Nº16 – Economia

Ligada 24h

Em funcionamento há seis meses, ônibus noturnos levam milhões de paulistanos para aproveitar o comércio e os serviços que não param na madrugada

Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br

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Sidnei Santos/SPTuris

São 2h da madrugada de uma quarta-feira e, na Academia Gaviões, na Bela Vista, o ortopedista Flammarion Mendes do Nascimento faz exercícios. “Gosto desse horário, pois a academia está mais vazia e não tem fila nos aparelhos”, conta o médico, garantindo que diariamente treina nesse horário. “Me faz bem e eu durmo melhor”, justifica. Seu professor, Tiago Bonfim, diz que a academia não chega a lotar de madrugada, mas sempre tem movimento. “Alguns cantores famosos vêm pra cá nesse horário para fazer o treino sem ser interrompidos pelos fãs”, revela.

Uma hora depois, no pet shop Petz, na Vila Olímpia, o taxista Andre Luiz Tomassetti compra ração canina para seus três yorkshires – Nico, Jake e Maila. “Estava trabalhando e antes de ir pra casa passei por aqui”, conta, enquanto percorre os corredores da loja. O gerente do estabelecimento, Alan Couto, diz que grande parte da clientela da noite é formada por taxistas, médicos e policiais que procuram comida, material de higiene e brinquedos para seus bichos de estimação.

ROMANTISMO – Rosas vermelhas são as flores mais vendidas no final da noite, diz Ariel

Marcelo Ximenez/CMSP

A manhã se aproxima. Na Padaria Iracema, em Santa Cecília, entre um pedido e outro o gerente Marcelo Jonas da Silva dá uma pausa para falar com a reportagem. Segundo ele, nos dias úteis a maioria dos clientes é da turma que trabalha na noite. “Mas no final de semana o público muda e aparece gente indo ou vindo das baladas”, complementa. Enquanto a madrugada não termina, ainda dá tempo de passar pela Avenida Doutor Arnaldo, no Pacaembu, e comprar flores. “A maior procura é por rosas vermelhas, com os rapazes querendo fazer uma média com as garotas”, afirma Ariel Mastroti, vendedor do Box 5.

Esses são alguns exemplos de comércios e serviços que funcionam na cidade de São Paulo na madrugada. Além dos tradicionais, como hospitais, bares, farmácias, chaveiros e funerárias, há também os menos conhecidos, como temakerias, cinemas e loja de material de construção, mostrando que a cidade não dorme.

A dificuldade de se deslocar, um dos obstáculos para que os paulistanos aproveitem essas opções “fora do horário comercial”, foi discutida na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) e, para resolver o problema, a Casa aprovou iniciativa que instituiu o ônibus circular noturno, a Lei 15.934. Os autores da proposta, vereadores Gilson Barreto (PSDB), Marquito (PTB), Pr. Edemilson Chaves (PP) e Vavá (PT), explicaram na justificativa do projeto de lei que a circulação dos ônibus de madrugada beneficia toda a população, pois “mais pessoas podem circular para usufruir a vida noturna da cidade, fazendo girar ainda mais a economia e gerando mais empregos”.

DIA E NOITE – “Em São Paulo as pessoas circulam 24 horas”, afirma o vereador Pastor Edemilson Chaves

Mozart Gomes/CMSP

O serviço, batizado de Noturno, entrou em funcionamento em fevereiro de 2015. Nos seis primeiros meses, 4,96 milhões de pessoas usaram ônibus na cidade entre 0h e 4h, segundo pesquisa realizada pela São Paulo Transporte S.A. (SPTrans) e divulgada em setembro. “O Noturno está demonstrando que tem capacidade de atendimento e vem servindo de modelo para futuras melhorias em todo o sistema de operação dos ônibus na cidade”, afirma o secretário municipal de Transportes, Jilmar Tatto.

Segundo a SPTrans, 44,7% dos usuários disseram que precisavam ser atendidos por esses novos horários. O levantamento da empresa aponta que 78% de quem utiliza o Noturno são trabalhadores da madrugada, sendo que três quartos deles atuam no setor de serviços. Outros 17% dos passageiros usam as linhas para lazer e 3% são estudantes.

Vavá, que já foi cobrador e motorista de ônibus, lembra que quando trabalhava de madrugada percebia que os passageiros eram, principalmente, garçons e cozinheiros voltando do trabalho e feirantes começando o dia de serviço. “Quem perdia um ônibus tinha de esperar muito pelo outro, agora não mais”, afirma o parlamentar. Segundo ele, o projeto foi apresentado também com o intuito de diminuir o número de acidentes de trânsito. “As pessoas que beberem, em vez de ir de carro se divertir à noite, poderão ir e voltar de ônibus”, sugere Vavá.

