Um juiz bom de mira
Apaixonado por política, aviões e armas, Bierrenbach julgou um militar acusado de matar duas vezes o mesmo homem
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
No sétimo andar do Conjunto Nacional, um dos prédios mais famosos da Avenida Paulista, e no meio de toda a agitação política e cultural de São Paulo, o advogado Flavio Bierrenbach, cercado por livros sobre armas, Direito e aviação, analisa a vida política do País. Conhecimento e experiência para isso ele tem de sobra. Aos 77 anos, já foi vereador, deputado estadual e federal e ministro do Superior Tribunal Militar (STM). De todos os parlamentos onde esteve, garante que o preferido foi a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP): “ser vereador contava, valia pena”.
A ideia de ingressar no Parlamento municipal surgiu em 1975. Bierrenbach havia passado em um concurso e se tornara procurador do Estado de São Paulo. Enquanto participava de um Congresso da Federação Interamericana de Advogados na cidade de Cartagena das Índias (Colômbia), refletiu que, embora estivesse bem no aspecto físico e no financeiro, sentia-se profundamente infeliz por conta da ditadura. Assim, tomou a decisão de ser candidato a vereador nas eleições do ano seguinte.
A campanha começou com a compra de um caderno para anotar, durante meses, o nome de todas as pessoas que conhecia. “Fui falando com um e com outro para dizer que era candidato”, recorda-se. Com 33.816 votos, conseguiu a 21ª e última vaga para a Câmara Municipal paulistana. Poucos meses depois de tomar posse, contudo, foi escolhido por unanimidade para liderar a bancada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição ao governo militar.
Da época de vereador, Bierrenbach lembra-se de um episódio em que, às três horas da madrugada, foi acordado com um telefonema de um cidadão informando que o irmão, um funcionário público, tinha enfartado e não estava conseguindo vaga num hospital municipal no bairro Liberdade. “Achei aquilo um absurdo e respondi: em 30 minutos estarei aí”. O político ligou, então, para o líder do governo na CMSP, vereador Antonio Sampaio, e solicitou que também fosse ao hospital. “Ele não foi, mas resolveu a questão e o funcionário foi internado”, conta.
Um de seus projetos foi marcante na história da Câmara. Em 1978, durante a ditadura militar (1964-1985), três anos após o assassinato sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, Bierrenbach propôs que a Rua 4, no bairro Lapa (onde fica a TV Cultura, local de trabalho da vítima), passasse a levar o nome de Herzog. A CMSP aprovou a proposta, mas o prefeito Olavo Setubal, da Aliança Renovadora Nacional (Arena) – partido de apoio ao governo militar –, vetou a homenagem.
Em uma atitude rara, a CMSP derrubou o veto do prefeito graças a dois terços dos vereadores, que eram do MDB. “O difícil era botar os 14 no Plenário, mas eu sabia pressionar a minha bancada. Avisei pra eles: quem não for vai ficar marcado na minha lista”, relembra. O próprio Bierrenbach mandou fazer a placa e foi inaugurar a rua. A viúva, Clarice Herzog, políticos e dezenas de amigos do jornalista compareceram à inauguração.
Na Câmara, tomou outra atitude de oposição ao governo militar: em 1977, propôs que o arcebispo de São Paulo, cardeal dom Paulo Evaristo Arns, um dos principais críticos à ditadura, recebesse o Título de Cidadão Paulistano. A ideia foi aceita e, numa sessão solene no ano seguinte, dom Paulo foi ao Palácio Anchieta receber a homenagem. “O Poder Legislativo, esvaziado pelo autoritarismo do momento, reencontra sua plena dignidade”, afirmou o vereador no discurso de recepção ao homenageado.
Dom Paulo agradeceu lendo um poema de sua autoria, Oração pelo título de cidadania: “Para cá vieram tantos povos de origem diversa, com a disposição de somar e multiplicar, para podermos dividir entre todos a renda que nasce do esforço de todos e os ideais que aceitam como denominador comum o Evangelho da justiça e do trabalho para todos”.
