A tarifa ideal
CPI do Transporte e especialistas apostam em solução progressiva para se chegar ao melhor valor para a passagem de ônibus
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Um ano depois de chegar a São Paulo, em setembro de 2012, o manobrista Lucas Carvalho de Andrade, de 25 anos, já fez as malas e voltou para Praia Grande com a mulher e a filha de 10 meses. Na capital, ele morou no Itaim Paulista, 40 km longe de seu último trabalho, na Bela Vista. Na prática, essa distância significava gastar de cinco a seis horas em cinco conduções diferentes, todos os dias. Lucas ficava apenas 15 minutos sentado, de preferência na cadeira do corredor, para esticar as pernas e evitar as cãibras, que o perseguiam nas viagens longas, em bancos frequentemente estragados e num espaço apertado. “Se aumentassem o preço das passagens e a gente visse melhorias… Mas aumentar do jeito que está, meu Deus. Nem falo de colocarem ar-condicionado, a porta abre tanto que nem daria conta”, diz, com sua leveza praiana. Seu chefe só pagava os R$ 6 por dia para ir e voltar de ônibus. Por isso ele não usava a integração com o metrô, que deixaria o trajeto menos demorado. No fim de semana, Lucas e a esposa pensavam duas vezes antes de passar uma tarde no shopping. Os R$ 12 de transporte por passeio poderiam fazer falta nas economias para a casa própria.
ABERTURA: O vereador Paulo Fiorilo diz que a Casa estaria pronta para aprovar um projeto de tarifa zero
Gute Garbelotto/CMSP
Lucas, e a maioria dos paulistanos, acha que o preço do transporte público na cidade não condiz com a qualidade. O engenheiro Lúcio Gregori acredita que, “se lotado o ônibus já é caro”, com boa qualidade seria “inacessível”: teria que custar uns R$ 6 ou R$ 7. Gregori foi secretário municipal de Transportes na gestão da ex-prefeita Luiza Erundina (1989 a 1992) e idealizou, em 1989, o projeto de lei que levaria à gratuidade nos coletivos. “A tarifa zero não nos traz ganho material. É um compromisso com a vida, sem rabo preso com interesses impublicáveis”, disse ele em uma aula pública em Santo André, dada em conjunto com uma integrante do Movimento Passe Livre (MPL) São Paulo.
Gregori diz que aumentar os investimentos no transporte de massa diminuiria problemas colaterais do trânsito intenso, como os acidentes. Ele também acredita que a gratuidade daria vazão a uma demanda reprimida, que passaria a circular mais pela cidade e a acessar mais locais de bens e serviços, melhorando a economia.
Isso já ocorre desde 2003 em Agudos, município de 40 mil habitantes no interior de São Paulo. “As pessoas usam os ônibus para fazer compras, visitar a família, para comércio, prestação de serviços; a costureira que vai entregar roupas, o pedreiro que usa para chegar ao trabalho. Houve um alcance social importante e também moveu a cadeia econômica”, diz o prefeito, Everton Octaviani (PMDB). Ele conta que o comércio era “inexistente” há dez anos e que indústrias se instalaram em Agudos inclusive por não terem de pagar vale-transporte.
No período, dobrou para 9 mil a quantidade de usuários de transporte público, enquanto a população cresceu de 34 mil para 40 mil habitantes. Para manter os 14 ônibus, a Prefeitura gasta R$ 2 milhões por ano. O valor veio da redução em 70% do número de cargos comissionados e corte de despesas com telefonia, combustíveis e outros serviços. Não foi preciso criar um fundo para o setor.
Octaviani pensa ser possível aplicar sua experiência em cidades maiores: “Claro que seria preciso um planejamento estratégico e financeiro mais amplo, com auxílio do governo federal e dos Estados, com barateamento de combustível”.
Em entrevista veiculada em julho pelo programa É Notícia, da RedeTV!, Luiza Erundina disse que há condições de se aprovar o passe livre atualmente, “se houver vontade política do governante”. Para ela, o projeto apresentado quando era prefeita não foi aceito pois seu próprio partido (PT) era contrário. Além disso, ela tinha minoria na Câmara. “Para ter maioria eu teria que ter feito concessões éticas e, para fazer essas concessões, os que estão no poder há 500 anos fazem melhor do que nós”, afirmou a deputada federal, atualmente filiada ao PSB.
O vereador Paulo Fiorilo (PT), que preside a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Transporte Coletivo na Câmara Municipal de São Paulo, acredita que a Casa seria capaz de apoiar um projeto de tarifa zero tranquilamente. “Acho que se o atual Executivo apresentar uma proposta de tarifa zero, com os elementos, com as fontes que seriam utilizadas para bancar a proposta, a Câmara não teria dificuldade (para votar favoravelmente)”, disse Fiorilo. Para o parlamentar, houve rejeição ao projeto de 1989 porque o texto chegou à Casa sem ser discutido apropriadamente até mesmo com a bancada do PT. “Faltou não vontade, mas convencimento e debate político necessários a um assunto dessa envergadura”, disse o vereador.
