O imortal quatrocentão
De família tradicional, ele é o único ex-vereador paulistano a fazer parte da Academia Brasileira de Letras
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
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Assim, nem por gracejo se lembraria alguém de pôr em dúvida o meu brasileirismo. Paulista sou, há quatrocentos anos. Prendem-me no chão de Piratininga todas as fibras do coração, todos os imperativos raciais. A mesa em que trabalho, a tribuna que ocupo nas escolas, nos tribunais, nas assembleias políticas deitam raízes, como o leito de Ulisses, nas camadas mais profundas do solo, em que dormem para sempre os mortos de que venho. A fala provinciana, que me embalou no berço, descansada e cantada, espero ouvi-la ao despedir-me do mundo, nas orações da agonia. Só em minha terra, de minha terra, para minha terra, tenho vivido; e, incapaz de servi-la quanto devo, prezo-me de amá-la quanto posso.
Trecho do discurso de Alcântara Machado na cerimônia de posse da ABL
Reprodução: Ricardo Rocha/CMSP
Se existe um paulista que pode ser chamado de quatrocentão é José de Alcântara Machado de Oliveira. O político e escritor, autor de um dos mais importantes livros sobre a história de São Paulo, Vida e morte do bandeirante, conhecia bem a história de sua família. Seu primeiro parente a pisar em solo brasileiro foi o português Antônio de Oliveira, em 1532, acompanhando Martim Afonso de Sousa, donatário da Capitania de São Vicente. Alcântara Machado orgulhava-se de suas origens e da terra onde nasceu. Ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1933, fez questão de proclamar: “Paulista sou, há quatrocentos anos. Prendem-me no chão de Piratininga todas as fibras do coração”.
PATRIOTISMO – O brigadeiro José Joaquim, avô de Alcântara Machado, foi um dos primeiros a nomear um filho como Brasílio
Reprodução: Ricardo Rocha/CMSP
Alcântara Machado nasceu em 19 de outubro de 1875, em Piracicaba, interior de São Paulo, onde seu pai, Brasílio Augusto, era promotor. Ainda criança, foi estudar em São Paulo. Aos 15 anos iniciou o curso de Direito no Largo de São Francisco (hoje pertencente à Universidade de São Paulo – USP), faculdade da qual o pai era professor. Segundo seus conterrâneos, o talento para a oratória foi herdado de Brasílio, cujas participações em julgamentos atraíam grande público.
Em 1894 Alcântara Machado se formou e, no ano seguinte, foi nomeado professor de medicina legal e higiene pública na São Francisco, tornando-se o primeiro docente dessa cadeira sem o diploma de médico. Na área da medicina legal, escreveu livros como A hipnose, Suicídios na capital de São Paulo e A embriaguez e a responsabilidade social. O bacharel também foi um dos fundadores da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo.
No final do século 19, em viagem a Taubaté (SP), Alcântara Machado conheceu a futura esposa, Maria Emília de Castilho, filha de uma família de fazendeiros da região. O casal teve cinco filhos: Brasílio, Antônio, José, Iolanda e Teresa. Durante décadas morou em uma casa na Rua Dr. Frederico Steidel, no bairro de Santa Cecília. Para tristeza da família, a casa foi destruída para a construção do Elevado Costa e Silva, em 1970.
Ricardo Rocha/CMSP
Um dos netos do ex-vereador, Joaquim Alcântara Machado (filho de José) não chegou a conhecer o avô, que morreu antes de seu nascimento, mas é um admirador de seus livros. “Vovô tinha o domínio da língua, uma escrita fantástica, seu estilo é elegante demais, muito simples, não embola”, enaltece.
Das conversas que tinha com o pai, Joaquim concluiu que o avô, apesar de adorar a família, mostrava-se um pouco distante dos filhos, quando crianças. “Era o costume da época”, justifica o neto, que se lembra bastante da avó. “Vovó Emília gostava muito de ter os filhos e os netos por perto, todo domingo era sagrado: a gente ia visitar a casa dela”, conta Joaquim, que tem esse nome em homenagem ao trisavô, o brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira. “Tio Brasílio só me chamava de Brigadeiro”, recorda-se.
