Nº19 – Com a palavra

Oswaldo de Camargo

O escritor explica como os negros utilizam a literatura para combater o racismo e mostrar suas realidades

Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou Matheus Briet

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“O preconceito é como os assaltantes que emboscam. Você não está preparado para enfrentá-los naquele momento” Foto: Marcelo Ximenez/CMSP
“O preconceito é como os assaltantes que emboscam. Você não está preparado para enfrentá-los naquele momento” | Foto: Marcelo Ximenez/CMSP

 

Filho de colhedores de café analfabetos, o poeta, contista, romancista, pesquisador e jornalista Oswaldo de Camargo fez das palavras sua arma contra o racismo, o preconceito e a indiferença. “Minha militância é na literatura”, orgulha-se. Segundo o escritor, “o negro não é só vítima do preconceito, também é vítima da indiferença”.

Aos 79 anos, Camargo é especialista em literatura negra, autor do livro O negro escrito – apontamentos sobre a presença do negro na literatura brasileira e considerado um dos principais representantes no Brasil desse segmento literário. Entre suas obras, destacam-se A descoberta do frio, O oboé e Raiz de um negro brasileiro. Por seu ensaio sobre literatura negra ele recebeu a Medalha de Mérito Cruz e Sousa, da Secretaria de Cultura de Santa Catarina, e a Medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara Municipal de Salvador (BA).

No ano passado, foi homenageado pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) com o Título de Cidadão Paulistano, por iniciativa do vereador Antonio Donato (PT). Uma frase de Camargo, na antologia de poetas negros A razão da chama, resume sua vida e obra: “Eu tenho na minh’alma a angústia de todas as raças. Só há um pormenor: sou um negro”. Entre centenas de livros, dezenas de obras de arte da cultura negra e brinquedos do primeiro bisneto, Camargo conversou com a Apartes sobre negritude, preconceito e literatura.

Qual a sua militância no movimento negro?

Meu movimento é a literatura. Não tenho atitudes políticas, de sair na rua, de fazer protestos. Todo meu protesto é com a palavra. Acredito na força da literatura, na força da palavra, na força de cavoucar a história do negro e levá-la para o texto. Isso falta. Falta voz ao negro. Eu tento, como negro, dar voz à minha turma, que tem pouca voz.

“Literatura negra é a literatura que o negro escreve olhando para si mesmo, para sua realidade” Foto: Marcelo Ximenez/CMSP
“Literatura negra é a literatura que o negro escreve olhando para si mesmo, para sua realidade” | Foto: Marcelo Ximenez/CMSP

Qual a situação do negro na cidade de São Paulo?

O negro é o segmento mais empobrecido, menos valorizado, aparece pouco na mídia. E quando aparece, não é na sua dignidade, aparece geralmente na sua decadência. São Paulo é uma cidade que tem muita gente de fora, muita gente procurando sucesso. Mas, por questões históricas, o negro nessa corrida está mais enfraquecido. O rosto de uma pessoa abre o seu caminho e, muitas vezes, o do negro ainda não é um rosto que abre caminhos. Até pessoas de sucesso na mídia, como a atriz Taís Araújo, um exemplo de beleza negra, sofrem com o preconceito [em 2015, a atriz sofreu ataques racistas nas redes sociais].

É possível resolver a questão do preconceito?

No Brasil, o preconceito, a olhada ruim sobre o negro, essa visão de indiferença, está introjetado há muito tempo. Diminuir isso demanda muito trabalho, pois os negros estão geralmente nas classes mais enfraquecidas, com moradia ruim, pouco nível universitário e, o mais importante, sem o respeito que se deve a todo ser humano.

O senhor já foi vítima de racismo?

O primeiro encontro racista foi dentro da Igreja, quando tentei ser padre. A dificuldade foi muito grande. Um seminário daqui perto de São Paulo não me aceitou. Eu tinha 12 anos, era um menino inocente, mas inteligente. Com perspectivas. Estudava no Colégio Reino da Garotada, em Poá (região metropolitana de São Paulo), e os padres holandeses que o administravam estavam convencidos de que eu tinha vocação para ser padre. Mas eles nunca imaginaram que seria tão difícil encontrar um seminário que me aceitasse. Foi o primeiro contato que tive com o racismo. Não me aceitaram no seminário por uma questão puramente racial.

Houve outros casos?

Aqui no Brasil o preconceito é como os assaltantes que emboscam. Você não está preparado para enfrentá-los naquele momento. Já fui proibido de entrar no elevador social em um prédio nos Jardins (bairro nobre de São Paulo). Só entrei depois que ameacei chamar a reportagem do Jornal da Tarde, onde eu trabalhava na época. Também já tive a bolsa revistada porque olhei para um carro de polícia, aqui perto de casa, em Lauzane Paulista. Só pelo fato de eu ter olhado para uma viatura, o policial falou “vem cá, abre sua bolsa”. Faria com um branco? Duvido. E digo mais: é tão doloroso, porque muitos negros acabam tendo preconceito contra os próprios negros.

O senhor convive com intelectuais. Nesse meio há preconceito?

O preconceito não poupa o intelectual, mas geralmente ele é mais resguardado devido a sua visão de mundo mais esclarecida. Muitas vezes o preconceito e o racismo são frutos de uma crassa ignorância.