Lúcio Gregori, assim como Erundina e os integrantes do Movimento Passe Livre, defende que parte do subsídio à tarifa zero poderia vir de impostos diretos e progressivos sobre a propriedade, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). “A proposta é desqualificada pela grande mídia porque tira dinheiro de quem tem mais. Dizem que vão cobrar mais no feijão. Não é! É no uísque”, afirmou o ex-secretário. Em 1989, o plano era bancar a gratuidade do transporte principalmente com o aumento do IPTU de imóveis com mais de
140 m², ou seja, 22% das construções da cidade naquele período.
Fiorilo vê restrições na proposta. Ele acredita que o IPTU progressivo seria insuficiente para atingir os R$ 6 bilhões anuais necessários à gratuidade do transporte coletivo. Dos tributos municipais (IPTU, ITBI e Imposto sobre Serviços – ISS), 62,7% estão vinculados. Além disso, ele teme que seria necessário cobrar tanto a mais dos “caras do uísque”, que isso os levaria a migrar para cidades vizinhas com IPTU mais barato, como Barueri, Osasco ou Vinhedo, conhecidas por seus bairros de luxo. “É o cara que toma uísque (que vai pagar mais IPTU)? É. Mas tem que fazer o debate, porque esse cara também é parte da sociedade, apesar de em menor número”, disse o vereador.
DEBATE: Vereadores e população durante audiência pública sobre o transporte coletivo realizada na Câmara
Mozart Gomes/CMSP
Para o prefeito de Agudos, aumentar o IPTU é transferir para a população a responsabilidade pela gratuidade da tarifa. Octaviani torce pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 90/2011, de Erundina, que adiciona o transporte à lista de 11 direitos sociais previstos na Constituição e destinados a todas as pessoas. Para ele, a mudança constitucional obrigaria os governos a investirem mais em transporte coletivo do que no individual. O texto já foi admitido pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
Soluções
Uma pesquisa divulgada em setembro, pelo Ibope e Rede Nossa São Paulo, mostrou que 46% dos paulistanos acham possível haver transporte gratuito irrestrito na cidade e 29% acreditam na gratuidade para estudantes e desempregados. Mesmo acreditando que é viável não cobrar, 56% preferem ver as tarifas reduzidas à metade, com maior aporte do governo.
Apoio: Gersoni Gomes, de calça amarela, é a favor das manifestações por uma tarifa menor e não gratuita
Mozart Gomes/CMSP
A servidora pública Gersoni Aparecida Piva Gomes, de 49 anos, é uma das pessoas que não acham ideal a tarifa zero. Ela tem que andar 15 minutos no fim do dia para chegar ao ponto em que passa seu ônibus. Raramente consegue se sentar no caminho de volta para casa. Mas acredita que sua situação ainda é confortável, porque leva pouco mais de uma hora para chegar e, pela manhã, a eficiência na ida para o trabalho “vale os
R$ 3”. Gersoni não se informou sobre as propostas que poderiam levar à gratuidade, mas se preocupa com o custo de manutenção dos ônibus. “Acho que a população tem o direito de reivindicar e a passagem tem que baixar mais. Mas a tarifa zero não é a forma”, opinou.
O relatório final da CPI deve apontar meios de o Executivo reduzir ou manter o custo do transporte, levando a tarifa a um patamar razoável. “Talvez seja uma saída pensar progressivamente. Vamos congelar e em cinco anos tentar chegar numa tarifa mínima ou zero”, cogita Fiorilo. O parlamentar menciona exemplos de contribuição da sociedade, como a defesa pelo Movimento Nossa São Paulo da municipalização da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). Hoje, parte dessa arrecadação é entregue pela União aos Estados e ao Distrito Federal para ser aplicada, obrigatoriamente, em programas de infraestrutura de transportes.
Ao comparar São Paulo a outras cidades do mundo com transporte parcial ou integralmente gratuito, Lúcio Gregori admite que cada cidade tem sua particularidade e um modelo externo não se adequaria, necessariamente, às carências paulistanas. Como caminho para a sonhada tarifa zero na capital paulista, Gregori considera medidas intermediárias, como intensificar o uso dos corredores de ônibus que a Prefeitura tem criado. Ou zerar a cobrança nesses locais, o que tornaria o transporte público “fantasticamente competitivo” com o carro. Ele imagina também o cenário em que a tarifa cairia drasticamente: “Se baixar muito, a partir de um momento o custo do sistema de arrecadação não compensa: tem de bancar o controle eletrônico, as catracas, a separação de quem pagou de quem não pagou, o tempo perdido pelo usuário na fila para comprar bilhete e na catraca”.