Em 1911, Alcântara Machado elegeu-se vereador, com 767 votos. Na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), por causa da experiência em Direito e em Medicina Legal, fez parte da Comissão de Justiça e Polícia. Tratou de questões como tráfego urbano, concessões de linhas de trem, limpeza pública e imposto predial. Em 11 de agosto de 1911, o parlamentar solicitou a substituição dos encanamentos dos esgotos da Rua Major Diogo, que, “por serem insuficientes e defeituosos, constituem uma constante ameaça à salubridade dos moradores”, segundo consta nos anais da Casa. Seus projetos e discursos na CMSP foram reunidos no livro Problemas municipais, publicado em 1917. Segundo Joaquim, seu avô costumava dizer que a função mais nobre de uma pessoa na sociedade é exercer a vereança. “O maior orgulho de vovô era ter sido vereador”, afirma.
PAI PRA FILHO – Na APL, o ex-vereador (à esquerda) ocupou a cadeira que havia sido do pai, Brasílio (à direita)
Reprodução: Marcelo Ximenez/CMSP
Um fato bem marcante da história paulistana chamou a atenção de Alcântara Machado: a inauguração do Theatro Municipal, em 1911. No Plenário da Câmara, ele repercutiu denúncias divulgadas pela imprensa de que a comissão organizadora do evento tinha privilegiado algumas pessoas de destaque na cidade, reservando-lhes os melhores lugares. “O Theatro Municipal foi feito à custa de todos, mas para o gozo de alguns; o dinheiro do pobre serviu para fazer o edifício, mas no edifício não se lhe dá ingresso”, lamentou o vereador.
Eleito deputado estadual, Alcântara Machado deixou a CMSP em 1915. Nove anos depois, foi para o Senado Estadual (na época, o Parlamento dos Estados também era bicameral). Mas a Câmara Municipal continuou presente em seus textos. No discurso de posse da ABL, em 1933, fez questão de ressaltar a bravura dos vereadores paulistanos, ao citar um episódio ocorrido em 1613, no qual eles protestaram diretamente ao donatário da Capitania, Domingos Pereira Jácome, sob a alegação de que estavam sofrendo “tamanhos desaforos”, pois eram “esfolados, destruídos e afrontados” pelos capitães e ouvidores.
No livro Vida e morte do bandeirante, publicado em 1929, o ex-vereador citou a Câmara em várias partes. Numa delas, comentando a pouca quantidade de livros em São Paulo, escreveu: “Das obras jurídicas, só uma Ordenação de Sua Majestade, código precioso de que não há nenhum exemplar na vila até 1587. Devia tê-lo a Câmara; falta, porém, à Municipalidade o dinheiro bastante para comprá-lo, ao que informam as atas edílicas”.
MUDANÇA – Quando era diretor, inaugurou a nova sede da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco
FDUSP
INTELECTUAL REVOLUCIONÁRIO
Vida e morte do bandeirante é considerada a obra-prima de Alcântara Machado. Utilizando testamentos e inventários dos moradores de 1578 a 1700, conseguiu descrever a vida cotidiana dos moradores de São Paulo durante os primeiros séculos de colonização. “Reduzir o estudo do passado à biografia dos homens ilustres e à narrativa dos feitos retumbantes seria absurdo tão desmedido quanto circunscrever a geografia aos estudos das montanhas”, justificou-se o autor no primeiro capítulo do livro.
Segundo o crítico Sérgio Milliet, o livro de Alcântara Machado é “um quadro de cores sombrias, de composição sólida, isento de fórmulas e de malabarismos literários”. Milliet completa que a obra “vem escrita no mais elegante e sereno estilo, numa linguagem limpa, acessível a qualquer leitor”.
