Nº13 – Perfil – Dulce Braga

Nas trilhas da arte e da política

Intelectual, com apurado dom artístico e apaixonada pela política, a ex-vereadora tornou-se a primeira senadora paulista, indicada pelos militares

Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br

EXPRESSIVA — Dulce no Rotary Club, no começo da década de 1950

Acervo da família

“Anticomunista ferrenha”. Assim Dulce Salles Cunha Braga se definiu em uma entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, em 1982. Na época, já havia sido três vezes vereadora e cumprido três mandatos de deputada estadual. Estava, ainda, prestes a se tornar a primeira mulher do Estado a chegar ao Senado – por indicação dos militares. Representante de movimentos femininos conservadores, ajudou a liderar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma das manifestações que precederam o golpe militar de 1964.

Ironicamente, a mulher de ideais reacionários tão fortes foi capaz de viver pacificamente, durante uma década, com a família de sua irmã Esmeralda, da qual fazia parte um “inimigo”: o cunhado comunista Francisco Schmidt. “Papai e Dulce eram muito amigos”, conta Cecília Ramos Vianna Paranhos, filha de Francisco e Esmeralda. Mais do que contraditória, a política conhecida como “princesa do governo militar” era, acima de tudo, pura diplomacia e traquejo social.

FAMÍLIA — Dulce (à direita), a irmã Esmeralda (à esquerda), a mãe, Maria (de xadrez),
e a tia Cachopa

Acervo da família

Exuberante, solteira até os 38 anos e cantora lírica, Dulce circulava entre os convidados e trocava opiniões sobre política com graça e tolerância. “Simpática, expansiva, diplomática e educada, respeitava a posição da gente”, conta Moacir Longo, colega comunista de Schmidt e vereador na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) até ser cassado pelos militares, em 1964.

“Não tínhamos nenhum conflito que nos afastasse, a não ser a divergência política, que era notória”, resume Longo. A doce Dulce era temida na política e uma feroz defensora de seu partido – primeiro a União Democrática Nacional (UDN) e, após 1966, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), extinta em 1980 e que deu sustentação ao regime militar.

“Ela era, sim, temida; fazia valer a sua opinião”, lembra Jacob Pedro Carolo, colega de Dulce nos dois primeiros mandatos dela como deputada estadual. Ex-presidente estadual da Arena, ele conta que Dulce era “respeitabilíssima” no partido: “Tinha voz, era ouvida. Tinha uma atuação linda!”. Carolo lembra-se do dia em que Dulce andava “ansiosa e aflita” pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) para aprovar, até a meia-noite, um projeto em favor dos funcionários legislativos, a despeito das manobras de um opositor para ganhar tempo.

Na Alesp, Dulce exerceu três mandatos consecutivos pela Arena, de 1967 a 1979. Três anos depois, tornou-se a primeira senadora paulista. Filiada ao Partido Democrático Social (PDS), ela foi escolhida segunda-suplente por eleição indireta dos governantes da época e assumiu a vaga do senador titular, Amaral Furlan (em licença), e do primeiro-suplente, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que ocupava um cargo no Executivo. Seu mandato foi de 30 de junho a 29 de novembro de 1982.

PAIXÃO — Em sentido horário, Dulce e Roberto em seu casamento (1962), em evento na Alesp, no Club Athletico Paulistano (1992) e durante viagem de férias (1984)

Fotos: Acervo Alesp, Acervo da família e Centro Pró-Memória Club Athletico Paulistano

Na CMSP, foi vereadora em três legislaturas, a maior parte do tempo pela UDN. Chegou à Casa como suplente, com 1.143 votos, e em 1955 (último ano da 2ª Legislatura) substituiu vereadores titulares de sua legenda. Em 1960, assumiu pela primeira vez como vereadora titular, após receber 7.679 votos. Para a legislatura seguinte, elegeu-se com a maior votação da CMSP até então: 23.980 votos. O recorde anterior pertencia a William Salem, que em 1955 foi escolhido por 15.297 eleitores.

PERSONALIDADE

Nascida em São José do Rio Preto, em 1924, Dulce era filha e neta de políticos importantes do interior paulista. O avô José de Salles Cunha elegeu-se prefeito de Descalvado, a 240 quilômetros da capital, e morreu jovem, de febre amarela.

