geraldo Ribeiro, e o trabalho de uma comissão externa constituída na Câmara dos Deputados em 2001. Contrariando as três investigações anteriores, o Relatório JK sustenta que o motorista de Juscelino perdeu o controle após ser atingido por um tiro na cabeça.

Josias, que dirigia o ônibus Cometa, disse à Comissão que a batida contra o automóvel de JK nunca ocorreu. Segundo ele, o Opala seguia dentro do limite permitido para a rodovia na época, de
80 km/h, e, aparentemente sem motivo, “saiu para a esquerda” numa curva que “era para a direita”. Todos os nove passageiros do ônibus ouvidos no processo contra Josias também confirmaram não ter havido batida. O motorista, que continuou a trabalhar na Cometa anos após o suposto acidente, foi absolvido duas vezes na Justiça das acusações pelas mortes de JK e Geraldo.

Outro testemunho reforçou a hipótese de Geraldo ter sido baleado. O motorista aposentado Ademar Jahn contou aos vereadores que viu o Opala quando seguia pela contramão, no sentido Rio-São Paulo, instantes antes do choque com a carreta. “Ele afirmou ter visto o motorista do Opala debruçado, com a cabeça caída entre o volante e a porta do automóvel, não restando dúvida, de acordo com Jahn, de que o condutor se encontrava desacordado”, afirma o relatório.

O Relatório JK acusa a perícia realizada em 1976, pelo Instituto Carlos Éboli, do Rio de Janeiro, de substituir as fotos originais da traseira intacta do Opala por outras que mostravam a mesma traseira com sinais de batida. “Para esta Comissão da Verdade, a perícia oficial foi deliberadamente fraudada com o intuito de apontar um responsável pelo ‘acidente’”, afirma.

“Conto da Carochinha”

Os vereadores também criticam a reabertura do caso, realizada em 1996, a pedido do ex-secretário particular de Juscelino, Serafim Jardim. Segundo eles, a perícia nos destroços do Opala, que concluiu não haver sinais de ação criminosa no automóvel, foi feita em um carro que tinha um número de motor diferente daquele que aparece no título de propriedade de Geraldo – ou seja, periciaram o carro errado. “Para Serafim Jardim, a análise foi propositadamente efetuada em outro carro, para impedir eventual resultado positivo”, diz o texto.

O perito criminal Alberto Carlos de Minas, que acompanhou a exumação de Geraldo em 1996, contou à Comissão que viu um furo no crânio do motorista, mas policiais o teriam impedido de fotografá-lo. Divulgado semanas depois, o laudo da exumação afirmou que o crânio estava esfarelado, a ponto de tornar impossível detectar um eventual buraco de bala.

A exumação encontrou um pedaço de metal, de dois milímetros, no crânio de Geraldo. O Instituto Médico Legal de Minas Gerais concluiu que o objeto era um pedaço do prego do caixão – conclusão repudiada pelos vereadores paulistanos. “Onde é que um prego de caixão vai entrar no crânio de um cadáver? Isso é conto da carochinha. Não sei como o País pode ter acreditado nisso. Achamos que aquilo era um projétil”, diz Natalini. Para tirar as dúvidas, a Comissão pediu ao governo mineiro uma nova exumação de Geraldo.

O Relatório JK faz parte de uma série de iniciativas das Comissões da Verdade para reescrever a história vivida pelos brasileiros sob o autoritarismo. Uma dessas ações foi a devolução simbólica do mandato de 42 vereadores, injustamente cassados entre 1937 e 1969, realizada pela Câmara Municipal de São Paulo no ano passado. Também em 2013, a família do jornalista Vladimir Herzog, morto pela ditadura em 1975, conseguiu alterar a causa da morte no seu atestado de óbito, de enforcamento para tortura. Uma nova tentativa de reescrita da história foi a exumação de João Goulart, em novembro, que busca verificar a hipótese de o presidente deposto ter sido morto por envenenamento, e não por ataque cardíaco, como disseram as autoridades da época. O que somente os próximos anos poderão revelar é qual será o lugar da morte de JK – e do Relatório JK – nessa história toda.