Devido ao destaque no mundo literário, Alcântara Machado foi eleito para a Academia Paulista de Letras (APL) em 1919, e ocupou a mesma cadeira que havia sido de seu pai, Brasílio. Em 1929, tornou-se presidente da APL, repetindo a história do pai, primeiro presidente da instituição. O acadêmico José Fernando Mafra Carbonieri afirma à Apartes que Alcântara Machado deixou na APL “um histórico de cordialidade e firmeza, próprio dos pensadores que não se perturbam com controvérsias”.
Reprodução: Ricardo Rocha/CMSP
Em 20 de maio de 1933, o escritor tomou posse na cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo Silva Ramos. Com isso, tornou-se um “imortal”, como são chamados os membros da ABL. Um dos trechos do discurso de boas-vindas, feito pelo acadêmico Afrânio Peixoto, ressaltou que “uma obra de arte é apenas uma confissão involuntária, um depoimento fidedigno, e tanto maior, quanto mais fiel.” Segundo ele, a fidelidade de Alcântara Machado “está no sangue, indelével e exata”.
O ex-vereador também conquistou posições no campo do Direito. Em 1931, foi nomeado diretor da Faculdade de Direito de São Paulo. Seu grande legado foi ter construído a atual sede da instituição. Naquela época, as Arcadas, como a faculdade também é conhecida, fervilhavam de agitação política em oposição ao governo Getúlio Vargas, movimentação que levou à Revolução Constitucionalista de 1932. Com textos inflamados, Alcântara Machado foi um dos líderes do movimento. “Literatos, jornalistas, estudantes e mestres das escolas superiores: é contra eles que o ditador está enviando as suas metralhadoras”, alardeava o escritor, deixando claro que a elite intelectual paulista também estava contra o governo federal, segundo o livro Getúlio Vargas (1930-1945), do governo provisório à ditadura do Estado Novo, de Lira Neto.
Em 1932, no dia em que se comemora a criação dos cursos jurídicos no Brasil (11 de agosto), Alcântara Machado pronunciou pelo rádio um discurso que se tornou célebre: “Saudação aos estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo que nas linhas de frente estão restituindo aos brasileiros o Brasil”. No final, o professor chama os alunos de mestres e justifica: “Discípulos? Não. Porque a vossa atitude em 23 de maio e 9 de julho inverteu os valores e destituiu de seus cargos todos o mestres. Os únicos professores são vós e os vossos companheiros de armas. A trincheira é a vossa cátedra. E o Brasil inteiro está aprendendo convosco”.
Mesmo com a derrota do movimento militar paulista, em 2 de outubro, Getúlio Vargas convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1933. O ex-vereador foi eleito deputado federal e escolhido líder da bancada de São Paulo pelos parlamentares paulistas. Nos debates, procurava uma atitude conciliadora. “A obra de São Paulo, como de todos os paulistas, como de todos os brasileiros, deve ser, nesta hora de imensas responsabilidades, uma obra de reconstrução nacional, e não de demolição ou demagogia”, afirmou em pronunciamento no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, segundo o biógrafo Marcos Santarrita.
IRONIA DO DESTINO
Com a promulgação da Constituição de 1934, Alcântara Machado volta para São Paulo. No ano seguinte elege-se senador, mas o mandato dura pouco, pois em 1937 Getúlio Vargas dá o golpe, instala o Estado Novo e dissolve o Congresso. A pedido do Ministério da Justiça, Alcântara Machado redige um anteprojeto de Código Penal, em 1937. Após diversas mudanças por parte de comissões revisoras, o anteprojeto tornou-se o Código Penal Brasileiro de 1940. Contudo, o autor criticava o resultado final, alegando que havia sido muito modificado.
A paixão pela literatura e por São Paulo foi transmitida aos filhos, principalmente a Antônio, autor de Brás, Bexiga e Barra Funda, livro de contos que descreve a modernidade chegando à capital paulista nos anos 1920. Entretanto, uma apendicite interrompeu a carreira de Antônio de Alcântara Machado, que morreu em 1935, aos 33 anos. O ex-vereador homenageou Antônio e suas qualidades literárias ao lhe dedicar o livro Brasílio Machado, biografia publicada em 1937: “À memória de Antônio de Alcântara Machado, este livro que ele imaginava escrever”. Seis anos após a morte do filho, em 1° de abril de 1941, José de Alcântara Machado faleceu e foi enterrado em São Paulo.
