Vida nos corredores
Motoboys ajudam a economia da cidade ao agilizar entregas, mas sofrem acidentes com custo cada vez mais elevado
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Julho de 2012 era o mês em que Francisco Galdiano Rodrigues da Silva planejou largar a vida de motoboy para tentar um trabalho que pagasse mais, com menos riscos. Ele estava na profissão há oito anos e já tinha guardado dinheiro para quitar a moto. Em 15 de junho daquele ano, fez uma entrega em Santo André e voltava na sua moto pela Rodovia Anchieta, atrás de uma lotação. O veículo saiu abruptamente de sua frente e o deixou de cara com um caminhão parado.
O choque gerou múltiplas fraturas na face – na órbita do olho esquerdo, na mandíbula, no céu da boca e no maxilar –, fratura exposta no braço direito e perda do baço. Só voltou a ver o mundo, em flashes, no dia 13 de julho, quando saiu do coma. Teve alta 45 dias depois.
Acidentes envolvendo motocicletas, como o de Francisco, há cinco anos já custavam quase R$ 400 mihões anuais à cidade, além do sacrifício de corpos, vidas e futuros. Quem vive das motocicletas – os motoboys, motofretistas ou motocas – não pode parar. Perdem um membro, fazem adaptações no corpo e voltam ao trabalho, acelerando sempre.
“O cenário é de guerra”, define o professor da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec) Ricardo Barbosa da Silva, autor do livro Motoboys no Globo da Morte: Circulação no Espaço e Trabalho Precário na Cidade de São Paulo. “Muitos dos acidentados são bem jovens, desprotegidos da assistência do governo, e têm de se virar sozinhos”.
Um em cada cinco motociclistas paulistanos atua profissionalmente. Cada um percorre em média, por dia de trabalho, 150 quilômetros. Juntos, os 200 mil motoboys da capital fazem três milhões de entregas diárias e movimentam R$ 423 milhões por mês, segundo o Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas e Ciclistas de São Paulo (SindimotoSP).
A carreira, hoje regulamentada por lei federal, desde a década de 90 dá emprego, principalmente, a jovens excluídos de outras áreas do mercado, impulsiona os negócios de entrega de alimentos ou medicamentos e salva o dia de muitos escritórios. “O empresário, que reclama da moto um pouco mais rápida no trânsito, é o mesmo que chega ao trabalho atrasado e desesperado pelo motoboy, o único que pode salvá-lo quando ele precisa levar com urgência um documento ao outro lado da cidade congestionada”, costuma dizer o presidente do SindimotoSP, Gilberto Almeida Gil, ex-motoboy com quatro acidentes leves no currículo.
Fábio Jr Lazzari/CMSP
O volume de motos segue crescendo na cidade de São Paulo, mesmo com a diminuição no ritmo das vendas. Em fevereiro de 2013, eram cerca de 892 mil unidades nas ruas paulistanas, segundo a Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares (Abraciclo). No ano passado, o Município ganhou 52 mil motos, número significativo, mesmo abaixo das 68 mil unidades emplacadas em 2011.
O presidente do SindimotoSP acredita que a venda de motos ainda tem fôlego, porque a quantidade de motociclistas deve continuar crescendo. “É um meio de transporte barato, não te prende no trânsito e é uma alternativa ao transporte público”, diz. Gil aposta na crescente dependência do motofrete em São Paulo: “Esse serviço é tão essencial quanto o dos Correios, só que serve para transportar mais itens – desde comida até equipamentos de informática –, leva as encomendas mais rapidamente e é mais específico, porque tem hora e data”.
Mas a motocicleta é uma boa alternativa ao transporte público? O professor Ricardo Barbosa da Silva acredita que não. “A problemática vivida pelos próprios motoboys tem a ver com a mobilidade geral da metrópole. Enquanto não se resolve esse problema, enquanto não forem criadas soluções para todos terem um trânsito mais humano e até que se estimule o sistema de transporte coletivo para a circulação ser mais consciente, cria-se a necessidade de mais motociclistas”, analisa Silva.
Uma morte por semana
Estudo realizado pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET-SP) comprova a frágil estabilidade das motos. Em mil colisões com morte entre 2006 e 2010, as motocicletas tiveram participação de 31%, embora representassem 13% da frota da cidade de São Paulo. No ano passado, um motociclista paulistano perdeu a vida a cada 20 horas. Embora assustador, esse número já foi pior: em 2011 havia uma morte a cada 17 horas.
