O ‘bárbaro’ que salvou São Paulo
Responsável pela aliança entre índios e portugueses, ele foi fundamental para a manutenção da Vila de São Paulo de Piratininga
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Quando os padres jesuítas chegaram ao Planalto Paulista, ficaram escandalizados com o que viram: João Ramalho, um português que vivia como indígena, andava pelado e era casado com várias mulheres. “Ele e seus filhos andam com as irmãs das esposas e têm filhos delas, vão à guerra com os índios e suas festas são de índios, e assim vivem andando nus como os mesmos”, descreveu Manuel da Nóbrega em 1553. Os descendentes de Ramalho foram os primeiros mamelucos (filhos de branco com índio) da região.
De início, os religiosos ficaram contra o europeu que havia se “barbarizado”, mas com o tempo perceberam que ele seria fundamental para a catequese dos indígenas. Assim, uniram-se a Ramalho, e essa aliança foi primordial para garantir que a Vila de São Paulo de Piratininga continuasse existindo. A importância de João Ramalho é tão grande para a cidade que ele é considerado o patriarca dos mamelucos, o pai dos paulistas ou, ainda, o fundador da paulistanidade. Entre seus tantos descendentes, há figuras notórias como a rainha Silvia (casada com o rei Carl Gustav 16, da Suécia) e a escritora Lygia Fagundes Telles.
A vida de João Ramalho é cercada de mistérios. Era analfabeto? Estava mais para nobre ou criminoso? Quando chegou ao Brasil? Existem discussões, inclusive, se era judeu. “São muitos enigmas, sua vida daria um belo filme”, comenta o historiador Carlos Bacellar, em entrevista à Apartes (veja adiante).
Pouco se conhece sobre os primeiros anos de João Ramalho. Nasceu em Vouzela, norte de Portugal, em 1493, onde se casou com Catarina Fernandes das Vacas. As razões de sua chegada ao Brasil são desconhecidas. Ele teria desembarcado na Região Sudeste por volta de 1515, mas não há registro que aponte se era um colono, um náufrago ou um degredado (criminoso condenado ao exílio).
Ramalho se adaptou bem ao novo território. Conheceu os índios tupiniquins e ficou próximo do cacique Tibiriçá (vigilante da terra, na língua tupi), um dos principais líderes dessa tribo no Planalto Paulista. Por causa da aproximação, terminou se casando com uma das filhas do cacique, Bartira (flor de árvore, em tupi). Mas, como era costume entre os índios, também tinha outras mulheres, entre elas algumas irmãs de Bartira.
Após essa aliança com os tupiniquins, o português conseguiu reunir um pequeno exército. O aventureiro alemão Ulrich Schmidel afirma, no livro Viagem ao Rio da Prata, que Ramalho era “capaz de arregimentar 5 mil índios em um só dia”. Em 1532, o patriarca se encontrou, na Vila de São Vicente (também conhecida como Porto dos Escravos), com Martim Afonso de Souza, que vinha desbravando para a Coroa Portuguesa as terras recém-descobertas. O explorador escutara histórias de que no alto da serra haveria ouro e prata. Ramalho decidiu, então, guiá-lo por um caminho conhecido dos índios, a Trilha dos Tupiniquins.
A jornada (veja mapa) foi narrada por Eduardo Bueno no livro Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores.
Em barcos a remo, foram da Vila de São Vicente até Piaçaguera de Baixo (atual Cubatão). Então caminharam por terras alagadas até Piaçaguera de Cima, onde começaram a subida da Serra de Paranapiacaba (lugar de onde se vê o mar, em tupi). Ao chegarem à nascente do Rio Tamanduateí, seguiram o curso das águas, saíram da mata fechada e entraram em um vasto campo sem árvores. Ainda acompanhando o rio, chegaram à colina onde se localizava a Aldeia de Piratininga. No local, seria erguida a Vila de São Paulo.
Martim Afonso de Souza, que viria a ser o primeiro donatário da Capitania de São Vicente, percebeu que João Ramalho era o principal líder da região do Planalto Paulista. Ele aprisionava os índios inimigos dos tupiniquins e os vendia como escravos para os portugueses.
No Planalto, João Ramalho vivia em um povoado chamado Santo André da Borda do Campo. Em 1553, o primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, transformou o povoado em vila, da qual Ramalho foi vereador e alcaide (prefeito), além de guarda-mor de toda a região. Até hoje não se sabe exatamente a localização dessa vila. Os historiadores acreditam que tenha sido erguida em algum ponto que atualmente pertence ao município de São Bernardo do Campo.
