Diferente e em frente
Pessoas com síndrome de Down podem ter uma vida autônoma, de estudo e trabalho, mas preconceito ainda é a maior barreira
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
DIFERENTE – Atriz e dramaturga, Tathiana Piancastelli sonha ganhar um Oscar e se apresentar na Broadway
Ricardo Rocha/CMSP
Tathiana Piancastelli, de 31 anos, é atriz e autora da peça Menina dos meus olhos, que se prepara para uma temporada na Europa após apresentações em Miami e Nova York, desde 2013. No espetáculo, representado em português, Tathiana interpreta uma garota com síndrome de Down atormentada com a desinformação dos pais, para quem a filha não tem capacidade de escolher o próprio namorado. Na vida real, a dramaturga namora, luta capoeira, pratica natação, escolheu sua profissão e tem o total apoio dos pais. Mas para compor a personagem usou sua experiência pessoal, já que tem a síndrome. “Sofri preconceito tantas vezes que já nem me lembro mais”, conta.
Gute Garbelotto/CMSP
A síndrome influenciou Tathiana a escolher o tema da peça e deu-lhe características como os olhos oblíquos e a baixa estatura, entre outras. Mas as inspirações da atriz vêm de algo maior: seu amor pela Broadway, região de Nova York em que são exibidos os espetáculos mais prestigiados do mundo. “Adoro as peças da Broadway, e eu posso estar lá também!”, anima-se a dramaturga, que adoraria participar de um musical nos Estados Unidos. Outro sonho é gravar um filme: “Quem sabe ganho um Oscar? Ou um Kikito aqui no Brasil?”, diz a artista.
Se Tathiana levar o Kikito, não será a primeira pessoa com Down a conseguir esse feito. Os atores Ariel Goldenberg e Rita Pokk, ao lado de Breno Viola (que também é faixa preta no judô), levaram em 2012 o prêmio Kikito especial do júri no Festival de Cinema de Gramado, pela atuação no filme Colegas, no qual interpretam jovens que fogem de carro para viver aventuras. Na trama, nem é necessário falar sobre a inclusão. Os protagonistas apenas vivem sua história.
Fora das telonas, Rita é assistente de recursos humanos em uma rede de drogarias e é casada há 11 anos com Ariel, que trabalha na mesma função, mas em uma organização não governamental (ONG). “Se os normais podem trabalhar, casar, atuar e algumas outras coisas, por que os Down não?”, disse Rita no Plenário da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), em 20 de março, véspera do Dia Internacional da Síndrome de Down, em evento organizado pelo vereador Calvo (PMDB).
AMISTOSOS – “Funcionários com a síndrome melhoram a saúde organizacional”, diz Estefania Lima, do Projeto Outro Olhar
Ricardo Rocha/CMSP
A data deve entrar também para o calendário municipal, para que se concentrem nesse dia mais ações oficiais de esclarecimento. Calvo, que é médico, propôs o projeto de lei (PL) 49/2015 para criar o Dia Municipal da Síndrome de Down, a ser celebrado em 21 de março. O objetivo é “chamar a atenção da sociedade para a luta por direitos iguais, bem-estar e inclusão das pessoas que nasceram com a síndrome”, explica a justificativa da proposição.
O dia escolhido, 21/3, tem a ver com a presença de um cromossomo a mais (três, em vez de dois) no par número 21 das células dos indivíduos com Down. Trata-se de um distúrbio genético, também chamado de trissomia do cromossomo 21, que atinge um a cada 600 nascidos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. “Na vasta maioria, entre 95% e 97% dos casos, a ocorrência é completamente aleatória; não importa raça, origem étnica ou nível social, acontece com todo mundo”, explica à Apartes o médico brasileiro Alberto Costa, professor PhD da divisão de neurologia pediátrica da universidade norte-americana Case Western Reserve, que desenvolve pesquisas sobre qualidade de vida de pessoas com síndrome de Down.
Costa devotou-se ao tema após o nascimento da filha Tyche (fortuna, em grego), há 20 anos, com a a trissomia. A garota acaba de concluir o nível médio e sonha estudar cálculo na faculdade. E está bem perto disso, já que foi aprovada no colegial nos três níveis de álgebra e também em geometria, pré-requisitos para ingressar na universidade. Quando era mais nova, o pai lhe dava equações de álgebra à noite e, pela manhã, ela trazia resolvidas. O professor, no entanto, deixa claro que “esse tipo de performance na área da matemática não é comum para uma pessoa com síndrome de Down”, pois varia de acordo com a capacidade de cada indivíduo.