Comparativamente, os motoboys são minoria entre as vítimas – as mortes atingem principalmente quem usa a moto apenas como meio de transporte. Segundo a CET, 3,4% dos mortos em acidentes no trânsito paulistano em 2011 eram motofretistas, o que significa uma morte por semana. “Na cidade de São Paulo, os amadores vão para o trânsito com experiência e maturidade insuficientes e sofrem mais acidentes”, explica o médico Dirceu Rodrigues Alves Júnior, chefe do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
Além do risco de morte, os motociclistas convivem com o fantasma das sequelas. Dados disponibilizados pela Seguradora Líder, atual administradora do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (Dpvat), mostram números impactantes sobre invalidez permanente. Entre 2000 e 2011, em todo o País, os pagamentos desse tipo de seguro que resultaram de acidente com moto cresceram 1.378% (de 7.325 para 108.264), enquanto as indenizações por morte entre os motociclistas subiram 134% (de 7.624 para 17.812).
O aumento na quantidade de acidentes com motos fez crescer a quantidade de vítimas de politraumas (fraturas acompanhadas de danos em órgãos). Na última década, o número de pacientes com esse quadro clínico atendidos no Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas (HC) da USP subiu de 13% para 21%, enquanto as fraturas mais complexas cresceram 7%. Segundo o ortopedista Kodi Kojima, do IOT, os dados refletem o aumento da ocorrência de acidentes de moto e de alto impacto, além da maior eficiência nos resgates. “O número de pacientes não variou muito no período. O que notamos foi um aumento da gravidade das fraturas”, disse o ortopedista.
O especialista explica que, há alguns anos, havia mais probabilidade de o acidentado morrer no local do acidente, antes de ter chance de ser socorrido. “O paciente que não teria nenhuma chance hoje consegue chegar ao nosso pronto-socorro, embora sua saúde geral esteja muito comprometida e possua várias fraturas, a maioria delas grave”, diz Kojima.
Se o motoboy Francisco Silva, do início desta reportagem, ficasse mais cinco minutos sem atendimento, não teria sobrevivido por conta da hemorragia interna e da fratura facial, que não o deixava respirar. No período em que ficou em coma, os médicos priorizaram os cuidados para salvar sua vida. As fraturas nos ossos da face e no braço direito ficaram de lado e calcificaram de modo irregular.
Mesmo com sequelas, Silva não perde o bom humor. Diz que enxerga tudo duplo, “como uma televisão antiga”, que não consegue mais colocar os dois braços atrás da cabeça nos “enquadros” da polícia e que só sabe distinguir cachaça de água pelo paladar, já que perdeu o olfato. Ele também ficou com todos os dentes fora de posição e perdeu 16 quilos. Deve voltar a trabalhar quando, enfim, fizer as cirurgias reconstrutoras, ainda não agendadas. Até lá, receberá auxílio da Previdência Social.
Brincadeiras à parte, duas consequências do acidente afetam bastante o motoboy. A primeira é não poder trabalhar. “Conto os segundos para o dia passar”, lamenta. A outra é não se reconhecer no espelho. “Não reconhecia meu corpo quando saí do hospital; antes eu era um cara atlético. Sabe quando você acorda e não se vê bonito? Eu faço isso todo dia.”
O preço de ocorrências como a de Francisco é alto. Levantamento divulgado em 2013 pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo mostra que, em 2011, foram gastos cerca de R$ 27 milhões com internações de motociclistas, valor 76% superior ao de 2008. Já as perdas geradas à economia paulistana pelos acidentes de moto somaram R$ 373 milhões em 2008, segundo dados registrados por Ricardo Silva na tese de mestrado que deu origem ao seu livro.
Profissão motoboy
Fábio Jr Lazzari/CMSP
Motoboy, desde julho de 2009, é profissão regulamentada no Brasil. As regras para trabalhar com o transporte de mercadorias e outras atividades permitidas ao motofretista estão na lei federal 12.009/09. “Esse é o caminho para uma categoria forte, organizada, mais respeitada, com melhores salários e outra visão da sociedade. Com a regulamentação, vem a melhor qualificação dos profissionais”, diz o presidente do SindimotoSP, Gilberto Almeida Gil.