AGILIDADE – “Quem perdia um ônibus tinha de esperar muito pelo outro”, lembra o vereador Vavá

Equipe de Eventos/CMSP

O Pastor Edemilson enaltece a importância da lei e lembra que “São Paulo é uma megalópole onde tem gente circulando 24 horas, para ir e vir do trabalho e lazer e para necessidades de saúde, em busca de atendimentos de emergência”.

MUDANÇA DE IMAGEM

De acordo com a SPTrans, 475 veículos (mais 71 reservas) atuam no Noturno, que funciona em todas as regiões da cidade. Equipes da
SPTrans e da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) estão monitorando e ajustando o cumprimento de horários e o desempenho. A Guarda Civil Metropolitana (GCM) dá apoio à segurança operacional, enquanto o Departamento de Iluminação Pública (Ilume) tem providenciado iluminação para os 160 pontos de conexões da rede.

A rede de ônibus na madrugada conta com 50 linhas em grandes corredores, que funcionam com veículos partindo em intervalos de 15 minutos. Essas linhas alimentam outras 101, que fazem a ligação com os bairros, com intervalos de 30 minutos entre as partidas. No total, 32 terminais são atendidos, entre municipais e metropolitanos.

NOTURNO – O ortopedista Flammarion do Nascimento faz academia na madrugada

Marcelo Ximenez/CMSP

Os coletivos circulam perto de hospitais, velórios, delegacias, casas de espetáculos e arenas esportivas, entre outros estabelecimentos em que, tradicionalmente, há grande concentração de pessoas. Também passam pelas principais estações de metrô ou nas suas imediações.

A diretora de Planejamento da SPTrans, Ana Odila de Paiva Souza, reforça o sucesso dos ônibus da madrugada. Segundo ela, de sábado para domingo o número de usuários passou de 24 mil em fevereiro deste ano para 38 mil em agosto. “Isso mostra que estamos conseguindo mudar a imagem dos ônibus. Os usuários estão confiando mais”, acredita. De acordo com a diretora, o número de atrasos na madrugada tem sido muito pequeno.

Uma das usuárias do Noturno, Luciene Santos da Silva, que sai do trabalho às 4h, elogia o fato de os ônibus passarem de 15 em 15 minutos.

VANTAGENS

Para o economista-chefe da Associação Comercial de São Paulo, Marcel Solimeo, é importante haver mais ônibus circulando de madrugada. Segundo ele, para um comércio funcionar de forma ininterrupta, três fatores são necessários: segurança, iluminação e transporte. Solimeo explica que nas madrugadas a cidade continua funcionando e há uma demanda para ser atendida pelos estabelecimentos. “São Paulo tem vida 24 horas e o comércio reflete essa característica”, diz.

ALTERNATIVO – O taxista Andre Tomasseti aproveita o pet shop que não fecha para comprar ração para seus cachorros

Marcelo Ximenez/CMSP

O economista também chama a atenção para uma vantagem aos comerciantes: “Como não é todo mundo que fica aberto, o comércio tem uma vantagem adicional, a menor concorrência”. Porém, ressalta que o comércio como um todo está passando por um processo de desaquecimento muito forte em virtude do desemprego, da queda de renda, do crédito caro e da falta de confiança do consumidor. “O problema não é a hora, é o bolso”, resume.

A instabilidade econômica também levou o Grupo Pão de Açúcar a reduzir o horário de alguns supermercados Extra e Pão de Açúcar que funcionavam 24 horas. Segundo nota do grupo à Apartes, a decisão foi baseada em estudos de comportamento dos consumidores, que “apontaram baixa adesão às compras no período da madrugada”. Em dezembro, o Grupo decidiu que algumas lojas do Extra voltariam a funcionar o dia inteiro, mas as do Pão de Açúcar continuariam a fechar mais cedo.

Do ponto de vista dos trabalhadores da madrugada, atuar nesse período pode ser bem vantajoso. Segundo a economista Fernanda Della Rosa, assessora da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FecomercioSP), “uma jornada de trabalho fora do horário de pico, principalmente para quem necessita utilizar o transporte público, é uma possibilidade interessante”.

Fernanda ressalta que a partir das 22 horas o empregado tem direito ao adicional noturno, um complemento de renda de, no mínimo, 20% sobre a hora trabalhada durante o dia. Um desses beneficiados é o condutor de ônibus Dorivaldo Castro Ribeiro, há 28 anos no turno da madrugada. “Esse horário não atrapalha em nada”, conta Ribeiro, que completa: “Minha esposa nem reclama porque sabe que eu gosto”.