Projetos de lei sobre gratuidade de tarifa*
Projeto | Autores | O que propõe |
420/2013 | Jair Tatto (PT) | Institui o Bilhete Único Infantil, para disciplinar o transporte gratuito de crianças |
392/2013 | Laércio Benko (PHS) | Isenta o acompanhante de portador de deficiência física e mental |
376/2013 | Gilson Barreto (PSDB) | Altera o Programa de Transporte Escolar Municipal Gratuito |
362/2013 | Calvo (PMDB), George Hato (PMDB), Nelo Rodolfo (PMDB) e Ricardo Nunes (PMDB) |
Isenta atletas de categorias de base de esportes olímpicos federados na respectiva entidade regional de administração de desporto |
63/2013 | Eduardo Tuma (PSDB) | Isenta policiais civis |
61/2013 | Coronel Telhada (PSDB) e Edir Sales (PSD) |
Gratuidade de tarifa intermunicipal de ônibus aos integrantes da Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Civil Metropolitana mediante a apresentação de carteira funcional |
52/2013 | Eduardo Tuma (PSDB) | Isenta integrantes da Polícia Militar e Guarda Civil Metropolitana, ativos e inativos, em trajes civis |
44/2013 | Goulart (PSD) | Isenta homens a partir de 60 anos |
22/2013 | Reis (PT) | Institui bilhete único de transporte gratuito para policiais civis e militares |
427/2012 | Atílio Francisco (PRB) | Prevê tarifa zero para estudantes com a verba de anúncios em ônibus |
334/2012 | Abou Anni (PV) | Isenta policiais militares reformados |
295/2011 | David Soares (PSD) | Amplia os casos atendidos pela Lei 11.250/1992, que dá transporte gratuito a portadores de deficiência |
256/2011 | Netinho de Paula (PCdoB) – licenciado | Isenta bolsistas do Prouni no trajeto entre a residência e a universidade |
215/2011 | Abou Anni (PV) | Isenta funcionários que se aposentaram na função de motorista, cobrador ou funcionário da manutenção, fiscalização e administração do sistema de transporte coletivo urbano de passageiros |
401/2010 | Aurélio Miguel (PR) | Oferece transporte especial de convalescentes e de doentes internados com dificuldade de locomoção |
287/2010 | Abou Anni (PV) | Altera o Programa de Transporte Escolar Municipal Gratuito |
9/2009 | Floriano Pesaro (PSDB), Marta Costa (PSD) e Mara Gabrilli (ex-vereadora) |
Isenta cuidadores voluntários, desde que na companhia da pessoa com deficiência ou mobilidade reduzida que é cuidada |
7/2009 | Alfredinho (PT) | Isenta crianças de até cinco anos |
*Gratuidade no sistema de transporte coletivo público municipal. Projetos em tramitação apresentados na atual legislatura e na anterior.
CPI do Transporte Coletivo
Comissão: Vereadores da CPI dos Transportes estudam as planilhas de custo do transporte no Município
Fábio Lazzari/CMSP
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Transporte Coletivo foi instalada no dia 28 de junho de 2013, em resposta às manifestações populares deflagradas pelo aumento de R$ 0,20 da tarifa de ônibus na cidade. O grupo foi criado para averiguar as planilhas de custo do transporte coletivo no Município. A discussão passa, também, pela qualidade do serviço. “Há um problema grave: temos uma tarifa que não é barata, você não está andando de graça, e tem uma qualidade que é questionável”, disse o presidente da CPI, Paulo Fiorilo (PT).
Os trabalhos devem ser concluídos em 25 de outubro, mas pode haver uma prorrogação por mais 120 dias. Ao final, será elaborado relatório sobre a matéria.
Como toda CPI, esta tem poderes de investigação próprios das autoridades judiciais. As conclusões podem ser encaminhadas ao Ministério Público para promoção da responsabilidade civil ou criminal dos possíveis infratores.
Além de Fiorilo, também integram a Comissão os vereadores Eduardo Tuma (PSDB), vice-presidente; Edir Sales (PSD), relatora; Adilson Amadeu (PTB); Milton Leite (Democratas); Nelo Rodolfo (PMDB) e Roberto Tripoli (PV). Os parlamentares têm feito encontros semanais, nos quais interrogam principalmente presidentes e diretores de empresas prestadoras de serviço de transporte coletivo. A transcrição de todos os encontros está disponível no site da Câmara, bem como os requerimentos enviados e os ofícios recebidos.
Durante uma aula pública dada em 12 de julho, em Santo André, a integrante do Movimento Passe Livre Monique Félix disse que a CPI “é uma resposta do Poder Público à pressão das ruas, apesar de ter o partido do governo na presidência”.
No dia 22 de agosto, a Câmara sediou uma audiência pública convocada pelo presidente da Casa, José Américo (PT) , sobre o transporte coletivo em São Paulo. A iniciativa veio depois de o vereador ouvir as demandas de manifestantes que se reuniam em frente ao Palácio Anchieta. Para Américo, os protestos mostram que a qualidade dos serviços públicos não tem acompanhado o crescimento do padrão de vida da população.
A Casa tem convocado audiências públicas sobre transporte público coletivo desde antes das manifestações de junho. No dia 25 de maio, por exemplo, a população foi consultada sobre o transporte escolar gratuito, em uma sessão bastante movimentada.
SAIBA MAIS
Livro
Cidades Rebeldes. Vários autores. Boitempo Editorial. 2013.
Site
www.saopaulo.sp.leg.br – Seção CPI.