Divisão que multiplica
Compartilhamento é tendência na economia atual, mas regras e limites de uso ainda precisam ser definidos
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Colaboraram Karina Balan Júlio, do curso Repórter do Futuro, e Matheus Briet
A artista plástica e ativista internacional Adriana Bertini viaja o mundo e costuma aproveitar ao máximo as oportunidades de compartilhamento, que permitem diminuir custos e estar próxima da cultura dos locais visitados. Em Nova York, ela já dormiu no colchonete de um estúdio de cinema, reservado pelo aplicativo Airbnb. Pegou carona paga de moto em Chicago utilizando o Vayable, que também lhe permitiu participar de um jantar na casa de uma chef em Bruxelas.
Mas uma das situações mais marcantes de suas andanças ocorreu sem o uso de qualquer tecnologia: comeu direto no tacho, sem usar talheres, dividindo a refeição com mais 80 membros de uma mesma família em Dacar, no Senegal. “Saí de um super-hotel para um quarto em uma casa sem energia elétrica, onde a água do banho vinha direto do cano e as pessoas entravam o tempo todo no banheiro, que não tinha tranca na porta” lembra Adriana. “Achei tão bonito não faltar comida naquela miséria, de comerem todos juntos no mesmo tacho, respeitando as hierarquias… ali aprendi a compartilhar”, conta.
Enfim, são muitos os sites e aplicativos que propiciam o uso comum de carro, comida, hospedagem e experiências, e as inovações parecem não ter fim. Hoje, a grande novidade está no uso da internet para viabilizar o desejo, já antigo, de otimizar recursos ociosos de pessoas físicas e organizações. Cada vez mais popular, a prática ganhou nome: economia compartilhada. “A tecnologia acelerou muito essa tendência, facilitou e permitiu criar um mercado de massa para uma atividade que já existia”, explica Marcelo Coutinho, professor de estratégia para mercados digitais na Fundação Getulio Vargas (FGV).
CARONA PROIBIDA
“Toda vez que surge uma tecnologia, tem a questão da regulamentação, que discute o direito da sociedade, através do Estado, de se apropriar da riqueza gerada por aquela atividade”, explica Coutinho. A primeira das novas tecnologias a ser debatida na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) foi o aplicativo de caronas pagas Uber. Após intenso debate entre os vereadores e protestos de defensores e opositores inflamados, em 9 de setembro foi aprovado o Projeto de Lei (PL) 349/2014, que proíbe o transporte remunerado de pessoas, em veículos particulares cadastrados através de aplicativos, para locais pré-estabelecidos.
A Uber, conhecida no Brasil por seus carros pretos de luxo, foi originalmente concebida para organizar a oferta e a demanda de caronas pagas, que custariam menos que as corridas nos táxis convencionais. No entanto, muitas pessoas transformaram a prestação desse serviço em sua principal fonte de renda, sem usarem os alvarás e os certificados exigidos para o exercício da profissão de taxista. Como muitos dos negócios da nova economia, os motoristas da Uber vivem testando esses limites entre atuar como pessoas físicas e empresários.
Sinal de que os novos concorrentes teriam dias mais difíceis, a aprovação do PL foi comemorada com fogos de artifício por centenas de taxistas – alguns vindos do Rio de Janeiro, de Curitiba, de Belo Horizonte e do Distrito Federal. Eles acompanharam a votação nas galerias do Plenário e em frente ao Palácio Anchieta, sede da CMSP, com balões e carros de som. Em número bem menor, dezenas de motoristas da Uber se concentravam nas galerias, com cartazes em que se liam manifestações como “Eu também tenho o direito de trabalhar”.
