Águas turbulentas
Comissão parlamentar encerra trabalhos e propõe criar agência municipal para fiscalizar contrato com a Sabesp
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
ABASTECIMENTO – Moradores do Jardim Vera Cruz, sem água há oito dias, esforçam-se para conseguir encher os galões
Mozart Gomes/CMSP
“No resto da cidade é proibido lavar a calçada com água da Sabesp, mas aqui a água da Sabesp lava é a rua mesmo”, brinca queixando (ou queixa brincando) o presidente do Clube Comunidade Jardim Vera Cruz, Júlio Fonseca, enquanto mostra os furos nas mangueiras que servem de canos improvisados para levar, irregularmente, água tratada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) até a casa dos moradores do local onde vive, o Jardim Vera Cruz.
Mozart Gomes/CMSP
Naquele bairro da zona sul da cidade, a Sabesp levou encanamento até a Estrada do M’Boi Mirim e construiu os cavaletes (tubos e conexões destinados à instalação de hidrômetro nas casas), mas não fez as ligações finais. E mesmo assim envia a conta com a taxa de água e esgoto. Para solucionar o problema, os moradores criaram a própria rede, pela qual a água é levada por meio de bombas e de canos improvisados espalhados pelas ruas e até no alto de postes. A rede, irregular, é chamada de água-net, ou gato-net. Já houve solicitação para que o encanamento seja regularizado, ainda não atendida pela companhia.
“Regulamentar é a solução”, acredita Fonseca. A entrevista é interrompida pela enfermeira Severina Barbosa, que também é dona de uma quitanda na região. Ela diz que “não gosta de gatos e de nada clandestino”, referindo-se à rede de mangueiras. “Fui até a Sabesp tentar resolver a situação, mas não consegui”, reclama.
ÁGUA-NET – Ligações ilegais de água (mangueiras azuis), no alto dos postes, abastecem o Jardim Vera Cruz
Mozart Gomes/CMSP
Em nota à Apartes, a Sabesp informou que um projeto para a implantação de redes de água e esgoto já foi aprovado. Mas, ressalta, a responsabilidade pela execução das obras é da Prefeitura, pois se trata de área a ser urbanizada pelo Programa Mananciais. Por sua vez, a Secretaria Municipal de Habitação diz que as obras já foram iniciadas.
A água-net do Jardim Vera Cruz foi um dos problemas analisados pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Sabesp, criada para averiguar os contratos firmados entre a companhia e a Prefeitura Municipal de São Paulo.
Durante nove meses, a CPI realizou mais de 60 sessões, seis audiências públicas nos bairros, duas diligências (no Jardim Vera Cruz e na Vila Nova Celino) e ouviu 32 depoimentos de autoridades, como promotores, especialistas em recursos hídricos e representantes da sociedade. Entre elas estavam o presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu, o secretário estadual de Saneamento e Recursos Hídricos, Mauro Arce, a ex-presidente da Sabesp Dilma Pena (quando ainda estava no comando da Sabesp) e seu sucessor, Jerson Kelman.
Tanto Dilma quanto Kelman compareceram duas vezes à CPI. Em sua última participação, ocorrida em 13 de maio, o atual presidente da companhia garantiu que não haverá rodízio d’água este ano na cidade. “Não há previsão de rodízio neste ano porque temos uma condição que nos permite diminuir a retirada de água da Cantareira e a possibilidade de abastecer regiões, atendidas por ela, com outros sistemas produtores”, explicou Kelman.
MEDIDAS
Em 10 de junho, a CPI da Sabesp aprovou seu relatório final, em que responsabiliza a empresa pela falta de água em São Paulo, recomenda mudanças na relação entre a Prefeitura e a companhia e sugere que a cidade tenha uma autoridade reguladora e fiscalizadora municipal, para monitorar a política de água.
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Luiz Augusto Daidone/Prefeitura de Vargem
Segundo o texto, a empresa de saneamento não fez o planejamento devido diante da crise de água na cidade e nem se preparou para amenizá-la. “Com a escassez da água, tornou-se evidente a falta de planejamento da Sabesp que, mesmo diante de seguidos alertas do risco de redução do estoque do sistema, não tomou medidas a tempo de evitar a situação atual, em que a população se vê obrigada a consumir água do fundo da represa e não sabe até quando contará com o abastecimento regular”, aponta o relatório.
Os membros da Comissão questionaram o papel da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), que é estadual e pode, segundo os vereadores, ter sua independência comprometida na fiscalização da Sabesp, também subordinada ao governo do Estado. Segundo Nelo Rodolfo (PMDB), integrante da CPI, uma agência municipal teria mais condições de fiscalizar o contrato da Sabesp com a Prefeitura. “Esse contrato tem de ser atualizado todo ano”, diz o parlamentar. O acordo vigente não prevê atualização.
FISCALIZAÇÃO – Contrato entre Prefeitura e Sabesp deve ser atualizado anualmente, defende Nelo Rodolfo
Fábio Lazzari/CMSP
Entre as recomendações feitas pela CPI, Laércio Benko (PHS), presidente da Comissão, destacou o envio de cópias do relatório, pela CMSP, à Bolsa de Valores de Nova York, onde a Sabesp tem suas ações negociadas. Segundo ele, a medida serviria para os acionistas terem “a noção do que está acontecendo aqui em relação à crise hídrica e que a água está sendo utilizada para a obtenção de lucro, em vez de ser tratada como algo necessário à subsistência humana”. Benko critica que “a Sabesp tem brincado com a água”.