SATISFAÇÃO – Há 28 anos trabalhando na madrugada, o motorista Dorivaldo Ribeiro diz preferir o horário

Marcelo Ximenez/CMSP

Para a cidade, o comércio 24 horas também traz contribuições. “A concentração de pontos comerciais em determinadas ruas traz efeitos positivos para o lugar, melhorando a iluminação, aumentando o número de passantes e a segurança, possibilitando o acesso aos diversos serviços e produtos”, explica a economista.

A Associação Comercial e a FecomercioSP ainda não realizaram um estudo específico sobre o comércio 24 horas na capital. De acordo com Elaine Buava, gerente administrativa das unidades de Perdizes e da Bela Vista da Academia Gaviões, o horário da madrugada é responsável por cerca de 10% da receita total. “Abrimos 24 horas mais pelo diferencial, para reforçar a marca, para atender quem não tem disponibilidade no horário comercial”. Elaine explica que parte do público noturno é formada por médicos e profissionais liberais e artistas, por conta da flexibilidade de horário.

Livros e cultura 24×7

Maior biblioteca pública de São Paulo, a Mário de Andrade, localizada no centro da cidade, funcionará 24 horas, sete dias por semana, a partir de janeiro. A mudança ocorre para melhorar a capacidade de atendimento do local, hoje disputado por 1.200 visitantes ao dia. “Como não podemos aumentar o espaço físico, a única opção é ampliar o horário de atendimento”, explica o diretor Luiz Armando Pagolin.

A mudança é embasada em pesquisas que apontaram o desejo de muita gente em usar o espaço em horários alternativos, principalmente acadêmicos e estudantes que trabalham em horário comercial. Atualmente, a biblioteca funciona de segunda a sexta, das 8h30 às 20h30, e aos sábados, das 10h às 17h.

O atendimento na madrugada e aos domingos será automatizado. Haverá opções de lazer, como saraus e espetáculos teatrais, além de um café. Segundo Pagolin, a Biblioteca Mário de Andrade tem 56 mil usuários cadastrados, com carteirinha.

Laboratório de Comércio e Cidade da USP

ENTREVISTA >
Heliana Vargas

A arquiteta e economista Heliana Comin Vargas, coordenadora do Laboratório de Comércio e Cidade da Universidade de São Paulo (USP), explica que um comércio 24 horas não se define “por decreto”. Segundo ela, a existência e viabilidade das atividades 24 horas depende “da presença de consumidores para os produtos e serviços oferecidos  durante o período noturno”.

Qual a origem do comércio 24 horas em São Paulo?
Heliana Vargas: Além das farmácias,  que sempre foram uma atividade de funcionamento 24 horas  e que no passado organizavam-se por meio de rodízios de plantões, essa modalidade de comércio em São Paulo teve origem em lojas de conveniência de postos de gasolina, que também permaneciam abertas. Depois, alguns estabelecimentos, principalmente os que ofereciam serviços de refeições em locais de maior fluxo, começaram a surgir, como bares e padarias. Então, alguns supermercados iniciaram o processo com poucas lojas e ampliaram para quase toda a rede, mas recentemente interromperam esse horário.

Qual a situação atual desse comércio?
Só as maiores cidades, com grande mercado, conseguem viabilizar esses tipos de atividades em decorrência do funcionamento noturno de hospitais, indústrias, gráficas, hotéis, lazer noturno, centros de telemarketing e carga e descarga para estabelecimentos das mais diversas naturezas, entre outros. A existência desse fluxo de pessoas em grande quantidade é o que animará o comércio e serviços para permanecerem abertos 24 horas.  Não se pode definir o funcionamento ininterrupto de ruas ou cidades por decreto. Tudo é uma questão de haver mercado.

Quais as vantagens para o município?
Quando as cidades atingem uma dinâmica e grandeza suficientes para atrair o funcionamento de uma atividade 24 horas, esta passa a funcionar como um elemento de atração de novos fluxos, principalmente os relacionados  à cultura e ao lazer, criando oportunidades de emprego. Bares e restaurantes são um bom exemplo dessa condição.  A realização de atividades noturnas também pode significar um ganho de produtividade, seja para a empresa ou para o empregado que se utiliza da cidade no contrafluxo (energia, redes virtuais, telefonia, trânsito).

SERVIÇO

Linhas de ônibus que circulam de madrugada
www.sptrans.com.br/noturno

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