O senhor acha que seu bisneto, Miguel, de dois anos, sofrerá preconceito?

Não do jeito que eu sofri. Mas devemos levar em conta que o preconceito é um camaleão. Num País com uma população negra maior que a branca, é difícil evitar que os negros entrem nas faculdades. Porém você olha a porcentagem e percebe que o número de brancos cresce em segmentos de prestígio e que o número de negros fica lá atrás. O preconceito não começa quando se entra na faculdade. As portas fechadas começam na infância. Na hora de começar a corrida, o negro já sai com uma desvantagem. Mas, como católico, sou um otimista. Acho que paciência e esperança são grandes virtudes para os negros.

Qual esperança os negros podem ter?

Estamos em um mundo conturbado, um mundo ruim em todos os aspectos, em todas as partes, onde temos terrorismo. Aqui no Brasil o desemprego está podando os mais desvalidos, que vão sofrer mais, eles precisam ter esperança. Imagine a pessoa desempregada, que não tem casa própria, que tem três filhos. Se não tem esperança, você desanima e diz “não tem jeito, eu vou parar”. Você tem de continuar lutando. Na medida em que você pessoalmente cresce, conclui seus projetos, educa-se e educa sua família, você está combatendo o preconceito, você está blindando aquele jovem para poder responder como se deve a um racista.

O que é literatura negra?

Literatura negra é a literatura que o negro escreve olhando a si mesmo. Eu tenho várias realidades, sou brasileiro, homem, nasci em Bragança Paulista (interior de São Paulo), moro na capital. Eu me olho, na minha humanidade, com essa carga, esses coloridos, homem, brasileiro. Aí eu percebo que tem uma coisa que está me diferenciando. Historicamente, politicamente eu estou sendo diferenciado, eu tenho uma diferença: a minha origem. Meus bisavós vieram da África. Eu reúno todos esses dados e resolvo escrever algo em torno, compactuando com essas diferenças, com essas nuanças, com esses fatos históricos que repercutiram dentro de mim e me tornaram um homem que tem uma visão de mundo, em muitos aspectos, diferenciado do comando ocidental, aí eu estou fazendo uma literatura negra. É a literatura que o negro escreve olhando para sua realidade. Esse conceito, que ganhou corpo sobretudo em São Paulo nos anos 1970, está aos poucos se firmando.

“O escritor é um homem que suga a vida e a transforma em belos textos” Foto: Marcelo Ximenez/CMSP
“O escritor é um homem que suga a vida e a transforma em belos textos” | Foto: Marcelo Ximenez/CMSP

Um dos maiores escritores brasileiros, Machado de Assis, faz parte desse segmento literário?

Ele era pardo, com mãe portuguesa e pai neto de escravos, era racialmente dividido. Podia ser visto como negro ou não. Era considerado mulato. No século 19 havia essa nuance. No tempo de Machado de Assis não existia ainda o conceito de literatura negra. E ele não particularizou o fato de ser negro. Se o fizesse, não seria o Machado de Assis que conhecemos, um mestre da língua que fez uma literatura autenticamente brasileira. Seria, no seu tempo, um escritor “estreitado” pela palavra negro.

Como anda a situação dos autores negros na cidade de São Paulo?

Está numa boa fase. Foi daqui que se irradiou para todo o País esse movimento chamado literatura negra. A imprensa negra tem ajudado muito e um coletivo de autores chamado Quilombhoje, do qual fui um dos fundadores, tem textos muito bons.

Os blogs têm fortalecido essa tendência cultural?

Sim. Na periferia há grupos que tratam, sobretudo, de problemas sociais, e no meio desses problemas sociais aparece a questão do negro. Então, nós podemos considerar essa literatura que eles escrevem também como literatura negra, porque são negros falando da sua realidade, do seu viver, dos seus sonhos, da sua esperança, do seu sofrimento.

E as letras de funk, rap e hip-hop podem ser consideradas literatura negra?

Elas são um retrato do País. São literatura, um documento importante que mostra o nível em que o Brasil está na questão negra, vista por pessoas jovens, que não leem, que não podem ter livros e são sofridas.

O senhor é conselheiro do Museu Afro Brasil, localizado no Parque Ibirapuera. A instituição ajuda os escritores?

Muito. É um tambor que repercute porque, apesar do seu escopo fundamental ser as artes plásticas, o museu tem uma biblioteca e promove palestras. O escritor vai e pode ver rostos de pessoas que ele nunca podia ver se não fosse ao museu. A instituição enriquece o conhecimento do escritor e dá uma vivência importante. O fato de haver um local que reuniu obras de arte e documentos, como os textos da poetisa Carolina Maria de Jesus, dá um viver para a vida literária. O escritor não pode se manter apenas como o homem que faz literatura. Ele tem de ter conhecimentos enormes. São observadores da sociedade, andam no meio do povo, andam em botecos. Quantos autores andavam no meio de gente que era praticamente desvalida, menosprezada, e daí saíram seus textos? Se lambuzam com a vida. O escritor é um homem que suga a vida e a transforma em belos textos.

Como o poder público pode ajudar o autor negro?

Abrindo caminho para as suas manifestações. O poder público podia fazer um trabalho de levar essa literatura para as escolas. Os escritores negros poderiam ir para as escolas ensinar o que sabem e aprender com os alunos.