A Tati, da Turma da Mônica, foi criada por Mauricio de Sousa em homenagem a Tathiana Piancastelli. A personagem, lançada em 2008, é alto-astral, adora ver os amigos felizes e sempre encontra saídas inteligentes e divertidas para as situações.
Maurício de Sousa Produções
Um dos principais esforços de Costa é acabar com falsas crenças a respeito dos dois mundos em que o cientista transita: o dos direitos da pessoa com síndrome de Down e o da ciência. Os movimentos liderados pelos pais lutam para que a síndrome não seja tratada como doença e que seus filhos sejam aceitos e vistos como indivíduos até com vantagens na saúde, em relação à média da população. É menor, por exemplo, o risco de terem tumores sólidos, como o câncer de mama. Segundo o pesquisador, há vários casos descritos de mulheres com Down que não desenvolveram a doença, enquanto as irmãs e mãe tiveram.
Pessoas com a síndrome raramente morrem de infarto do miocárdio produzido por isquemia cardíaca (diminuição da passagem de sangue pelas artérias coronárias) e sofrem de hipertensão numa escala bem menor. “Ninguém pergunta o que a síndrome traz de benefícios”, diz, com bom humor, o pai de Tyche.
Por outro lado, a abordagem focada apenas nos direitos humanos pode restringir a percepção de que a maioria das pessoas com Down tem algum nível de deficiência intelectual e doenças associadas, como a maior sujeição a infecções de ouvido e respiratórias, envelhecimento precoce, má-formação cardíaca em 50% dos casos, deficiências visuais e fonoaudiológicas e risco maior de obesidade.
Ricardo Rocha/CMSP
Com a ajuda da ciência, as infecções que antes matavam o bebê com Down no primeiro ano de vida hoje são curadas com antibióticos. Os problemas no coração são resolvidos com cirurgia. As melhoras na capacidade cognitiva têm sido estudadas em pesquisas como a de Costa. E profissionais de diversas áreas estão cada vez mais atentos às peculiaridades de quem tem Down. Assim, quem nasce atualmente com a síndrome tem melhor qualidade de vida e expectativa de 60 anos, ante 30 para os nascidos até o fim do século passado.
Existem algumas lendas sobre a personalidade de quem tem Down, como a de que seriam mais sociáveis. A ciência aponta apenas maior hiperatividade nesse grupo e os pais frisam que cada indivíduo tem características próprias de comportamento. Entretanto, Patricia e Fernando Heiderich, pais de Tathiana, acreditam que pessoas com a síndrome se expressam sem julgamentos, são mais autênticas e conseguem perceber melhor as emoções alheias. O casal é cofundador do Instituto Meta Social, que busca promover a inclusão e reduzir o preconceito acerca do tema.
Juntando os dois lados, de cientista e de pai, Costa procura olhar pelo ângulo otimista. Para ele, a resistência a algumas doenças entre pessoas com Down é prova de que a diversidade é saudável à sobrevivência da espécie humana no longo prazo. “O mundo vai mudar muito, e quanto mais diversos nós formos, se aparecer um vírus louco vai ter mais gente na comunidade com resistência a ele”, acredita.
NEUROSE
Para contribuir com o esclarecimento, também tramita na CMSP o PL 126/2013, da vereadora Edir Sales (PSD), que pretende instituir na cidade o Programa de Conscientização e Orientação sobre Síndrome de Down, um conjunto de ações permanentes do poder público para ensinar sobre convivência, respeito e trato com esses indivíduos. Os públicos preferenciais do projeto são os profissionais de educação, de saúde e familiares. Mas a ideia é levar conhecimento a toda a sociedade. “Como legisladores, devemos orientar e conscientizar a população para que respeite e integre de maneira igualitária à sociedade as pessoas com síndrome de Down”, diz Edir Sales na justificativa de seu projeto.
CONHECIMENTO – A vereadora Edir Sales propôs um programa permanente de conscientização e orientação sobre a síndrome
Luiz França/CMSP
De forma contraditória, o fato de a síndrome ser uma das alterações genéticas descritas há mais tempo (pelo médico inglês John Langdon Down, em 1866) ajudou a consolidar informações pouco aprofundadas no imaginário geral. Na década de 70, já eram usuais os exames para detectar o distúrbio nos fetos. “A síndrome existe há tanto tempo como diagnóstico específico em teste laboratorial que as pessoas se esqueceram da bioética; assumiram que essa vida não tem valor”, diz Costa. A partir dos 35 anos, muitas gestantes são submetidas a exames invasivos que podem detectar a síndrome, mas também provocar aborto espontâneo. Isso porque, com mais idade, a mãe tem maiores chances de dar à luz um filho com Down.
