Herança espanhola
Em 1912, empresário apresentou aos vereadores projeto para construir um coliseu na Vila Mariana e trazer de volta as touradas para São Paulo
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Para alguns, arte; para outros, barbárie. Não é de hoje que se discute como se referir às touradas e, em meio a essa controvérsia, durante o século 19 e começo do 20 os paulistanos se divertiam com esse tipo de evento, também conhecido como tauromaquia.
Em 15 de dezembro de 1877, por exemplo, o jornal A Província de S. Paulo publicou um anúncio que convidava a população para “um grande circo de touros, um extraordinário espetáculo”, com a participação de toureiros espanhóis e portugueses e de “magníficos bois de raça”, entre eles “o invencível e heroico boi amarelo de Jacareí”.
A tourada seria realizada em 1º de janeiro de 1878, no Largo dos Curros (curro é o nome do local em que ficavam os animais antes dos espetáculos), onde atualmente está a Praça da República, na região central da capital paulista. A propaganda também informava que haveria animais à disposição de toureiros amadores.
Apesar do sucesso desse tipo de evento, em 1906 o vereador Manoel Correa Dias, vice-presidente da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), apresentou uma emenda ao Orçamento do ano seguinte tornando ilegais os circos de touros. A Câmara aprovou o projeto, que se tornou a lei 956/1906, e o prefeito Antônio da Silva Prado sancionou. Segundo a legislação, ficaram “proibidos os espetáculos de tauromaquia e suprimido o respectivo imposto”.
COLISEU DA VILA MARIANA
Seis anos após a proibição, o empresário Manoel Antonio Dias entrou na CMSP com um requerimento que solicitava a revogação do parágrafo da lei que havia proibido as touradas. Pedia, também, permissão para construir o Coliseu Paulista, onde ocorreria o espetáculo Feira de Sevilha.
O Coliseu seria erguido na Rua Bernardino de Campos, na Vila Mariana, na época perímetro rural da cidade. De acordo com a planta anexada à petição, a arena seria construída em concreto e madeira (peroba e pinho do Paraná), com capacidade para receber até 5 mil pessoas nas galerias e camarotes.
Como justificativa para a volta das touradas, Dias alegou que nos espetáculos seriam utilizadas garrochas (pequenos espetos) especiais, que não machucavam os animais. O empresário garantia “um divertimento agradável ao público pelo fato de não ferir nem molestar o animal”. Para comprovar o que afirmava, anexou à petição um modelo do espeto indolor e uma cópia do Diário Oficial da União com a patente da invenção de “uma garrocha não penetrante para divertimentos tauromáquinos”.
O objeto era uma invenção do português Luiz Coelho Telles, empresário das corridas de touro. Segundo a descrição da patente, deveria ser usado da mesma maneira que se usavam as garrochas, “mas com a vantagem de não ferir nem molestar, por qualquer outro modo, o animal”.
Segundo a explicação, a garrocha era uma haste de madeira (similar à das farpas) e em sua extremidade havia uma pinça que se fechava automaticamente pela ação de uma mola quando esbarrava contra um objeto. A extremidade era arredondada para não ferir o animal. Com isso, haveria a garantia de que as corridas de touros deixariam de ser um divertimento bárbaro e condenável, sem deixar de ser um espetáculo similar ao modelo tradicional, com farpas.
A Câmara Municipal encaminhou o pedido de Manoel Antonio Dias à Prefeitura, que por sua vez enviou à Inspetoria de Polícia Administrativa. De acordo com o parecer do órgão, “o aparelho apresentado preenche os fins a que se destina: de proteção aos animais, evitando que sejam feridos ou que sofram dor violenta”. Os técnicos da Inspetoria também negaram que as touradas provocassem cansaço excessivo nos animais, “pois é certo que o touro depois de cansado não se presta mais a ser lidado”.