Apesar da oposição que fazia a Setubal, Bierrenbach diz que o respeitava. “Era um bom prefeito e jamais tentou me comprar”, declara. Ele faz questão de frisar que nunca foi ao gabinete do chefe do Executivo. “O que eu tinha de dizer, dizia da Tribuna ou falava com o líder do governo na CMSP, o vereador Antonio Sampaio”. Instantes depois, ele se corrige: “só teve uma vez em que estive no gabinete do prefeito, em 1978, quando fui me despedir de Setubal, pois estava indo para a Assembleia Legislativa”.
Paixão por aviões
Flavio Flores da Cunha Bierrenbach nasceu em 25 de outubro de 1939 e passou a infância em várias cidades, acompanhando o pai, Flavio de Sá Bierrenbach, um engenheiro do Exército que trabalhou no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em Praia Grande (SP). No litoral paulista, viveu na Fortaleza de Itaipu. “Fui alfabetizado lá, numa classe onde havia soldados de 18 anos que estavam servindo o Exército”, recorda-se.
Da infância, também se lembra das férias passadas na casa do avô paterno, o engenheiro e professor de ensino médio Júlio Bierrenbach Lima, em Sorocaba (SP). “Era quase uma chácara no centro”, diz. Pelo lado materno, Flavio é neto do general José Antônio Flores da Cunha, ex-governador do Rio Grande do Sul e ex-presidente da Câmara dos Deputados, que hoje dá nome a um município gaúcho. “Meus dois avôs me influenciaram muito”, conta o político.
Desde criança, Bierrenbach demonstrava interesse por duas paixões que o acompanhariam por toda a vida: as armas e os aviões. Conta, orgulhoso, que seu pai era um exímio atirador e que aos 10 anos ganhou de aniversário uma espingarda. “Rapidamente, passei a atirar melhor do que meu pai”, diz. “Mas só em arma longa”, ressalta. Em arma curta, o engenheiro sempre foi melhor. “Tenho medalhas, troféus e me tornei instrutor de tiro”, relembra. O apreço faz com que o político não esconda sua oposição à lei federal do Estatuto do Desarmamento, que em 2003 restringiu a posse de armas de fogo: “é imprestável, prejudicial ao País”.
Uma paixão mais antiga é a aviação. “Gosto desde criancinha”, conta. Quando tinha uns 10 anos, com um amigo, ia de bicicleta aos sábados do bairro Perdizes, onde morava, até o Aeroporto Campo de Marte, a cerca de 10 quilômetros, para passar o dia vendo as aeronaves. “Fizemos amizade com um aviador e ele nos deixava ficar nos hangares e lavar os aviões”, recorda-se.
Quando chegou à idade de escolher a profissão, ficou em dúvida sobre qual carreira seguir. Pensou em se tornar militar, mas o pai proibiu, alegando que era muito indisciplinado. “Disse que eu seria preso e expulso do Exército, o que seria uma vergonha para toda a família”, afirma. Ele admite que o pai tinha razão: “eu era muito independente para as Forças Armadas”. O jovem cogitou, então, ser piloto da aviação comercial. “Aos 18 anos tirei o meu brevê e pensei em me profissionalizar”, conta. Dessa vez, os amigos o fizeram mudar de ideia, dizendo que viraria chofer de avião.
Bierrenbach optou, então, pelo Direito, e ingressou na Universidade de São Paulo (USP). “Não me arrependo da escolha. No Largo de São Francisco passei os cinco melhores anos de minha vida.” Flavio diz que na faculdade ficou encantado com os colegas, professores, temas discutidos e com a política. Ainda estudante, em 1963 ocupou seu primeiro cargo público. Durante as férias da faculdade, foi ser oficial de gabinete temporário do então ministro do Trabalho, Almino Affonso, no governo de João Goulart.
