Nº20 – Urbanismo

Uma lei que se encaixe na cidade

Construída com grande participação popular, nova Lei do Zoneamento busca criar normas mais simples e próximas da São Paulo real

Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br

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Em 30 de outubro de 2014, um desconhecido bateu na porta da casa sem muros nem grades da bibliotecária aposentada Maria Esméria Nogueira Santos, 66 anos, no Jardim Vera Cruz, zona oeste de São Paulo. O homem perguntou se Esméria gostaria de vender a casa onde mora há mais de 40 anos. “Fiquei assustada porque minha vida está estruturada aqui e não tenho vontade de sair”, conta. Mais tarde, ao descobrir que outros moradores também estavam sendo procurados para vender suas residências, ficou ainda mais preocupada.

O bairro Vera Cruz, assim como a vizinha Vila Anglo, fica a poucos minutos do cenário de prédios altos, barulho e tráfego intenso que habitam o entorno da estação de metrô Vila Madalena; mas, com casas térreas e sobradinhos, ruas pequenas onde as crianças jogam bola e moradores que conhecem uns aos outros pelo nome, parece estar em uma cidade do interior. É bem isso o que seus moradores temiam perder. “A gente tem uma vida tranquila, respeitosa, fraterna, toda uma história sedimentada, que de repente estava ameaçada”, relembra Esméria.

Ela resolveu fazer alguma coisa. Marcou uma reunião com os vizinhos numa praça do bairro, em 2 de novembro. Mesmo debaixo de chuva, o encontro atraiu 28 pessoas. “Uma viúva chegou chorando, disse que a casa era a única coisa deixada pelo marido e que, se vendesse, não tinha para onde ir”, conta. Naquele dia fundaram o Movimento Amigo da Vila Anglo e Jardim Vera Cruz (Mava) e decidiram resistir. Só faltava descobrir como. “O problema do brasileiro é não conhecer as leis. Foi aí que comecei a estudar a legislação.”

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DECISIVA – Sugestões de Esméria foram aceitas na nova lei e ajudaram a preservar seu bairro | Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Estudando, Esméria aprendeu sobre o Plano Diretor Estratégico (PDE), que traça as regras gerais do planejamento da cidade. O atual PDE, aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) e sancionado pela Prefeitura em 2014, buscou romper com uma lógica de pensar o Município implantada pelo prefeito Prestes Maia a partir dos anos 30, batizada de Plano de Avenidas, que privilegiava os automóveis e os grandes deslocamentos. O novo Plano Diretor busca o contrário: aproximar moradia e emprego e incentivar as pessoas a usarem mais o transporte público.

Para isso, estabelece que as regiões próximas de estações de trem e metrô e de corredores de ônibus devem ter prédios mais altos, com apartamentos menores e menos vagas de garagens. Essas regiões receberam o nome de Eixos de Estruturação da Transformação Urbana Existentes e Previstos, onde os construtores têm permissão de erguer edificações com até cinco vezes o tamanho do terreno, sem limite de altura e sem ter de pagar ao poder público pelo direito de construir, como ocorre em outras partes da cidade. É por isso que a casinha de Esméria e as de seus vizinhos entraram no radar do mercado imobiliário: por ficar ao lado do metrô, a região recebia um incentivo do poder público para ser adensada e verticalizada.

SONHAR E FAZER ACONTECER

No ano passado, o Mava juntou-se a outras quatro associações de bairro da região: Movimento de Preservação do Sumarezinho e Vila Madalena, Sociedade Amigos da Vila Madalena, Associação de Moradores por uma Vila Madalena Melhor e SOSsego Vila Madalena. Passaram, então, a participar das discussões em torno do projeto de lei (PL) 272/2015, que estabelecia as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo em São Paulo – em outras palavras, o zoneamento da cidade.

A lei complementa o Plano Diretor Estratégico: enquanto o PDE dá as linhas gerais, a Lei de Zoneamento faz o detalhamento. É a norma que explica os usos permitidos em cada rua da cidade, em quais endereços pode haver comércio, residência ou ambos, entre outras regras.

NOVO USO - Estação de metrô Belém, onde a nova lei permite construir moradia e comércio | Foto: Ricardo Rocha/CMSP
NOVO USO – Estação de metrô Belém, onde a nova lei permite construir moradia e comércio | Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Para entrarem bem municiadas no debate do Zoneamento, as cinco associações contrataram o trabalho do arquiteto Francisco Luiz Scagliusi, doutor em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo (USP). Ele apontou os riscos de um processo de verticalização na região – que, naquele momento, já vinha com tudo. “As construtoras já estavam comprando lotes, fazendo demolições e produzindo edifícios de grande altura, principalmente na Vila Madalena”, aponta o arquiteto.

Isso porque o projeto da Lei de Zoneamento, elaborado pela Prefeitura, seguia a orientação do PDE e transformava uma região de aproximadamente 700 mil m² no entorno da estação Vila Madalena numa Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana (ZEU), para verticalização e adensamento. O estudo de Scagliusi, contudo, mostrou que vários trechos marcados como ZEU não deveriam receber uma invasão de prédios altos: algumas quadras estavam localizadas em encostas muito íngremes, onde é perigoso erguer construções altas, outras tinham calçadas estreitas, parte delas era de uso exclusivamente residencial consolidado há décadas e em outras havia praças e áreas públicas com nascentes.