Por uma dessas ironias que a história costuma pregar, o sucessor de Alcântara Machado na cadeira que ocupava na ABL foi o arqui-inimigo na Revolução de 1932: Getúlio Vargas. Mas o presidente do Brasil, seguindo a tradição dos imortais, no discurso de posse fez questão de elogiar o antecessor: “Sabia sobrepor-se, serena e patrioticamente, às contingências dos acontecimentos. Esquecendo-se de si, superior às suscetibilidades e às decepções, esteve sempre pronto a aplicar o saber e a sacrificar as comodidades pessoais em proveito das iniciativas úteis à coletividade”, afirmou Vargas, em 29 de dezembro de 1943.
A Câmara Municipal de São Paulo também homenageou seu ex-integrante em 1953, nomeando uma importante avenida, na época ainda em planejamento, que ligaria a região central à zona leste: a Radial Leste. Os então vereadores Berlinck Cardoso, Toledo Piza e Jarbas Tupinambá, na justificativa do projeto que deu origem à Lei 4.413/1953, afirmaram: “Do professor Alcântara Machado se pode dizer o que reconhecemos em todo homem criador: permanece sempre vivo, pois continua a agir depois da morte, não raro com mais vigor, através das ideias que pensou, das instituições que ajudou a fundar e da forma de vida”.
Campo Ponte Grande – O Estádio da Ponte Grande, primeiro do Corinthians, foi construído com a ajuda do ex-vereador
Memorial do Corinthians
O primeiro doutor corintiano
Em 23 de março de 1916, cinco anos após um grupo de operários ter fundado o Sport Club Corinthians Paulista, pela primeira vez apareceu nas atas de reuniões do clube um doutor: “Dr. Alcântara Machado”, que naquele ano foi aclamado presidente honorário do Timão.
Nos mandatos de vereador e deputado estadual e também como advogado, Alcântara Machado se esforçou para que, em 1916, o Corinthians conseguisse com a Prefeitura de São Paulo o terreno para erguer seu primeiro estádio, o da Ponte Grande, próximo à Ponte das Bandeiras, zona norte da cidade. Naquele ano, ao derrotar o Taubaté por 2 a 0 o time também ganhou uma taça de prata (foto) oferecida por Alcântara Machado.
A inauguração do estádio, em 1918, segundo o livro Coração corinthiano, de Lourenço Diaféria e Antônio de Almeida, foi um sucesso. Cerca de 10 mil pessoas ocuparam as dependências, mostrando que o futebol já era um esporte querido do público paulistano. Como homenagem, o pontapé inicial do jogo inaugural, contra o Palestra Itália (antigo nome do grande rival Palmeiras), foi dado por Alcântara Machado. A partida terminou empatada em 3 a 3.
A paixão pelo Corinthians passou para seus descendentes. O neto Joaquim conta orgulhoso que as trinetas demonstram entusiasmo pelo Timão. Aliás, um dos primeiros textos literários sobre o futebol foi escrito por um filho do ex-vereador, Antônio. No livro Brás, Bexiga e Barra Funda, lançado em 1927, há o conto Corinthians (2) vs. Palestra (1), que descreve um dos clássicos entre os times, também conhecidos como dérbi paulista.
“Delírio futebolístico no Parque Antártica. Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava”, escreve Antônio de Alcântara Machado. E, como era corintiano, na sua história o Corinthians derrota o Palestra por 2 a 1.
Saiba mais
Livro
Alcântara Machado. Marcos Santarrita. Academia Brasileira de Letras e Imprensa Oficial, 2011.
Sites
Academia Brasileira de Letras. www.academia.org.br
Academia Paulista de Letras. www.academiapaulistadeletras.org.br
Faculdade de Direito da USP. www.direito.usp.br
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