Mesmo sendo uma das pessoas mais importantes da vila, foi expulso de uma missa realizada na Capela de Santo André, pelo padre Leonardo Nunes. A alegação do sacerdote era que o português havia sido excomungado, um tempo antes, por viver em concubinato com várias mulheres.
Mesmo com a excomunhão, quando o padre Manuel da Nóbrega conheceu João Ramalho pessoalmente tornou-se bem próximo dele. Nóbrega batizou Bartira, que escolheu o nome cristão Isabel Dias, e celebrou o seu casamento católico. “João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta capitania”, afirmou o padre em carta ao religioso Luís Gonsalves da Câmara, que estava em Lisboa.
O sogro de Ramalho também recebeu o batismo e passou a se chamar Martim Afonso Tibiriçá, em homenagem ao explorador que conhecera anos antes. A pedido de Nóbrega, João Ramalho mandou um de seus inúmeros filhos, André, acompanhar o padre em uma expedição pelo interior do território em busca de mais índios para catequizar.
CERCO DE PIRATININGA
Como os ataques dos índios tamoios eram cada vez mais frequentes, o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, ordenou em 1560 que os moradores de Santo André da Borda do Campo, a Câmara Municipal e até o pelourinho, símbolo da Coroa portuguesa, fossem transferidos para a Vila de São Paulo. Essa mudança agradou bastante aos jesuítas, que viram o colégio que haviam fundado na futura capital (e que deu origem à cidade de São Paulo) ficar mais protegido. Como João Ramalho já era vereador em Santo André da Borda do Campo, passou a ser vereador paulistano.
Os tamoios não se intimidaram com a união das vilas. Em 1562, aliaram-se aos guaianases, aos tupis e aos carijós e atacaram São Paulo. Segundo relato do padre José de Anchieta, os indígenas chegaram pela manhã, “pintados, emplumados e com grande alarido (gritaria)”. Os ferozes combates duraram dois dias, e os inimigos chegaram até a horta dos jesuítas. Mas Ramalho, então nomeado capitão da gente (uma espécie de protetor), e seus aliados conseguiram salvar a vila.
Poucos meses após o ataque, em 25 de dezembro, Tibiriçá morreu vítima de uma peste. Como reconhecimento à sua bravura, seu túmulo está na cripta da Igreja da Sé, no Centro de São Paulo, a mais importante da cidade.
Por gratidão a João Ramalho, os moradores da vila de São Paulo o elegeram vereador mais uma vez. Porém, como consta da ata da Câmara de 15 de fevereiro de 1564, ele recusou o posto, alegando ser muito velho para o cargo (“passava dos 70 anos”) e por estar satisfeito com a vida que levava. Após a renúncia, voltou para o Vale do Paraíba, onde morreu em 1580.
HERÓI CONSTRUÍDO
No final do século 19 e começo do 20, procurou-se desvendar os mistérios envolvendo João Ramalho. As pesquisas eram feitas principalmente pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, criado em 1894. Historiadores foram a Portugal para descobrir a origem do patriarca e concluíram que ele não pertencia à nobreza. A partir de análises caligráficas de sua assinatura descobriu-se que ela foi escrita por várias pessoas, o que indicaria que Ramalho era analfabeto.
Naquela época, a capital paulista estava em um processo de crescimento econômico acelerado por causa do café. E, com a aproximação das comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, São Paulo procurava um personagem que representasse a força do Estado. O professor Carlos Bacellar explica que Pedro Álvares Cabral, que nos outros Estados estava sendo considerado o grande personagem do Descobrimento, “não servia para o papel de representante paulista porque não tinha passado por aqui”.
Para os intelectuais da época, João Ramalho poderia ser esse personagem. Mas depunha contra o português sua má fama, difundida nos relatos dos jesuítas. Dessa forma, historiadores começaram a fazer pesquisas para construir e reforçar a imagem heroica de João Ramalho. Para orgulho de muitos paulistanos, atingiram o objetivo. Em 1927, os vereadores de São Paulo homenagearam o casal que deu origem a tantos paulistanos, dando o nome de Bartira e João Ramalho a duas ruas no bairro Perdizes.