A trajetória de Juscelino Kubitschek

PRESIDENTE – Juscelino governou o Brasil entre 1956 e 1961

Portal do Palácio do Planalto

12/9/1902 – Nasce em Diamantina (MG)

1927 – Forma-se em Medicina

1932 – Atua no corpo médico na Revolução Constitucionalista

1934 – Eleito deputado federal

1940 – Nomeado prefeito de Belo Horizonte

1945 – Eleito deputado federal

1950 – Eleito governador de Minas Gerais

1955 – Eleito presidente

1960 – Inaugura Brasília

1961 – Eleito senador por Goiás

1964 – Ditadura cassa seu mandato

9/8/1976 – Morre em Resende (RJ)

Fonte: Memorial JK – www.memorialjk.com.br

Operação Condor teve ações de seis governos

RAPINA – Charge de Carlos Latuff para o site Brasil 247

Carlos Latuff

Nos anos 70, seis ditaduras sul-americanas uniram esforços para levar a repressão política além de qualquer fronteira. Com o objetivo de vigiar, perseguir e matar qualquer opositor onde quer que estivesse, os governos de Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai criaram a Operação Condor, que integrou as práticas de terrorismo de Estado realizadas pelas cúpulas militares daqueles governos. Segundo a Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, a operação pode estar por trás da morte de Juscelino Kubitschek.

A Condor foi formalizada em 1975, em reunião realizada na Academia de Guerra do Exército, em Santiago (Chile), com representantes dos seis países. De forma embrionária, contudo, ações conjuntas entre as ditaduras já vinham ocorrendo pelo menos desde 1970, quando autoridades argentinas prenderam e torturaram o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório a pedido dos militares brasileiros. A Operação Condor desconhecia fronteiras: além de atacar adversários políticos na América do Sul, praticou atentados na Europa e nos EUA.

O Relatório JK menciona uma carta enviada pelo coronel Manuel Contreras Sepulveda, diretor do serviço secreto chileno e um dos principais nomes da Operação Condor, ao general João Batista Figueiredo, então comandante do Serviço Nacional de Informações (SNI) e futuro presidente do Brasil, em 28 de agosto de 1975. Na carta, o militar chileno alerta para o apoio que políticos do Partido Democrata norte-americano estariam oferecendo a dois inimigos das ditaduras latinas: o ex-ministro das Relações Exteriores do Chile Orlando Letelier e o ex-presidente brasileiro Juscelino Kubitschek. A mensagem deixa claro que as forças de repressão do Brasil já haviam traçado um plano para combater os dois adversários, e que contariam com o apoio dos colegas chilenos nessa tarefa. “O plano proposto por você para coordenar nossa ação contra certas autoridades eclesiásticas e conhecidos políticos social-democratas e democrata-cristãos da América Latina e Europa conta com nosso decidido apoio”, afirmou Contreras a Figueiredo.

Os dois nomes mencionados na carta tiveram mortes violentas. Em 21 de setembro de 1976, Letelier foi morto em um atentado a bomba ocorrido em Washington (EUA) – um crime pelo qual o general Contreras, em 1993, acabaria preso e condenado. Cerca de um mês antes do atentado contra Letelier, Juscelino e seu motorista haviam morrido na Dutra.

Peritos e parentes contestam relatório

A tese de que Juscelino Kubitschek foi assassinado, defendida pela Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, recebeu críticas de parte dos profissionais que investigaram anteriormente o caso e de parentes das vítimas.

Uma das críticas partiu do perito Sérgio de Souza Leite, um dos responsáveis pelo laudo de 1976. “Meu trabalho é incontestável porque foi empregada a técnica produzida pela Academia de Patrulha Rodoviária da Califórnia. O laudo já foi estudado por criminalistas do mundo inteiro, sem nunca ter havido críticas”, afirmou ao jornal O Globo.

Em artigo publicado no mesmo jornal, Gil Castelo Branco, filho do falecido perito Francisco Gil Castello Branco, disse que seu pai “conduziu com extrema competência as investigações”, a ponto de ser elogiado pela viúva de JK, Sara Kubitschek. “Limitando-se a ouvir surradas e infundadas ilações dos mesmos denunciantes e sem qualquer laudo ou estudo que possa comprovar o mirabolante assassinato, a comissão de vereadores perdeu o rumo”, afirmou.

Filha do motorista de JK, Geraldo Ribeiro, a advogada Maria de Lourdes Ribeiro também contesta a tese de homicídio, que considera “primária”. Em entrevista à revista IstoÉ, afirmou: “Meu pai não levou um tiro”.

O ex-deputado federal Paulo Octávio, marido da neta de JK, Ana Cristina Kubitschek, criador da comissão que em 2001 investigou a morte de Juscelino e reafirmou a tese de acidente, disse ao jornal Correio Braziliense que mantém a mesma convicção. “Ninguém provoca um acidente cronometrado. JK morreu por frações de segundos. Se o carro que ele estava cruzasse a pista um segundo depois, o caminhão não teria batido.”

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Laudo mostra pedaço de metal achado no crânio do motorista de JK
Traseira do Opala de JK logo depois do acidente, intacta, e no pátio da delegacia, avariada