Magic Paula
Ex-atleta vê falta de investimento em educação esportiva para crianças e cobra transparência no setor público
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Quando decidiu trabalhar como gestora pública, um dos maiores obstáculos enfrentados por Maria Paula Gonçalves da Silva, que jogou por 22 anos na seleção brasileira de basquete, foi a descontinuidade das ações de governo a cada mudança de gestão. “Temos inúmeros centros esportivos na cidade que estão caindo aos pedaços, administrados por pessoas sem capacidade técnica”, diz.
Graduada em educação física e pós-graduada em administração esportiva, foi diretora do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa da Prefeitura de São Paulo (de 2001 a 2003 e de 2005 a 2011), secretária nacional de Esporte de Alto Rendimento do Ministério do Esporte (2003) e coordenadora de Gestão de Esporte de Alto Rendimento da Cidade de São Paulo (2009-2011). Em relação à organização da Copa do Mundo e da Olimpíada no Brasil, ela lamenta a pouca atenção à educação esportiva nas escolas. “Perdemos uma grande chance de fazer com que a criançada conhecesse outras modalidades de esporte”, critica. Segundo Paula, o foco de todo investimento é para quem tem possibilidade de medalha.
Quando jogava, seu desempenho lhe rendeu, em 1983, o apelido de Magic Paula (em alusão ao ídolo do basquete norte-americano Magic Johnson). Levou a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Cuba (1991), venceu o mundial de seleções de 1994 e conquistou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Atlanta (1996).
Hoje, aos 54 anos, dedica-se quase inteiramente ao Instituto Passe de Mágica, organização não-governamental (ONG) que fundou em 2004 e educa, por meio do esporte, 840 crianças e adolescentes em Diadema, Piracicaba e na capital paulista. Além da atuação no Instituto, dá palestras em empresas e integra um grupo que busca transparência e ética no mundo esportivo.
O que Copa e Olimpíada deixarão para o País?
Desde quando soubemos que iríamos sediar a Olimpíada, acompanhamos um legado apenas estrutural e de investimento quase que total no alto rendimento, para atletas que são potenciais medalhistas. Acho pouco para quem vai sediar uma Olimpíada. Não houve preocupação com o que será o pós-Olimpíada para essa infraestrutura toda montada na cidade do Rio de Janeiro. Já tivemos a experiência de Pan-Americano e os espaços ficaram vazios, sem uma utilização adequada. Idealizamos, planejamos e estruturamos os espaços onde as competições serão realizadas, mas não tivemos o mesmo carinho para resgatar a memória da cultura esportiva no País. Não senti uma ligação com a parte educacional nas escolas, para mostrar o que são os esportes olímpicos, quem são os ídolos nacionais, os medalhistas. Vivemos um momento bem crítico, com dificuldade de seduzir a criança para que pratique esporte. Há uma epidemia de inatividade física e obesidade infantil, porque a tecnologia vai evoluindo e as crianças brincam menos, gastam menos energia. Perdemos uma grande chance, de fazer com que a criançada curtisse mais esportes, conhecesse outras modalidades, e que o foco de todo investimento não fosse só para quem tem possibilidade de ter medalha, já que o Brasil se comprometeu com a meta de ficar entre os dez primeiros nos Jogos Olímpicos. É na quantidade que a gente pode melhorar nossa qualidade. Temos um País de 200 milhões de habitantes e, desses, 400, 500 atletas estarão na Olimpíada. É na atividade que mostramos as modalidades esportivas para a criançada e podem surgir os talentos. E aqueles que não forem talentos também vão aprender a conviver em grupo, com hierarquia, disciplina, regra, ética, cidadania, e a buscar seus sonhos.
Como minimizar o mau uso de espaços após esses eventos?
Quando pensamos em construir algo, dentro do planejamento tem que estar o custo de utilização pós-evento, porque a gente não tem tanta dificuldade de construir, de fazer coisas modernas. Mas o grande desafio é, depois de encerrada uma competição desse nível, saber quem vai utilizar e manter. Se o poder público não tem condição de assumir isso, que seja o setor privado.
Como administradora pública, quais dinâmicas vivenciou que contribuíram ou foram nocivas ao esporte?
O grande desafio nesses dez anos em que trabalhei no setor público foi ver a desmotivação dos profissionais que atuam na ponta. O servidor público, sempre muito criticado, muitas vezes não é valorizado e sente que seu trabalho, por mais que esteja sendo bem feito, será desconstruído ou descontinuado por alguém a cada quatro anos, quando entra um novo partido, uma nova gestão. O funcionário está ali, às vezes, há 20 anos. Já conviveu com cinco, seis, sete gestões, e cada um que chega fala que é o melhor e joga na lata do lixo tudo o que foi feito. Também senti que quem vence as eleições não tem um diagnóstico, um planejamento estratégico, processo normal em qualquer empresa. Temos de chegar a um ponto em que a gente administre também o setor público de uma forma moderna. Há inúmeros centros esportivos na cidade caindo aos pedaços, administrados por pessoas sem capacidade técnica e operativa. Nunca vivenciaram aquilo, não têm recurso. E de repente ficam falando em construir mais centros olímpicos. Para mim não bate.