O PL 349 foi proposto pelo vereador Adilson Amadeu (PTB) e recebeu a coautoria de mais 37 parlamentares. Depois de aprovado, transformou-se na Lei 16.279/2015, promulgada pelo prefeito Fernando Haddad (PT). Amadeu garante que não é contra a economia compartilhada. “Num mundo em que se prega o uso racional de tudo que o homem precisa e é capaz de produzir, o compartilhamento é bem-vindo”, diz. No entanto, para ele o caso da Uber é diferente. “A empresa presta um serviço idêntico ao do táxi (que é regulamentado) e usa um sistema de cobrança diferente do previsto em lei; há ganho financeiro, concorrência desleal, possivelmente sonegação de impostos e evasão de divisas”, argumenta.
Para o vereador Police Neto (PSD), que votou contra a proibição, a Câmara “errou fragorosamente” ao banir a Uber. Ele acredita que o Legislativo remou contra o futuro da economia mundial, representado pelo compartilhamento de equipamentos. “É preciso ter regras de controle e segurança, mas não agir de uma forma opressora, que tire o poder da inovação”, explica.
O Airbnb, maior plataforma mundial de acesso a hospedagem compartilhada, também é alvo de críticas pelo não recolhimento de impostos sobre os serviços prestados. Neste ano, a empresa fechou acordo para cobrança de tributos de locações feitas em algumas localidades dos Estados Unidos e em capitais como Amsterdã (Holanda) e Paris (França). Segundo o jornal O Globo, em julho o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) propôs, em reunião com representantes do setor em outros países do Mercosul, que se comece a cobrar impostos do Airbnb.
EM DISCUSSÃO
Outras iniciativas da CMSP também pretendem regular o consumo compartilhado. O PL 479/2015, apresentado pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL), propõe criar regras para que serviços de transporte individual, como o oferecido pela Uber, possam operar no Município e, ao mesmo tempo, reorganizar o atual sistema de táxi. O PL 416/2015, do vereador Ricardo Young (PPS), quer criar o Sistema de Transporte Público Individual, vinculado à Prefeitura, para cadastrar quem trabalha com transporte individual.
Regulamentar a atividade de alguma forma parecer ser o desejo da maioria dos brasileiros. Após ouvir 905 pessoas entre janeiro e fevereiro de 2015, a empresa de pesquisa Market Analysis relatou que 80% dos que usam o consumo colaborativo (como a carona paga) defendem a regulamentação da atividade pelo governo. “Não sei se o Estado tem direito de regulamentar e de taxar essas transações da mesma forma que faz com a economia tradicional, mas historicamente o sistema jurídico se adapta ao sistema tecnológico, assim como as novas ferramentas devem ser adaptadas às realidades locais”, afirma o professor Marcelo Coutinho.
A pesquisa também mostrou que 60% das pessoas ouvidas estão dispostas a testar formatos de hospedagem e troca de serviços diversos por meio da economia compartilhada. Police Neto lembrou que o Plano Diretor Estratégico (PDE), aprovado pela CMSP no ano passado, está alinhado com esse desejo, ao definir que “o compartilhamento de automóveis, definido como o serviço de locação por curto espaço de tempo, será estimulado como meio de reduzir o número de veículos em circulação”.
Na opinião de Police Neto, a cidade não precisa de mais carros, mas “aumentar o número de pessoas nos carros”. Ele é autor do PL 421/2015, que pretende garantir a segurança, confiabilidade, bom custo-benefício e incentivo ao compartilhamento de automóveis, preferencialmente a partir do acesso às redes digitais e da destinação de viário exclusivo para viagens compartilhadas.
Depois da votação que proibiu a Uber, foi criada na CMSP a Comissão de Estudos para Avaliar as Condições do Sistema de Transportes de Táxi no Município. O objetivo é ouvir os principais agentes da área na cidade para levantar formas de melhorar os serviços. O grupo é presidido pelo vereador Senival Moura (PT), tem como vice-presidente Salomão Pereira (PSDB) e como relator, Adilson Amadeu.