Segundo a lei federal e a lei municipal 14.491/2007, do ex-vereador Adolfo Quintas, o motoboy precisa, entre outras exigências, ter pelo menos 21 anos, possuir Carteira Nacional de Habilitação há pelo menos dois na categoria A e ser aprovado em curso de 30 horas/aula regulamentado pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran).
De acordo com a legislação, o profissional também precisa ter inscrição no cadastro municipal de condutores capacitados para o transporte de pequenas cargas (Condumoto), possuir autorização e licença da Secretaria Municipal de Transportes para a motocicleta ser usada em motofrete e ter autorização emitida pelo Departamento Estadual de Trânsito. O veículo precisa ser adaptado e registrado na categoria aluguel. O uso dos equipamentos de segurança é obrigatório pela regulamentação do Contran e pela lei municipal.
O Banco do Povo Paulista, da Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho, criou uma linha de crédito de R$ 10 milhões para o financiamento de motos de carga e equipamentos para adaptação dos veículos. Mesmo assim, Gil reclama das taxas para regulamentar e da burocracia: “O profissional chega cedo ao órgão de trânsito e só sai à tarde”. Em fevereiro de 2013, a categoria parou a Avenida Paulista pedindo o adiamento do início das punições aos que descumprirem a lei.
O professor Ricardo da Silva sente falta, também, de um estímulo do governo na forma de desconto. Segundo ele, os produtos obrigatórios pela lei já começam a faltar nas lojas. E a encarecer.
Os sites da CET e do SindimotoSP têm cartilhas que detalham as medidas que o motoboy deve tomar para estar em dia com a regulamentação exigida para trabalhar no setor.
Medidas educativas
O médico Dirceu Rodrigues Alves Júnior acredita que as mortes de motoboys paulistanos voltarão a crescer
Divulgação
O médico Dirceu Alves Júnior, chefe da Abramet, aposta que as mortes de profissionais da moto vão aumentar, apesar do registro atual de diminuição. “A queda não é uniforme; acontece em um mês e no outro não. A frota maior nas ruas e a inexperiência dos condutores nos fazem enxergar aumentos progressivos”. O professor Ricardo Silva também desconfia dos números que apontam tendência de queda, inclusive porque, segundo ele, as regulamentações patinam muito antes de serem aplicadas, devido ao excesso de exigências burocráticas. “Desde 1999 surgiram várias tentativas de regulamentar o motofrete, mas nenhuma foi colocada em prática. Por isso precisamos esperar mais antes de qualquer conclusão”, diz.
A CET-SP não disponibilizou representante para dar entrevista à Apartes, mas enviou comunicado em que credita a queda nas mortes de motociclistas em 2012 a algumas ações que tem implantado para mudar o comportamento dos condutores de motocicletas. Entre as medidas, estão a proibição do tráfego de motos na pista expressa na Marginal do Tietê, a implantação de seis radares portáteis para intensificar a fiscalização e enfoque na educação para o trânsito, com a oferta de cursos e campanhas.
Com parceria da Abraciclo, a CET inaugurou no fim de 2012, ao lado do metrô Carrão, na zona leste, o Centro Educacional Paulistano de Motociclistas (Cepam), que vai sediar aulas práticas e teóricas sobre condução segura, palestras, debates, outras atividades de conscientização do condutor e oferta de check-ups das motos.
O presidente do SindimotoSP, Gilberto Almeida Gil, elogia também as motofaixas exclusivas em algumas vias de tráfego intenso na cidade. Para Gil, as faixas dão mais segurança aos motociclistas e deveriam ser ampliadas. O professor Ricardo Barbosa da Silva pensa que o motociclista deveria ser respeitado nas vias regulares, sem que fosse preciso segregá-lo: “A cidade não tem esse espaço extra. Se melhorar o transporte público, vai cair até mesmo a pressão pela moto e outros veículos de transporte individual”.
Para Alves Júnior, da Abramet, os cursos são ineficientes e as campanhas públicas de educação são descontinuadas. “Os centros de formação de condutores dão um preparo precaríssimo, sem um treino de todas as adversidades possíveis”, avalia. No curso de 30 horas que os motoboys brasileiros devem fazer, o médico acredita que deveria ser incluído um simulador com exercícios que preparassem melhor os alunos.