Um estudo publicado em 1983 por Ernest B. Hook e que, segundo Alberto Costa, é um dos mais completos, mostra que mulheres entre 25 e 29 anos têm probabilidade de gerar uma criança com síndrome a cada 1.100 nascimentos. Aos 35, a porcentagem é de uma em 350; aos 40, uma em 100 e, aos 48, uma em 10. Para o médico Alberto Costa, a propagação desses dados consolidou o medo e uma “ênfase quase doentia” da sociedade em atribuir culpa às mães que decidem ter filhos em idade mais avançada, além de um valor negativo à vida com Down. Com o passar do tempo, o homem também tem aumento na chance de gerar um filho com a síndrome. Entretanto, somente por volta dos 60 anos terá a mesma porcentagem de uma mulher com 35.
“Se a mãe está doida para ter um filho, está no ideal de sua vida profissional e pessoal, é responsável o bastante e ficou grávida, deve pensar muito antes de fazer exames invasivos”, aconselha Costa. “Não tem por que ficar apavorada, pois mesmo no pior caso haverá 9 chances em 10 de o filho não ter Down, de crescer saudável”, explica o pesquisador. Antes do nascimento da filha Tyche, a esposa do médico, Daisy, foi submetida a um exame invasivo, com menos de 0,5% de chance de causar aborto, mas que acabou por interromper a gestação de um bebê sem distúrbios genéticos.
MUNDO DE SONHO
Os pais de Tathiana, Ariel, Rita, Breno e Tyche não subestimaram a capacidade de seus filhos e isso foi muito importante para que eles se desenvolvessem melhor. Essas pessoas podem e devem ser incluídas no mercado de trabalho. Indivíduos com Down são ótimos candidatos a tarefas repetitivas e de suporte, que geralmente despertam pouco interesse nos demais trabalhadores. Assim como Ariel e Rita, que trabalham como auxiliares, Tathiana já foi assistente de cabeleireiro e de fisioterapeuta.
Gute Garbelotto/CMSP
Indivíduos com a síndrome também são indicados às vagas de atendimento ao cliente e que requerem rotina e organização. “Eles conseguem realizar tarefas repetitivas com facilidade, são atenciosos e melhoram a saúde organizacional; o ambiente fica mais amistoso”, explica Estefania Lima, integrante do Projeto Outro Olhar, do Instituto Alana para conscientização sobre as singularidades e potencialidades dos indivíduos com Down.
Antes do mercado de trabalho, a vaga na escola está garantida pela Lei Federal 7.853/1989, que reserva matrícula em instituições convencionais, públicas ou particulares, a pessoas com deficiência capazes de se integrar. Segundo Estefania, hoje a maior parte das crianças com Down está matriculada na escola regular, apesar de existirem ainda muitas barreiras: “O benefício para a pessoa com a síndrome é o de poder estudar e aumentar sua couraça ao ser mais cobrada, tratada como as outras pessoas”, diz. Para os alunos sem deficiências, a expectativa é de que, quando estiverem no mercado de trabalho, pensem em contratar pessoas “diferentes” ou oferecer soluções adequadas a elas.
Consciente de suas capacidades e limitações, Tathiana conta que deseja “viver uma história de vida muito bonita” ao lado do namorado, o norte-americano Aaron Malman (também com Down). Ela diz que adoraria interpretar, na Broadway, a cena em que “a sonhadora” Sophie, protagonista do musical Mamma Mia!, canta I have a dream (Eu tenho um sonho, em inglês), do grupo Abba. A protagonista vive um mundo em que pode falhar e, ainda assim, abraçar o futuro. Em suas fantasias, Sophie pode atravessar a correnteza em seu próprio ritmo. “Eu tenho um sonho, uma fantasia que vai me ajudar a lidar com a realidade (…). Acredito em algo bom em tudo o que vejo”, diz a canção que Tathiana quer interpretar nos palcos.
Saiba mais
Publicação
O valor que os colaboradores com síndrome de Down podem agregar às organizações. Vicente Assis, Marcus Frank, Guilherme Bcheche e Bruno Kuboiama. McKinsey&Company. 2014. Disponível online.
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