Por que não reformar, deixar bacana o que existe e aquilo ser o celeiro para que possamos abastecer um centro olímpico adequado?
Falta muito para que se deixe de brincar com a política, de dar cargo em algum lugar da administração pública a quem ajudou o político a se eleger, mesmo que esse indicado não tenha expertise para exercer a função. Estamos brincando com a população e isso virou praxe, epidemia, de pessoas alocadas em espaços sobre os quais não têm o menor conhecimento. É importante a gente tomar a posse das ações para a população.
Os dirigentes esportivos devem ter formação específica ou basta terem sido atletas, conhecerem os meandros?
Não acho que, por ter sido um medalhista olímpico, um atleta conhecido, de nível e grandes conquistas, você vai ser um bom gestor. Para tudo na vida você tem que se capacitar, se reciclar. Minha grande preocupação, quando assumi o Centro Olímpico, foi colocar em prática um pouco do que aprendi em vários cursos. A gente não sabe nada. Não dá para levar a sua prática em quadra, em campo, na piscina, como atleta, para a gestão de um equipamento público. Tem todo um ritual e normas a serem seguidas, que você jamais vivenciou.
Acredita que haja maior risco de exploração sexual infantil nos grandes eventos esportivos do Brasil, como foi mencionado em CPI da Câmara encerrada em 2013?
Não precisa ter grandes eventos para que isso aconteça em nosso País. Esse assédio acontece muitas vezes dentro de casa. Deveríamos ter leis mais contundentes. O comportamento só muda quando a punição é forte, mexe no bolso. Precisamos dar um basta, denunciar, acabar com esse medo de falar e de denunciar. É preocupante que CPI, no Brasil, fique no debate, na conversa, mas não resolva, e não vejamos soluções sendo tomadas. Isso gera descrédito.
Como é o trabalho do Instituto Passe de Mágica?
Trabalhamos há 12 anos com esporte como ferramenta para o desenvolvimento do indivíduo. Quando idealizei um trabalho social, pensei que o esporte agregou valores à minha vida, além de me permitir jogar pelo Brasil, conhecer o mundo inteiro, viver profissionalmente pelo esporte. Poucas meninas que conviveram comigo tiveram o privilégio de ser medalhistas olímpicas, pan-americanas, campeãs mundiais. Mas tenho certeza de que o esporte as empoderou demais, deu autonomia, ensinou a ganhar e perder. São fatores que a gente carrega para a vida. Então, quando a gente iniciou o trabalho no Instituto, minha preocupação era essa, de que todos pudessem participar. Não só aquele que tivesse talento ou jeito para o basquete. Nosso foco é voltado ao que o exercício gerou naquela criança, se não recebeu a bola, não passou a bola, se foi mais coletiva ou individualista. Para tentar mexer um pouco com os valores individuais de cada um, empoderar essa criançada para tomar decisões e ir atrás do que quer. O instituto trabalha também com mobilização e participação em políticas públicas, junto com outras 77 instituições que lidam com o esporte nesse nicho social e fazem parte da Rede Esporte pela Mudança Social. A gente debate, troca ideias, tenta se posicionar diante do poder público para ter um sistema nacional de esporte, um formato em que as instituições não vivam nessa insegurança gerada todo ano.
Quais as dificuldades esse tipo de instituição tem para entrar em operação no Brasil?
É muito difícil. O Instituto Passe de Mágica levou quatro anos para conseguir o primeiro parceiro. A gente sobrevive, desde 2007, praticamente com as leis federais de incentivo ao esporte e com recursos do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) de São Paulo. Temos também alguns parceiros de longa data. Às vezes estamos com projeto aprovado, com recurso na conta, e tem burocracia, falta alguém assinar um papel e isso interrompe a continuidade de um projeto por dois, três meses. É bem complicado. Em todo período de planejamento para o ano seguinte a gente teme demais que tudo acabe. Ainda mais que estamos vivendo uma crise política, que gerou a crise econômica, moral, social. Como estarão os lucros das empresas para haver aporte nos projetos de incentivo para o ano que vem?
O que pensa sobre iniciativas como o Bom Senso Futebol Clube?
Eu sou co-fundadora do Atletas pelo Brasil, que tem um pouco esse foco do advocacy (representação de interesses de um setor a tomadores de decisão), conta com atletas e pós-atletas e hoje tem a Ana Moser, ex-jogadora de vôlei, como presidente. Com poucas exceções, existe um segmento entre os dirigentes esportivos que não quer proximidade com quem busca transparência e ética. As pessoas que vivenciaram e vivem do esporte começam a contribuir com a estrutura dessas entidades esportivas, que são frágeis, não têm uma gestão profissional, trabalham em benefício próprio e não em prol do esporte. O Atletas e o Bom Senso são exemplos de que o Brasil está em busca de maior clareza e transparência na gestão esportiva.
NR: Criado em 2013 por jogadores, o Bom Senso Futebol Clube luta pela transparência, integridade, ética e democracia no futebol brasileiro.