Para o presidente do SindimotoSP, deveria haver tantas campanhas de educação e políticas públicas voltadas aos motociclistas como há para pedestres e motoristas de outros veículos. Já Silva acredita que os cursos pontuais são menos eficientes do que educar a sociedade toda, para reverter a falha educacional que vem desde a educação escolar infantil. “Os motoboys vão fazer curso de educação, mas na firma os empresários falam pra eles correrem. Tem de mudar toda a concepção cultural: quem contrata não deve considerar só a pressa e o preço”, diz o estudioso. Para o professor, a fiscalização é paliativa e insuficiente, apesar de ser, em conjunto com as demais medidas, o reconhecimento de que o governo vê no trânsito para motocicletas um problema a ser resolvido.
Serviço de luxo
Ricardo Silva vê dois cenários possíveis para a situação dos motoboys na capital. A projeção pessimista é a manutenção do quadro atual: a regulamentação da atividade não sai do papel, por excesso de exigências; os serviços de transporte público são ineficientes; os problemas de mobilidade não são superados satisfatoriamente e tendem a exasperar o quadro; os motofretistas são mais requisitados, emergencialmente, e vão ao mercado sem qualificação, tornando-se mão de obra barata.
No cenário otimista, a regulamentação da categoria seria colocada em prática sem burocracias exageradas, a cidade criaria soluções para melhorar a mobilidade e haveria mais educação do que punição. Assim, o motofrete seria visto mais como profissão do que como trabalho passageiro; a moto seria mais uma alternativa, e não uma solução improvisada para driblar o trânsito. “O trabalho do motoboy seria menos estigmatizado, mais valorizado, contratado como um serviço especial, de luxo, com valor condizente”, prevê Silva.
Vida de Piloto
Adriano Freire de Sousa, de 37 anos, é motoboy. Já trabalhou em padaria e em restaurante, mas em 2001 resolveu transformar o hobby em ganha-pão. Graças à profissão que tem hoje, comprou a casa onde mora, quitou a moto e está financiando um carro. Adora a adrenalina e a agilidade que a moto proporciona, nunca sofreu um acidente no trânsito, mas o risco que corre nas ruas o faz cogitar um futuro mais tranquilo. “Não penso em mudar de profissão agora, mas quero ter um negócio de motopeças no futuro. Se não for algo com moto, não vou conseguir fazer.”
Adriano ganha de R$ 1.600 a R$ 1.800 por mês, já descontando os gastos de até R$ 400 com a manutenção da moto e combustível. O piso médio salarial de motoboy na capital paulista é R$ 900, levando-se em conta os pisos das várias categorias. Além disso, os patrões pagam cerca de R$ 450 pelo aluguel mensal do veículo do motofretista, além de vale-refeição, que varia de R$ 187 a R$ 330, entre outros benefícios.
Há, no entanto, quem receba um salário mais gordo. O SindimotoSP diz que muitos motoboys ganham de R$ 4 mil a R$ 5 mil por mês, com a ajuda das horas extras (após 5 horas de trabalhos diários) e do acréscimo de quase R$ 0,20 de aluguel sobre o que ultrapassar os 120 quilômetros rodados no mesmo dia.
São Paulo sem mototáxi
Em 1998, entrou em vigor em São Paulo a Lei 12.609, do vereador Wadih Mutran (PP), na foto, que proíbe a utilização de motocicletas para o transporte remunerado de passageiros, ou seja, como táxi. O decreto 37.733/1998 regulamentou a norma e definiu que o Departamento de Transportes Públicos do Município é o responsável pela fiscalização.
Quem infringir a lei pagará multa e, em caso de reincidência, a motocicleta será apreendida. A ideia de Mutran era preservar a integridade física dos munícipes, dados os “constantes acidentes fatais envolvendo motos no trânsito caótico e perigoso do Município de São Paulo”.
SAIBA MAIS
Livro
Motoboys no Globo da Morte: Circulação no Espaço e Trabalho Precário na Cidade de São Paulo. Ricardo Barbosa da Silva. Humanitás/Fapesp, 2011.
Sites
www.hcemmovimento.blogspot.com.br