O único membro da CPI que não votou pela aprovação do relatório foi Mario Covas Neto (PSDB), alegando que concordava com grande parte do texto, mas não na totalidade. “Se o regimento da Câmara permitisse o voto ‘favorável com ressalvas’, era assim que eu votaria, mas essa possibilidade não existe”, explicou o vereador à Apartes. Entre as discordâncias, Covas Neto diz que “o relatório fala em criar agência da água municipal, mas um órgão regulador metropolitano é mais adequado, pois a água usada em São Paulo passa por vários municípios”.
IMPRECISÕES
Em nota à imprensa, a Sabesp afirmou que a CPI não levou em conta “que a seca de 2014 foi um evento extremamente raro, com probabilidade de ocorrer, em média, uma vez a cada 250 anos”. A empresa também afirma que a Comissão se equivocou ao concluir que a população não foi informada sobre a crise hídrica. “Além de comunicar diariamente pela imprensa a situação de escassez de chuvas, a Sabesp realizou oito campanhas publicitárias ao longo de 2014, com mais de 3 mil inserções de TV e mais de 13 mil de rádio, o que permite estimar que cada paulistano foi impactado, no mínimo, 40 vezes pelas mensagens de economia de água”, diz o texto.
Ainda segundo a Sabesp, existem algumas imprecisões no relatório. Por exemplo, a empresa questiona a afirmação de que a água de reserva traria riscos à saúde. “Os autores do documento ignoraram que esta mesma água abastece Campinas há mais de 30 anos, sem que se tenha constatado qualquer prejuízo à saúde dos consumidores”, relata a nota da empresa.
Já a Arsesp garantiu à Apartes que “é independente administrativa e financeiramente e segue as diretrizes legais, exercendo com profissionalismo o seu papel regulador”.
Mesmo com a conclusão dos trabalhos da CPI, os vereadores se comprometeram a continuar fiscalizando as atividades da Sabesp na cidade. Laércio Benko informou que existe a possibilidade de os parlamentares entrarem com uma ação popular para que os paulistanos sejam indenizados pelos problemas provocados pela companhia. “O que os munícipes têm sofrido não é pouco”, declarou o presidente da Comissão.
SAIBA MAIS
Documento
Relatório da CPI da Sabesp. www.saopaulo.sp.leg.br/atividade-legislativa/cpis/comissoes-encerradas
Site
Sabesp. www.sabesp.com.br
Principais propostas
Números
Composição da CPILaércio Benko (PHS) – presidente |
Entrevista > Pedro JacobiMatheus Briet/CMSP Para o sociólogo Pedro Jacobi, professor da pós-graduação em ciência ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP), os paulistanos têm de mudar a forma como se relacionam com os recursos hídricos. “É preciso mudar a cultura da água, somos uma sociedade com pouca cultura comunitária, não temos um olhar coletivo”, afirma. Jacobi, que é autor de livros sobre governança ambiental e editor da revista Ambiente&Sociedade, responsabiliza principalmente a Sabesp pelos problemas no fornecimento e defende “o investimento público, responsável, transparente, debatido” para que novas crises sejam evitadas. Quais as causas da crise hídrica? Jacobi: Estamos passando por uma crise essencialmente relacionada à falta de governança por parte da Sabesp. Sem dúvida, tem um componente climático, mas ele já podia ser observado na década de 1990. A cidade ficou muito dependente das águas do Sistema Cantareira, cujas obras são da década de 1970, e não houve investimentos que levassem em conta que as mudanças climáticas exigiam a busca de novas fontes de recursos hídricos. O que os paulistanos podem esperar do futuro? Procuro não criar alarmismo, porém temos de ser realistas. A Cantareira vai demorar muito tempo para voltar ao normal. Alguns especialistas estimam em até 10 anos, cinco no mínimo. Estão sendo feitos investimentos, mas são de longo prazo. Isso significa que a sociedade como um todo terá de se acostumar a reduzir o consumo de água, mudar os hábitos de consumo. O poder público e os meios de comunicação têm de discutir sempre essa questão. Mas sem culpar o cidadão, que faz aquilo que sempre fez porque nunca foi educado pra fazer diferente. Como avalia a CPI da Sabesp? A CPI teve um papel importante, trouxe à tona a falta de transparência da gestão da coisa pública, a falta de prestação de conta por parte da Sabesp. Não dá para esconder, estamos numa situação de crise: muitas pessoas não estão tendo acesso à água da forma adequada. O que o poder público pode fazer? Promover a transparência, a prestação de conta e um diálogo permanente com a sociedade sobre como lidar com a crise da água no dia a dia. Isso é fundamental. A empresa de saneamento tem de proteger as fontes de água. Mas há também a questão da habitação popular em área que deveria ser protegida. Precisamos saber como lidar com o problema da exclusão social, com a necessidade de promover moradia. E como a população deve agir? Terá de consumir água de outra maneira, usar menos. Precisamos fazer tudo para nos proteger da crise climática, incentivar telhados verdes, reuso de água e, obviamente, redução e uso mais racional. Por exemplo, uma grande quantidade de água é consumida de forma inadequada porque muitas pessoas ainda não trocaram a válvula de descarga por outra mais econômica. Temos de ter prevenção e olhar para o futuro, que está se modificando. Vivemos no antropoceno, era na qual o homem está interferindo na natureza. |
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