Pereira votou pela proibição da Uber, mas esclarece que não é contra a tecnologia que possibilitou o serviço. “Os aplicativos vieram para ficar”, argumenta, mas ressalva que “não se pode permitir o serviço irregular”. O parlamentar apresentou o PL 243/2015, juntamente com os vereadores Aurélio Nomura, Claudinho de Souza, Eduardo Tuma, Gilson Barreto, Mário Covas Neto e Patrícia Bezerra (todos do PSDB), Pr. Edemilson Chaves (PP) e Wadih Mutran (PDT), para regulamentar o atendimento de táxis por aplicativo. “Não importa que seja Uber, A, B, C ou qualquer um que trabalhe com aplicativo; se prestar serviço de táxi terá de seguir as regras”, explica Pereira.
Ao promulgar a Lei 16.279, Haddad também criou outra categoria de transporte de passageiros: o táxi preto, modelo com ar-condicionado que pode ser solicitado por aplicativo. Mas a direção da Uber afirma que nada muda na prática. Ou seja, os carros da empresa, mesmo proibidos, continuam circulando com passageiros, sob o risco de os veículos serem apreendidos pelos fiscais da Prefeitura.
ÁGUA NO FEIJÃO
Vira e mexe, a cozinheira (ela detesta ser chamada de chef) Bia Goll prepara o próprio almoço ou jantar na Casa Viva de Bill e Julia, um sobradinho florido, cujas salas podem ser alugadas, por hora, para situações tão distintas quanto reuniões e cerimônias de casamento.
“Quando estou trabalhando aqui, já cozinho para mim. Assim, é só aumentar a quantidade, desde que avisem com antecedência”, conta Bia. Numa quarta-feira chuvosa, a Apartes testou a multiplicação do fusilli. A revista ligou às 10h30 e pediu que a cozinheira colocasse “mais água no feijão”. Às 12h30, o repórter se juntou às seis pessoas que compartilharam o almoço. O prato principal, a sobremesa de bolo de claras, a água e o café custaram R$ 30. No local, refeições mais elaboradas, encomendadas principalmente por estrangeiros pelo site EatWith, custam de quatro a cinco vezes mais.
Mergulhada na cultura de compartilhamento, desde junho Bia divide a gestão do sobrado com quatro pessoas. “Morei um tempo na Alemanha e isso é muito comum lá”, explica. Antes, a cozinheira mantinha no mesmo local um restaurante convencional, que consumia muito tempo. Por isso, decidiu otimizar seus recursos enquanto ajuda outros a fazerem o mesmo, e hoje sobra tempo para atividades que ela adora, como dar aulas de culinária saudável.
Com adeptos entusiasmados, a nova economia compartilhada, segundo o professor Coutinho, tende a avançar. E a regulamentação deve acompanhar essa tendência. “Vamos partir do pressuposto de que nenhum governo tem interesse em não avançar do ponto de vista tecnológico, mas aproveitar a tecnologia para melhorar a vida dos cidadãos”, analisa o professor.
Ainda que o compartilhamento seja celebrado como o futuro da economia, nem sempre há garantia de experiências totalmente satisfatórias. O estilista paulistano Paulo Mattos já teve objetos pessoais furtados (uma maçaneta dos anos 50 e um disco de estimação) quando disponibilizou o apartamento, onde mora e utiliza como estúdio, para uma locação de TV. “Nunca mais tive coragem de pôr para alugar por temporada com minhas coisas dentro”, lamenta. Por outro lado, ainda se empolga em ceder gratuitamente o local para uso de artistas, em troca de obras ou comissão em futura venda.
Uma das usuárias do estúdio de arte de Mattos, Adriana Bertini lembra que, num apartamento compartilhado em Nova York, a anfitriã foi rude e a fez dormir num sofá, e não em uma cama, como prometido pelo Airbnb. Mesmo assim, a ativista adora arriscar, pois suas melhores experiências, conta, vieram dos compartilhamentos mais inusitados. Entre eles, a inesquecível refeição com a família senegalesa.
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