Uma nova verdade
Ao restituir mandatos cassados e concluir que ditadura matou um ex-presidente, Comissão Municipal da Verdade busca reescrever história do Brasil
Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Pessoas olhando, assustadas, pela persiana de uma janela em Brasília, tentando adivinhar se era seguro sair. É uma cena de infância, do ano de 1968, que ficou marcada na cabeça do vereador Mario Covas Neto (PSDB), do tempo em que seu pai, o então deputado federal Mário Covas Júnior, atuava como líder da bancada de oposição ao governo militar e costumava usar o apartamento da família, na capital federal, para abrigar perseguidos pela ditadura.
Outra cena da memória de Covas Neto é do ano seguinte: a imagem de chegar em casa, vindo da escola, e encontrar a mãe chorando enquanto fritava um bife e lhe dizia que seu pai havia sido preso e estava incomunicável. Souberam depois que não havia acusações contra o deputado: ele era apenas testemunha num processo judicial. “Aquilo me chamou muito a atenção, porque, se a testemunha era tratada daquele jeito, imagine o réu”, recorda o vereador.
Mario Covas Neto pôde revisitar essa época dolorosa e investigar os segredos da ditadura militar de 1964-85 durante os dois anos em que atuou como relator da segunda fase da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog. “Foi uma oportunidade indescritível”, disse o parlamentar na noite de lançamento do relatório final, no Plenário da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), em 26 de outubro do ano passado. “A gente deu uma pequena contribuição, pequena mesmo, pois tem muito mais coisas ainda para serem desvendadas.”
A “pequena contribuição” dos vereadores deu origem a um livro de 458 páginas, apresentando o resultado do trabalho da segunda fase da Comissão, realizada entre março de 2013 e dezembro de 2014. Antes disso, a primeira fase da Comissão Municipal da Verdade, iniciada em março de 2012 e encerrada em dezembro daquele ano (devido ao término da legislatura), já havia rendido um relatório de 264 páginas. Os dois textos estão disponíveis em www.saopaulo.sp.leg.br.
À ALTURA DO NOME
O nome escolhido para a comissão homenageia o jornalista Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura em 25 de outubro de 1975. A escolha da denominação apresentou aos vereadores o desafio de estar à altura da memória de um personagem que, após ser morto, transformou-se numa bandeira de luta que abalou o regime militar, ajudou a trazer de volta a democracia e, desde então, virou sinônimo de jornalismo preocupado com direitos humanos.
Para Clarice Herzog, viúva de Vladimir, os vereadores conseguiram cumprir o seu papel. “Foi um trabalho muito sério e investigativo, como tinha de ser, já que levava o nome de Vladimir Herzog”, disse, durante o lançamento do relatório.
O jornalista também foi homenageado com a renomeação de uma praça ao lado do Palácio Anchieta, sede da CMSP, que a partir de 2013 passou a se chamar Praça Vladimir Herzog. Fechada para reforma, a praça foi reinaugurada no mesmo dia do lançamento do segundo relatório. O local ganhou um memorial, com um mosaico construído pelo artista plástico Elifas Andreato e por crianças da ONG Projeto Âncora. O mosaico traz uma nova versão do quadro 25 de outubro, também de Andreato, instalado em 1981 no Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Chamado pelo artista de “Pietà sem Madonna” ou “Guernica brasileiro” (em referência às obras de Michelangelo e Picasso), o quadro mostra o corpo de Herzog cercado por instrumentos de tortura.
A imagem de 25 de outubro foi inspirada em uma famosa foto de Herzog morto, divulgada pela ditadura militar para provar a tese de que o jornalista havia se enforcado na prisão. A imagem, em que o suposto enforcado aparecia com os joelhos no chão, era uma farsa tão óbvia que produziu o efeito contrário do pretendido pelos militares: tornou-se um símbolo dos horrores do regime ditatorial brasileiro.
O autor da foto, Silvaldo Leung Vieira, que hoje vive nos Estados Unidos, veio ao Brasil a convite da Comissão da Verdade. O fotógrafo contou aos vereadores que deixou o País por causa do episódio com Herzog, mas não foi por medo. “Foi por nojo”, explicou. Acompanhado dos vereadores, Silvaldo visitou a antiga sede do Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), na Rua Tutoia (bairro Paraíso), onde a foto foi feita. É nesse endereço que o relatório da Comissão pede a instalação de um memorial aos presos e desaparecidos políticos.
ASSASSINATO
Um dos pontos mais polêmicos levantados pela Comissão Municipal da Verdade foi a conclusão de que o ex-presidente Juscelino Kubitschek não morreu em um acidente na Rodovia Presidente Dutra, em 1976, como registram as versões oficiais. Com base em 114 indícios, os vereadores apontaram que Kubitschek e seu motorista, Geraldo Ribeiro, foram assassinados pelo governo militar, vítimas de “conspiração, complô e atentado político”.
A conclusão foi rejeitada pela Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, que preferiu a versão de morte acidental. Mas os vereadores não mudaram de ideia. “Temos certeza de que JK foi assassinado”, afirma Gilberto Natalini (PV), presidente da Comissão. Tanto que um dos homenageados durante a cerimônia de entrega do relatório foi o motorista aposentado Josias Nunes de Oliveira, que, pela versão da morte acidental, teria provocado a morte do ex-presidente ao chocar o ônibus que dirigia contra o Opala de Kubitschek – mas que, pela versão de homicídio, teria sido vítima de uma armação.
