Nº19 – Desarquivando

A revolta das aves e dos ovos

Prefeitura quis tirar do principal mercado da cidade os vendedores de galinhas e patos, e eles recorreram aos vereadores

Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

Inaugurado em 1907, o Mercado 25 de Março, localizado na rua de mesmo nome, era uma construção retangular, com boxes em alvenaria de tijolo e dividida em quatro pavilhões interligados no meio por uma pequena torre com um lanternim, “aber-tura destinada a garantir iluminação e ventilação ao ambiente”, segundo o livro Mercado Municipal de São Paulo – 70 anos de cultura e sabor, de Walter Falceta Júnior. Atualmente, no lugar do Mercado 25 de Março está a Praça Fernando Costa, no Centro Fotos: Arquivo CMSP
Inaugurado em 1907, o Mercado 25 de Março, localizado na rua de mesmo nome, era uma construção retangular, com boxes em alvenaria de tijolo e dividida em quatro pavilhões interligados no meio por uma pequena torre com um lanternim, “aber-tura destinada a garantir iluminação e ventilação ao ambiente”, segundo o livro Mercado Municipal de São Paulo – 70 anos de cultura e sabor, de Walter Falceta Júnior. Atualmente, no lugar do Mercado 25 de Março está a Praça Fernando Costa, no Centro | Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP

 

As aves e seus derivados são, desde sempre, um dos pratos mais comuns nas mesas dos paulistanos. Por isso, não faltavam clientes para os 18 vendedores de galinhas, patos e ovos no Mercado 25 de Março (também conhecido como Mercado Central), o principal de São Paulo no começo do século passado. Mas em 1925 surgiu um problema: a Prefeitura, alegando questões de higiene, exigia que eles passassem a vender seus produtos no Mercado dos Caipiras, que ficava nas proximidades e tinha menos estrutura.

Os comerciantes não gostaram da ideia e apelaram aos vereadores. Uma petição com 109 assinaturas de atacadistas e varejistas dos mais diversos produtos vendidos no Mercado Central solicitava a intermediação da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) para que o prefeito Firmiano de Morais Pinto revogasse a decisão. Em um procedimento raro na época, foram anexados ao documento oito fotos do Mercado 25 de Março, do Mercado dos Caipiras (chamado por eles de “mercadinho”) e dos arredores.

A petição, que está no Arquivo da CMSP, foi encaminhada à Câmara, em 28 de fevereiro de 1925, pelo ex-vereador José Adriano Marrey Júnior, presidente do Centro Comercial dos Mercados, que reunia os vendedores. Entre as justificativas para permanecer no Mercado 25 de Março, apontava que a área disponível no Mercadinho dos Caipiras era “pequena e acanhadíssima, em terreno descoberto, mal calçado e sem a menor ordem”. Para provar o que diziam, anexaram três fotos do local.

Mercado dos Caipiras, também conhecido como “mercadinho”, na Rua Barão de Duprat, região central de São Paulo. Lá, os horticultores dos arredores da capital (chamados de caipiras) vendiam sua produção, trazida por carroças, pelos trens da São Paulo Tramway, Light & Power Company ou por embarcações que percorriam o Rio Tamanduateí Foto: Arquivo CMSP
Mercado dos Caipiras, também conhecido como “mercadinho”, na Rua Barão de Duprat, região central de São Paulo. Lá, os horticultores dos arredores da capital (chamados de caipiras) vendiam sua produção, trazida por carroças, pelos trens da São Paulo Tramway, Light & Power Company ou por embarcações que percorriam o Rio Tamanduateí | Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP
Foto: Arquivo CMSP

 

As críticas ao Mercadinho eram detalhadas: “é um foco perigoso de fermentação pela abundância de lixo e da lama que se aloja entre os paralelepípedos, tornando-se nocivo à saúde pública e à dos pobres negociantes que ali terão de permanecer para o seu ganha-pão de todos os dias”, lamentavam os comerciantes.

Porém, no documento fizeram questão de ressaltar que não estavam culpando o administrador do Mercado dos Caipiras, que, de acordo com eles, “sempre procurou remediar e desfazer esses defeitos de construção”. O documento dizia que o “lastimável estado sanitário” do local era atribuído “unicamente à má construção do mesmo, feito sem o menor cuidado e a toda pressa”, com paralelepípedos que não eram paralelepípedos, “mas sim pedações, postos sem ordem, de espaço a espaço”. Tudo comprovado por três fotos, que poderiam “dar uma pálida ideia” do que afirmavam.

Os vendedores sugeriam uma solução intermediária: continuariam no Mercado 25 de Março, mas as aves ficariam em gaiolas e viveiros construídos “por conta, naturalmente, da Prefeitura”, para que os comerciantes ficassem “melhor e mais higienicamente instalados”. O fato de pagarem pontualmente o Imposto de Indústria e Profissão também foi lembrado na petição. E aproveitaram para pedir providências (multa e apreensão das mercadorias) contra os vendedores ambulantes que “não pagam imposto de espécie alguma e nem sequer o lugar que ocupam, pois vendem as mercadorias nas calçadas, carroças, carros e autocaminhões em frente ao portão do mercado”.