Entretanto, um funcionário da Diretoria Geral da Prefeitura alegou que a lei 956 teve o objetivo de pôr fim ao “espetáculo bárbaro de fazer sofrer os animais, não só farpeando-os, como produzindo quedas e extenuando-os com excessivas corridas, muitas vezes, debaixo de um sol ardente”. O funcionário ainda lembrou que, “mesmo removido o ato degradante da farpeação, persistem outros motivos que ditaram a citada lei”. Sua conclusão é que a proibição deveria ser mantida porque o “instrumento apresentado pelo requerente vem apenas atenuar o sofrimento dos animais”.
Após os pareceres, a Prefeitura manteve a proibição. “Nenhuma razão econômica ou financeira aconselha a revogação do dispositivo legal citado”, justificou o prefeito Washington Luís, futuro presidente da República, em um despacho de 8 de maio de 1919.
SEGUNDA TENTATIVA
Em 1921, os pró-touradas voltaram a agir. O empresário Francisco Peyres tentou derrubar a proibição e conseguir licença para erguer um circo-anfiteatro provisório, onde seria realizada “uma temporada de diversões de touradas”, um “simulacro das célebres touradas de Madri”, já que seriam usadas garrochas que não machucavam os animais.
No requerimento, Peyres afirmou que em Portugal e na França, por Lei Constitucional, as touradas também eram proibidas, mas, segundo ele, todos os anos havia meses destinados à “Temporada de Touros”, com resultados benéficos ao país pelas transações comerciais em geral.
De acordo com o empresário, as licenças eram concedidas nesses países porque consideravam as touradas um verdadeiro espetáculo esportivo, em que o artista (“pois a lida de touro é uma arte”), para entrar na arena, precisava ser dotado de calma, presença de espírito, coragem, sangue frio, agilidade e habilidade, “com o fim de demonstrar a superioridade do ser humano que, com sua inteligência, consegue vencer a força física do irracional”.
Peyres ainda alegou que a arena de touros seria de grande utilidade para o País, especialmente para os criadores de todas as espécies de gado, que poderiam exibir nesse espaço seus valiosos exemplares e mostrariam o esforço dos criadores para intensificar a perfeição das raças de gado, “a que se dedicam com tanto afã”.
A Comissão de Justiça e Polícia da Câmara Municipal analisou o pedido e, em 10 de maio de 1921, decidiu pelo seu arquivamento e justificou que os “espetáculos tauromáquicos” não eram permitidos na cidade.
Hoje as touradas continuam proibidas em São Paulo. A Lei Orgânica do Município, aprovada em 1990, determina que “ficam proibidos os eventos, espetáculos, atos públicos ou privados, que envolvam maus tratos e crueldade de animais”. A lei 11.359/1993, proposta pelo vereador Paulo Kobayashi, deixa claro quais eventos estão vetados: rodeios, touradas e similares.
O decreto 37.584/1998, que regulamentou a lei, esclarece que são considerados “maus tratos ou crueldades o uso de equipamento, aparelho, método ou produto que possa provocar ferimento, cerceamento ou prejuízo das funções vitais do animal por qualquer lapso de tempo, bem como a falta de água ou de alimentação e alojamentos adequados”. O documento inclui entre os equipamentos proibidos todos os tipos de sedém (cinta usada nos rodeios), peiteiras (parte do arreio), esporas pontiagudas cortantes, sinos, cacos de vidro, aparelhos que provocam choque elétrico, luvas com aderência, lanças, bandeirilhas de touradas, pó-de-mico e outros.
No Brasil, as touradas foram proibidas pelo presidente Getúlio Vargas em 1934. O decreto vetou a realização de “lutas entre animais da mesma espécie ou de espécie diferente, touradas e simulacros de touradas”. Já a Constituição de 1988 proíbe as práticas que submetam os animais a crueldade.
Atualmente, em Portugal, no México e em outros países latino-americanos as touradas ainda fazem sucesso. Entretanto, até na Espanha, onde é considerado um símbolo nacional, o evento vem perdendo apoio popular nos últimos anos. Uma pesquisa realizada em 2015 revela que apenas 19% dos espanhóis entre 16 e 65 anos apoiam a tauromaquia. Em 2013, os favoráveis eram 30%. Na Catalunha, comunidade autônoma espanhola, as touradas estão proibidas desde 2012.