Feliciano de Salles Cunha, pai de Dulce, mudou-se para São José do Rio Preto por volta de 1920. Foi um dos primeiros a ter automóvel e comandava uma revendedora de carros Ford. Por acreditar na via automobilística, comandou a abertura das primeiras estradas de São José a Mirassol, entre outras, e ali instalou um negócio de transporte de pessoas. Foi vereador e presidente da Câmara.

“Se fosse começar vereadora em São José do Rio Preto, minha tia seria eleita só pela influência do meu avô; não precisaria ser nada, ou demonstrar muito pouco”, diz José de Salles Cunha, que tem o mesmo nome do avô e é sobrinho de Dulce. Mas a parlamentar fez sua própria história. Decidiu se mudar para São Paulo, onde fez faculdade de Didática e de Línguas Neolatinas pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). O pai e a mãe, Maria Paternost Salles, vieram com ela. “Feliciano e dona Maria vieram para São Paulo simplesmente como acompanhantes de Dulce, que foi abrindo seus próprios caminhos e ficando conhecida… E muito rapidamente”, observa o sobrinho José.

Em São Paulo, Dulce conheceu a elite cultural e religiosa da cidade. Logo que chegou, entrou para o coral do Theatro Municipal e fez aulas de canto com os maestros Camargo Guarnieri e Miguel Arqueróns. Dos 25 aos 29 anos, lecionou literatura brasileira na Biblioteca Municipal de São Paulo. Nos dez anos seguintes, ensinou história da música na rede municipal de educação. Também palestrou sobre literatura em cursos de extensão na Universidade de São Paulo (USP). Era professora de espanhol e fluente em latim, francês, italiano e inglês. Em 1951, publicou o livro Autores Contemporâneos Brasileiros e, depois, vários outros títulos sobre literatura, gramática, religião e comportamento.

CÂMARA — Em 1965, Dulce presenteia com seu LP o servidor da CMSP Amilcar Cerri

Acervo CMSP

Em meio a tantas atividades, conheceu o médico, advogado e incorporador Antonio Roberto Alves Braga. Tiveram um breve romance, mas ele dizia não estar pronto para o casamento e acabaram se separando. “Ela ficou tremendamente apaixonada por ele e ele por ela. Não pejorativamente, mas Antonio Roberto era um playboy; muito requisitado pelas moças da época, um homem rico, sociável, muito fino, muito agradável”, descreve José de Salles. Dulce esperou por seis anos até que, em 1962, enfim, se casaram. Não puderam ter filhos.

A rio-pretense, que se definiu ao jornal O Estado de S.Paulo como “conservadora, católica praticante – do tipo que algumas pessoas definem como ‘carola’ – e muito moralista”, entrou para a política a convite do padre paulista Benedito Mário Calazans, deputado estadual de 1951 a 1959 e senador de 1959 a 1967. “Ela não tinha ambição de ser política, mas de ser artista; dizia para mim que gostava era do palco… Não foi porque meu avô não deixou”, conta José, que morou por um ano na casa da tia.

Aos 31 anos, em 1955, Dulce era suplente e assumiu uma cadeira na Câmara Municipal. Tomou gosto pela carreira. Nas eleições seguintes, sua votação conseguia eleger outros “dois ou três” correligionários, “o que era muito interessante num tempo em que mulher quase não se destacava”, analisa o sobrinho. Ela se correspondia com cada eleitor conquistado e com outros dez indicados. Manteve esse hábito até o fim da vida, quando uma degeneração na retina deteriorou muito sua visão. Além desse tipo de atenção, para José de Salles, contou muito o fato de a tia ser “belíssima e falar muito bem”.

Seus discursos tinham a mesma voz impostada com que gravou o LP Personalidade, em 1967, com músicas de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, do ex-vereador Murillo Antunes Alves e uma composição própria.

ASSEMBLEIA — De joelho, em missa na Alesp quando era deputada, e durante recepção a políticos coreanos

Acervo Alesp

LETRAS E ROSÁRIO

Na CMSP, Dulce propôs uma lei, publicada em 1964, que declarou como utilidade pública a casa onde nasceu Mário de Andrade, na Rua Aurora, bairro de Santa Ifigênia. O Executivo teria até cinco anos para tentar a desapropriação e transformar o imóvel no Museu Literário Mário de Andrade, o que não ocorreu. Para a vereadora, estudiosa do modernista, Mário foi “o líder espiritual de toda uma geração”.