ENTREVISTA | CARLOS BACELLARCarlos de Almeida Prado Bacellar, professor de história colonial da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que é preciso ter cuidado ao se analisar a vida de João Ramalho, pois há poucos registros sobre o português. Mas Bacellar, um dos autores do livro História de São Paulo colonial, reconhece que, sem a ajuda desse personagem misterioso, seria bem difícil que os padres jesuítas e os colonos se estabelecessem na capital: Quem foi João Ramalho?Um personagem muito polêmico, folclórico até. Ele apareceu nos registros de nossos cronistas coloniais de uma maneira bastante pontual, são apenas citações. Discute-se mais João Ramalho no presente do que em sua época. Foi no final do século 19 e começo do 20 que começaram a se preocupar em tentar descobrir quem era João Ramalho. É um personagem muito evasivo de nossa história. Há apenas indícios sobre ele. E por isso muita gente viajou com essas informações. Nós, os historiadores, temos de tomar cuidado. Como ele chegou ao Brasil?Tudo indica que foi um náufrago ou um degredado. No passado se deu muito mais atenção à possibilidade de ele ser um náufrago porque ser um degredado poderia pegar mal. Mas, nos contatos que teve com os portugueses, ele nunca mencionou esse naufrágio nem seu passado, o que a meu ver torna mais plausível a hipótese de ter sido um degredado. Qual sua importância para a cidade de São Paulo?Ele está muito relacionado à fundação da cidade. Ele chegou muito antes de os portugueses se instalarem por aqui. Quando houve o encontro, foi cheio de atritos. Os jesuítas olharam muito mal pra ele. Ramalho foi chamado de bárbaro e de selvagem porque tinha abandonado a religião católica. Mas Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil, percebeu nele um possível aliado para instalar o poder régio na colônia. O apoio de alguém que convivia com os índios e tinha uma evidente força política entre eles foi fundamental para fundar e manter a Vila de São Paulo de Piratininga. O quanto a cidade atual deve a Ramalho?A possibilidade desse núcleo de povoamento ter vingado. João Ramalho foi personagem crucial das primeiras décadas de interação entre os portugueses e os índios. O fato de ele ter muitos filhos, com várias índias, permitiu que tivesse influência em várias famílias e que criasse muitos laços de parentesco. Ele impediu que os portugueses fossem massacrados [nos embates contra indígenas], pois estavam em número bem inferior. São Paulo não existiria sem ele?Não posso afirmar isso porque a presença dos portugueses trouxe epidemias que terminaram matando os índios, o que poderia garantir a presença dos europeus. Mas ele abriu portas para usar os indígenas como mão de obra. Sem a mão de obra forçada, a vila não teria condições de prosperar economicamente. João Ramalho foi o empurrão inicial que permitiu o crescimento. |
Vereadores debateram se Ramalho era judeuEm 7 de agosto 1937, mais de três séculos após a morte de João Ramalho, sua religião foi tema de debate na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). O vereador Vicente de Azevedo, do Partido Constitucionalista, foi à Tribuna criticar o escritor Gustavo Barroso, famoso por suas opiniões antissemitas e um dos líderes do integralismo, movimento político inspirado no fascismo italiano. No livro A história secreta do Brasil, Barroso afirmara que o patriarca dos mamelucos era judeu. Azevedo, com base em vários historiadores, disse que a declaração era injúria e fez inúmeros elogios a Ramalho. Segundo o parlamentar, “caracteres ilibados, católicos praticantes, talentos esplêndidos são atirados ao pântano esverdinhado do inferno integralista”. Por sua vez, em 18 de setembro de 1937, o vereador José Cyrillo, da Ação Integralista Brasileira, leu na Tribuna uma carta dirigida a ele, escrita por Barroso. “Inimigo sou dos judeus da plutocracia paulista, que exploram o nobre povo de São Paulo, querendo passar por paulistas quando são filhos da Sinagoga”, atacou, referindo-se a Azevedo como “defensor dos judeus”. Este pediu um aparte e esclareceu: “defensor dos judeus, não senhor! Permita-me que ponha um reparo. Sou defensor da memória de João Ramalho e dos paulistas que colaboraram para a riqueza e prosperidade de São Paulo e do Brasil!”. O historiador Ubirajara Prestes Filho, supervisor do Arquivo Geral da CMSP, chama a atenção para o preconceito presente nas falas dos vereadores. “O fato é que o discurso racista se encontrava dos dois lados do debate”, afirma em artigo do livro Paulistânia eleitoral. A hipótese de que Ramalho fosse judeu surgiu, principalmente, porque na sua assinatura há um símbolo como se fosse um C invertido (veja abaixo), e não uma cruz, como era o costume na época. Segundo alguns historiadores, seria o kaf, uma das letras do alfabeto hebraico. Outros pesquisadores, porém, contra-argumentam que, se ele fosse judeu, não teria alcançado tantos cargos de destaque na administração portuguesa, já que a Coroa perseguia os seguidores do judaísmo. |
SAIBA MAIS
Livros
A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900. Roberto Pompeu de Toledo. Objetiva, 2012.
A Vila de São Paulo de Piratininga: fundação e representação. Joshua Cylaine Maria das Neves. Annablume e Fapesp, 2007.
A coroa, a cruz e a espada. Eduardo Bueno. Objetiva, 2006.