Formou-se pelas Arcadas, como a São Francisco também é conhecida, em 1965. Durante o curso, começou a namorar Maria Ignes Rocha de Souza e se casaram em 1966. O casal tem três filhas (Ana Maria, Ana Luíza e Ana Carolina) e dois netos (Júlia e Gabriel), filhos de Ana Maria. “Minhas filhas jamais me deram trabalho ou desgosto”, comemora. Nenhuma das Anas quis seguir carreira política. Maria é diplomata, Luíza é médica e Carolina, arquiteta. Após mais de 50 anos de formado, Bierrenbach ainda tem vínculos com a instituição. Atualmente, é presidente de honra da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP.
Novos voos
Após deixar a Câmara Municipal, Bierrenbach assumiu o mandato de deputado estadual, eleito com mais de 35 mil votos. Porém a lembrança do período em que foi deputado estadual não é boa. “A Assembleia era controlada pelo governador Paulo Maluf”, lamenta. Contudo, tem pelo menos uma boa memória da época: foi um dos poucos parlamentares brasileiros a apoiar, em 1982, o Reino Unido durante a Guerra das Malvinas, na disputa com a Argentina pela posse das ilhas no Atlântico Sul. “Não podia apoiar a invasão, sou a favor da autodeterminação dos povos, e as Malvinas/Falklands têm um povo que mora lá, os kelpers”, justifica. Os britânicos venceram a guerra e, em 2013, os kelpers fizeram um plebiscito. Quase 100% dos eleitores decidiram continuar pertencendo ao Reino Unido.
Por conta de suas declarações, ficou amigo do embaixador do Reino Unido na época, George William Harding. Em 1985, foi convidado a passar duas semanas na Inglaterra para conhecer os caças da Força Aérea Britânica e participou de um salvamento de verdade. “Estávamos em um exercício de simulação e surgiu um pedido de socorro de um barco de pesca”, conta.
Outro de seus orgulhos na aviação foi ter sido o único civil a participar de um dos maiores desfiles aéreos do País, nas comemorações do Dia da Independência de 1987, em Brasília. Na oportunidade, 118 aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) voaram sobre uma das principais avenidas da capital federal, o Eixo Rodoviário Sul.
No campo político, destacou-se na Câmara dos Deputados, aonde chegou em 1983, eleito pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Foi escolhido, em 1985, para ser relator da Comissão Mista do Congresso (Câmara e Senado) encarregada de analisar o projeto do governo que convocou a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
O deputado apresentou um substitutivo à proposta do governo. O texto era contrário aos interesses dos grandes partidos e sofreu críticas. O projeto original, enviado pelo então presidente José Sarney, previa que os deputados federais e senadores eleitos em 1986 (e também os senadores eleitos em 1982) seriam responsáveis por escrever a nova Constituição Nacional. Bierrenbach propôs um plebiscito para decidir se valeria o projeto de Sarney ou se haveria uma eleição exclusiva para formar a Assembleia Constituinte, entre outras modificações. Caso vencesse a segunda alternativa, os constituintes ficariam proibidos de disputar cargos públicos por quatro anos.
Em consequência de suas posições, Bierrenbach foi afastado da Relatoria da Comissão e suas ideias foram derrotadas. A Assembleia Constituinte funcionou junto com o Congresso. Ainda hoje ele defende sua proposta. “O Congresso não é poder constituinte, é poder constituído”, resume.
Primeira queda
Abertas as urnas em novembro de 1986, uma surpresa. O especialista em Constituição, autor do livro Quem tem medo da Constituinte, não havia sido eleito. Recebeu menos de 30 mil votos. “Eu tinha prestígio, mas prestígio é uma coisa, voto é outra”, reconhece. Indagado se ficou muito frustrado, responde que “é uma sensação ambígua, mas não triste”. Ele conta que, ao chegar em casa após a derrota, encontrou sua esposa, sua mãe, as filhas pequenas e alguns amigos, todos chorando. “Não há motivo para chorar, eu ganhei todas as paradas de que participei, precisava perder para ver como é uma derrota”, consolou-os. Bierrenbach voltaria a perder a disputa para a Câmara dos Deputados em 1990.