Foto: Arquivo CMSP
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Imediações do Mercado Central, na região central de São Paulo Fotos: Arquivo CMSP
Imediações do Mercado Central, na região central de São Paulo | Foto: Arquivo CMSP

A conclusão do texto foi uma citação jurídica em latim: juste petita non sunt deneganda (não se deve negar as petições requeridas com justiça), mostrando certeza de que poderiam continuar no Mercado 25 de Março “porque a vitória sempre pertence à Justiça”.

Em 23 de maio, os vereadores Coronel Júlio de Andrade Silva e Luciano Gualberto, também membros do Centro Comercial dos Mercados, enviaram ao prefeito Firmiano de Morais Pinto um requerimento solicitando resposta com máxima urgência sobre quais providências seriam tomadas em relação aos vendedores de aves e ovos. A resposta chegou seis dias depois. Apesar de toda a argumentação dos comerciantes, Morais Pinto foi inflexível: os vendedores de aves e ovos teriam de ir para o Mercado dos Caipiras.

No ofício de resposta, enviado ao vereador Júlio Silva, o prefeito anexou um documento do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo, no qual se afirmava que “a venda de aves, cabritos, leitões e outros animais no Mercado Central é feita em franca promiscuidade com os compartimentos de carne conservada, que lhes ficam fronteiros, os açougues da carne verde, que os flanqueiam, e as bancas de cereais, que estão colocadas a sua retaguarda”. Segundo a vigilância sanitária, “tal estado de coisa, além do aspecto desagradável, deixa o ambiente impregnado de emanações repugnantes”.

A Prefeitura também anexou no processo um relatório manuscrito segundo o qual o médico do Serviço Sanitário havia feito uma vistoria no mercado e constatara que “as aves até defecavam nos queijos”. No texto, as autoridades sanitárias reconhecem que “as barracas (do Mercado dos Caipiras) são toscas, inegavelmente, mas estão em melhores condições de higiene” do que as do Mercado 25 de Março, “onde falta luz e ar”.

Foto: Gute Garbelotto/CMSP
Foto: Gute Garbelotto/CMSP
 ARGUMENTAÇÃO - Mais de cem comerciantes assinaram petição para continuar no Mercado 25 de Março Fotos: Gute Garbelotto/CMSP

ARGUMENTAÇÃO – Mais de cem comerciantes assinaram petição para continuar no Mercado 25 de Março | Foto: Gute Garbelotto/CMSP

MERCADÃO

Nas décadas de 20 e 30 do século passado, houve muitos debates sobre as questões higiênicas dos mercados e a necessidade da construção de um novo centro comercial. Em novembro de 1920, a Câmara Municipal aprovou a Lei 2.346, promulgada no mês seguinte pelo prefeito Firmiano de Moraes Pinto, autorizando a Prefeitura “a entrar em acordo com a Companhia Parque da Várzea do Carmo para aquisição da área necessária à construção do mercado municipal”. Os vereadores ressaltaram que o projeto deveria cumprir “todas as exigências estéticas e higiênicas de edifícios desse gênero, capazes não só de satisfazer às necessidades atuais, como às de ampliação futura”.

Doze propostas foram apresentadas na concorrência pública, mas nenhuma foi aprovada pela Prefeitura. Assim, em 1924 os vereadores e o prefeito resolveram convocar o arquiteto Ramos de Azevedo. “O projeto definitivo, organizado pelo provecto (experiente) engenheiro dr. Francisco de Paula Ramos de Azevedo, satisfaz às exigências”, apontava um parecer das Comissões reunidas de Justiça, Obras, Higiene e Finanças da CMSP.

Entretanto, as críticas persistiram. Segundo o livro Mercado Municipal de São Paulo – 70 anos de cultura e sabor, o vereador Orlando de Almeida Prado achava que o local destinado ao novo mercado era muito pequeno, já que a cidade crescia rapidamente. “Não seria responsável prevenir esse mal aumentando a área, agora que os terrenos ainda estão sem a valorização natural que lhes dará a construção do mercado?”, indagava. Mas a Prefeitura manteve o projeto original.

Finalmente, em 25 de janeiro de 1933, aniversário da cidade, o Mercado Municipal Paulistano, mais conhecido como Mercadão, foi inaugurado. No novo local eram encontrados “laticínios, sementes, flores, pescados, etc.”, escreveu O Estado de S. Paulo. O jornal também informou que “foram criadas localidades para novos gêneros de artigos de economia doméstica que até agora não eram encontrados nos mercados, tais como massas finas, sorvetes, refrescos, garrafas e vidros, artigos para jardins, etc.”. Em 1939, os mercados 25 de Março e dos Caipiras foram demolidos.