A educação foi uma de suas principais bandeiras na Câmara. E fora dela também. De 1960 a 1961, produziu e apresentou, no canal Excelsior, o programa Literatura Brasileira na TV. De 1961 a 1963, apresentou o programa de alfabetização ABC para Você, na Rádio Record. Em seu segundo mandato como vereadora, enviou requerimento à Câmara dos Deputados pedindo um inquérito para apurar se o sistema Paulo Freire de alfabetização de adultos em massa, conveniado ao Ministério da Educação, acobertava o objetivo de “doutrinar marxistamente o nosso povo”. O método de Freire pregava a educação como prática de libertação da pessoa oprimida. Segundo Dulce, o convênio alfabetizaria mais de 4 milhões de brasileiros que poderiam ser eleitores em 1965.

Na tribuna da CMSP, em 18 de março de 1964, véspera da Marcha da Família, a vereadora conclamou crianças, mulheres, homens, paulistanos de todas as religiões e raças, vereadores e suas famílias a saírem do comodismo para, juntos, implorarem pela liberdade, “em desagravo ao rosário, e em defesa da família”, instituições que, segundo ela, haviam sido insultadas em discurso do então presidente João Goulart, dias antes, ao prometer reformas de base.

Na mesma sessão, o vereador David Lerer (então no PSB) chamou a colega de elitista: “Quando as esposas dos grandes investidores imobiliários vão à rua, quando as esposas dos magnatas do petróleo vão à rua, quando os que são contra as medidas reformistas que se quer tomar neste País, contra o congelamento dos aluguéis, vão à rua, não falam que vão por isso. Dizem que vão à rua em passeata na defesa do rosário e de Deus”.

PIONEIRA — “Dulce foi cavando seus próprios caminhos”, diz o sobrinho José de Salles Cunha

Marcelo Ximenez/CMSP

No dia 6 de abril de 1964, na primeira sessão ordinária registrada na CMSP após o golpe, Dulce novamente discursou, apoiada “ruidosamente com palmas e acenos de lenços” das mulheres que lotavam as galerias do Plenário da Casa. A vereadora cobrava apoio oficial do Legislativo paulistano aos militares: “Estas mulheres que aqui estão lotando o auditório e o saguão desta Casa, representando todas as entidades femininas, cristãs e democráticas de São Paulo, vieram exigir o pronunciamento desta Câmara Municipal”.

O golpe foi comemorado por Dulce em 31 de março de 1965, na tribuna: “Homens responsáveis compreenderam em tempo a necessidade de reformular a vida brasileira em termos de uma legítima democracia, sob o signo de Deus”. Nos últimos meses de 1966, entretanto, a vereadora já admitia a falha do governo Castello Branco em reorganizar a política do País. E dizia concordar com os opositores em vários pontos: “Nós também desejamos eleições livres, livres pelo voto secreto e direto no mais curto prazo possível, nós também exigimos respeito às garantias jurídicas e aos direitos individuais, nós também consideramos indispensável uma reforma dos partidos políticos e das instituições”, disse, segundo registro da CMSP.

Em 10 de março de 1967, às vésperas de deixar a vereança para assumir como deputada, a parlamentar contou ter aderido à Arena por falta de escolha, já que os partidos haviam se reduzido a dois. “Não nos restava outra opção que não ingressar em um deles, mais próximo de minha convicção, se bem que longe de meus ideais”, lamentou. “Não foi a Revolução dos meus sonhos, porque o povo continua sofrido”, disse, na mesma ocasião. Com esse discurso, encerrava sua passagem pela CMSP com duas de suas marcas mais fortes: a coragem e a diplomacia.

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Vereadora na mídia

Na Câmara, Dulce ganhou destaque na imprensa com seus posicionamentos pela honestidade na política. Em 1960, a parlamentar revelou a O Estado de S.Paulo, entre outros jornais, que a chapa situacionista havia tentado comprar seu voto na eleição para a Mesa Diretora (1). Em outubro de 1964, O Estado de S.Paulo mostrou que Dulce apoiava a proposta do presidente da República para suprimir os salários dos vereadores (2).

Em 1963, virou notícia no Diário da Noite ao tornar-se recordista de votos (3). No ano seguinte, o mesmo periódico publicou o primeiro discurso oficial de Dulce celebrando o golpe (4).

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