O procurador retornou para São Paulo. Em 1999, recebeu convite do então presidente Fernando Henrique Cardoso para ser ministro do Superior Tribunal Militar, em uma das cinco vagas destinadas aos juízes togados, ou seja, civis. Um tio dele, o almirante de esquadra Júlio de Sá Bierrenbach, havia sido presidente dessa Corte. A indicação foi a realização de um sonho de adolescência. “Não me tornei militar, mas me tornei um servidor das Forças Armadas”, afirma.
No STM, Bierrenbach analisou vários processos e um deles o impressionou bastante. Um sargento da Marinha tinha um inimigo, um suboficial. Certo dia, em um estado da Região Norte, ambos atravessaram um rio em uma balsa, mas o sargento retornou sozinho e o suboficial não foi mais visto. Cerca de um mês depois, foi encontrado um corpo boiando, bastante deteriorado. O sargento foi processado e condenado por homicídio.
Após cumprir a pena de nove anos de prisão, ele se mudou para o Nordeste. Passados mais de 17 anos do suposto crime, soube que o suboficial estava vivo e trabalhando em uma borracharia no Rio Grande do Sul. O sargento sai à caça do outro militar e, ao encontrá-lo, dá dois tiros em seu peito. Segue até a Capitania dos Portos, confessa o crime e entrega a arma.
Novamente, o sargento foi preso e processado por assassinato. Quando o caso chegou ao STM, Bierrenbach inocentou o réu. “Ninguém pode ser condenado duas vezes pelo mesmo crime”, sentenciou. Para o juiz, o réu já havia cumprido a pena.
Bierrenbach aposentou-se do Superior Tribunal Militar em 2009. “A consciência é um chicote que não me castiga”, garantiu no discurso de despedida da Corte. Sua atuação no STM (instituição criada em 1808) é contada no livro Dois séculos de Justiça – presença das Arcadas no Tribunal mais antigo do Brasil, escrito em 2010.
Após deixar o Tribunal, voltou para São Paulo e continuou a advogar, a atirar e a pilotar. Mas não abandonou a luta política. No Dia do Advogado (11 de agosto) de 2015, durante um almoço da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP, fez um contundente pronunciamento defendendo a renúncia da então presidenta Dilma Rousseff. “O que ela poderia fazer de melhor para preservar as instituições que jurou defender e até para preservar sua imagem e sua honra, era renunciar”, declarou.
Bierrenbach foi bastante aplaudido e vários ex-alunos fizeram questão de assinar o seu discurso. Naquela tarde, a advogada e professora Janaina Paschoal o procurou e disse que era preciso fazer mais do que solicitar a renúncia da presidenta: iria entrar no Congresso com um pedido de impeachment de Rousseff, o que fez em 21 de outubro de 2015.
Atualmente, o ex-vereador participa de almoços semanais com um grupo de personalidades, como o jurista Miguel Reale Júnior, os ex-ministros Almino Affonso, José Gregori e José Carlos Dias e o ex-governador Paulo Egydio Martins. Segundo Bierrenbach, as conversas, que no início eram sobre a possibilidade de Dilma deixar a Presidência, ocorrem desde 2015. Em 6 de março do ano passado, o jornal Folha de S. Paulo chamou esses almoços de conspiração gourmet. “Essa reportagem foi uma bobagem, não era conspiração, era um encontro de amigos”, reclama o advogado.
O ano de 2016 foi marcante na vida de Bierrenbach. Comemorou bodas de ouro e teve de abandonar duas grandes paixões: a aviação e as armas. Desistiu de atirar e pilotar por causa de problemas na vista e vendeu uma aeronave que possuía há 35 anos. “O avião era de 1946, quase tão velho quanto eu, mas em melhor estado”, brinca.
Entre suas atividades, faz pareceres jurídicos e presta consultoria. “Agora só trabalho para meus colegas advogados, não trabalho para empresas nem para clientes”, revela. Ele também escreve crônicas para a revista Asas, especializada em aviação. E prepara um livro de memórias. Histórias para contar não faltam.