Mais acostumado com dedos apontados e sussurros disfarçados do que com aplausos, Josias chorou com a homenagem no Plenário. Só conseguiu dizer “obrigado a todos”. À Apartes, contou que, naquele mesmo dia, horas antes de ser homenageado, estava em Indaiatuba (SP), cidade onde vive, e ao sair para comprar pão ouviu uma pessoa na padaria cochichar para outra: “aquele é o cara que matou Juscelino Kubitschek”. É uma marca que grudou em Josias. “Foi uma calúnia que jogaram em mim que nem o diabo merecia”, diz.
Outro destaque do trabalho da Comissão foi a restituição simbólica dos mandatos de 42 vereadores cassados entre 1937 e 1969 por ações autoritárias, cometidas tanto pela ditadura militar instaurada em 1964, como pelo Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas e até durante o período democrático do governo Eurico Gaspar Dutra, de 1946 a 1951.
A restituição foi celebrada com uma sessão em 9 de dezembro de 2013, presidida por Armando Pastrelli, vereador cassado em 1947 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por ser comunista, e Moacir Longo, que perdeu o mandato em 1964, após o golpe que derrubou o presidente João Goulart. Uma placa de metal com o nome dos 42 parlamentares foi afixada no hall de entrada da CMSP.
“ESCLARECER AS VIOLAÇÕES”
A Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog iniciou seus trabalhos em maio de 2012, com o objetivo de promover “esclarecimentos em relação às graves violações de direitos humanos ocorridas no Município de São Paulo ou praticadas por agentes públicos municipais” durante a ditadura militar. Foi uma das várias comissões que surgiram naquele ano, em casas legislativas, prefeituras, sindicatos e outras associações, para dar apoio aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que apresentou seu relatório final em 2014. Além da parceria com a Comissão Nacional, os vereadores paulistanos também atuaram juntos com a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, da Assembleia Legislativa de São Paulo.
“Foram dois anos de um trabalho exaustivo, muito isento, profissional e democrático. Procuramos trabalhar objetivamente, sem apontar o dedo para ninguém e sem livrar a cara de ninguém”, afirma o vereador Natalini. “Ouvimos tanto pessoas que foram presas pela ditadura como torturadores e assassinos”, complementa.
Um desses assassinos foi ouvido logo no início dos trabalhos, em maio de 2013, quando o presidente da Comissão foi até o Espírito Santo entrevistar o delegado de polícia Cláudio Antonio Guerra. Ele falou sobre pessoas que matou e corpos em que deu sumiço, retomando episódios descritos em seu livro Memórias de uma guerra suja.
Entretanto, nem todos os colaboradores da ditadura falaram com a mesma franqueza de Guerra. Outro delegado, Dirceu Gravina, apontado como torturador dos jornalistas Vladimir Herzog e Luiz Eduardo da Rocha Merlino e do advogado Aluízio Palhano Pedreira Ferreira, todos assassinados, foi ao Palácio Anchieta depor à Comissão, mas, ao chegar, exigiu uma audiência fechada. O pedido foi recusado pelos vereadores. O policial, então, desistiu de falar e voltou para casa.
Já Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo entre 1975 e 1979, aceitou colaborar e contou que o aparelho repressivo do Estado havia recebido um robusto financiamento de empresários. Para falar sobre o apoio privado dado à ditadura, a comissão também convidou o economista Antonio Delfim Netto, ministro dos governos militares, que respondeu a todas as perguntas sem revelar nada. “A tudo ouviu com certo ar de comiseração divertida no rosto impassível e respondeu que jamais tomou conhecimento de financiamentos”, descreve o relatório.
A Comissão ouviu, principalmente, os que sofreram os abusos da ditadura. Sobreviventes relataram as torturas pelas quais passaram e parentes falaram sobre as pessoas queridas que perderam. Uma das vítimas, o operário Santo Dias da Silva, recebeu uma audiência pública dos vereadores em sua homenagem, realizada na Sociedade Santos Mártires, em M’Boi Mirim, zona sul. Silva foi assassinado em 30 de outubro de 1979, durante uma greve de metalúrgicos.
Durante a homenagem ao operário, foi lida uma mensagem de Santo Dias da Silva Filho. “Meu pai queria que o mundo fosse melhor para todos, mais justo”, lembrou o filho do operário assassinado. “Ele tinha 37 anos e imaginava ver os filhos formados, os netos. Não teve esse direito. Direito a nada.” Silva não foi morto pelo Exército, como Vladimir Herzog, mas pela Polícia Militar.
Para o vereador Toninho Vespoli (PSOL), foi na mentalidade dos policiais militares que a ditadura deixou a sua principal marca. Segundo o vereador, a violência policial tornou-se a face de um passado que permanece presente e ameaça nosso futuro: “Os nossos jovens na periferia são mortos praticamente diariamente pela PM. Enquanto não conseguirmos combater isso, não vamos consolidar a democracia”.
Composição da Comissão Municipal da Verdade |
1ª fase (2012) |
Presidente: Ítalo Cardoso Vice-presidente: Gilberto Natalini (PV) Relator: Eliseu Gabriel (PSB) Demais integrantes: Jamil Murad (PCdoB), José Rolim e Juliana Cardoso (PT) |
2ª fase (2013-2014) |
Presidente: Gilberto Natalini (PV) Vice-presidenta: Juliana Cardoso (PT) Relator: Mario Covas Neto (PSDB) Demais integrantes: Laércio Benko (PHS), Ricardo Young (PPS), Rubens Calvo (PMDB) e José Police Neto (PSD), substituído por Toninho Vespoli (PSOL) |