As associações de moradores apresentaram e discutiram suas sugestões ao longo dos nove meses em que os vereadores debateram a Lei de Zoneamento. O PL foi aprovado em 2 de março pela Câmara Municipal e sancionado 20 dias depois pela Prefeitura, transformando-se na lei 16.402/2016. A versão final do texto legal incorporava parte das sugestões dos moradores e reduziu em 200 mil m² a abrangência da ZEU no entorno da estação Vila Madalena – na prática, salvando da verticalização áreas como o Jardim Vera Cruz e a Vila Anglo. “Foi uma vitória da comunidade”, saudou o arquiteto Scagliusi. A lei também estabeleceu, para toda a cidade, um limite de 28 metros de altura para os prédios construídos em áreas muito íngremes.

“Sabe, quando a comunidade participa, fica bom”, resume Esméria, com um sorriso, diante da casinha onde ela continua a viver e da qual há poucos meses pôde retirar, com alívio, uma faixa pendurada na fachada que avisava: “Não vendemos ou trocamos esta casa”.

PARTICIPAÇÃO QUALIFICADA

A construção da Lei de Zoneamento colecionou várias histórias como a de Esméria. Em nove meses, a Câmara de Vereadores realizou 48 audiências públicas, em todas as regiões da cidade, com a presença de 8 mil pessoas. Recebeu mais de 5 mil sugestões, enviadas pessoalmente ou pelo portal da Casa. Durante o processo, moradores buscaram mobilizar nas próprias comunidades os seus especialistas, como advogados e arquitetos, que deram contribuições valiosas.

ARQUITETO - Francisco Scagliusi elaborou estudo que ajudou a salvar os sobrados da Vila Anglo | Foto: Ricardo Rocha/CMSP
ARQUITETO – Francisco Scagliusi elaborou estudo que ajudou a salvar os sobrados da Vila Anglo | Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Um dos grandes avanços em relação à Lei de Zoneamento anterior, de 2004, foi a aproximação com a São Paulo real. Além disso, as novas regras procuraram refletir os usos que as pessoas já fazem da cidade em seu dia a dia, mais do que impor o que deveriam fazer. Tanto que o mapa do zoneamento (veja adiante) se baseou na localização real das residências e dos comércios e serviços, obtida a partir de informações fornecidas pela Secretaria Municipal de Finanças sobre o Imposto Sobre Serviços (ISS) e o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) residencial e comercial. Com isso, segundo os vereadores que participaram da elaboração da lei, grande parte dos imóveis que estavam irregulares passou a ficar em áreas compatíveis com o zoneamento.

A nova legislação também simplificou as normas para a regularização das atividades de comércio e serviços. Se antes havia regras próprias para cada uma das 31 subprefeituras, o novo zoneamento reuniu em uma única lei as normas para toda a cidade e estabeleceu classificações de uso e ocupação do solo que valem para todos os bairros, seja o Itaim Bibi ou o Itaim Paulista.

Na busca de uma cidade mais humana e aberta, em que paulistanos tenham a possibilidade de compartilhar os espaços públicos, o novo zoneamento incentiva a construção de prédios com fachada ativa (comércio no térreo) e a fruição pública (abertura no térreo para a circulação livre de pessoas) não apenas ao longo dos eixos de transporte, como previa o Plano Diretor, mas também nas zonas de centralidade, que correspondem a 8% do Município.

Um princípio parecido também foi aplicado nas periferias pobres de São Paulo, batizadas de Macroáreas de Redução da Vulnerabilidade. Com uma diferença. Nessas áreas as fachadas mistas já existem há muito tempo, na forma de pequenos comércios que funcionam no térreo de sobrados, ocupados por famílias nos pavimentos superiores. Nesse caso, o papel da Lei de Zoneamento foi o de reconhecer a existência legal dessas construções, consideradas irregulares pela legislação anterior. Segundo os vereadores que participaram da discussão, permitir que metade do espaço das construções na periferia sirva a atividades econômicas tem a vantagem de desconcentrar a riqueza no Município.

Outra novidade da Lei de Zoneamento que deve trazer efeitos rápidos é a permissão para construção de prédios de moradia, comércio e serviços sobre as estações de trem e metrô e nos terminais de ônibus. Dias após a aprovação, a Secretaria Estadual da Habitação anunciou que pretende abrir um edital para uma Parceria Público-Privada (PPP) com o objetivo de instalar 7 mil moradias em cima e no entorno das estações Bresser, Belém e Brás do metrô.

POLÊMICAS E DEBATES

Um dos pontos mais controversos do novo zoneamento foi a permissão para a construção de apartamentos maiores e com mais de uma vaga de garagem ao longo dos eixos de transporte. A autorização, concedida ao mercado pelos próximos três anos, modificou a orientação do Plano Diretor Estratégico, que previa no máximo uma vaga de garagem por unidade habitacional. A justificativa é que a alteração era necessária para estimular o mercado imobiliário e combater a crise econômica.

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A permissão, contudo, não foi unanimidade entre os vereadores. Um dos argumentos é que a mudança distorceu o espírito do PDE e, em vez de atrair famílias de classe média baixa para os eixos de transporte e evitar o uso de carro, como previa o Plano Diretor, a lei aprovada se limitou a atender ao interesse das construtoras de beneficiar o mercado das classes altas e incentivar o uso do automóvel.

Apesar das concessões, o mercado imobiliário não ficou totalmente satisfeito com a nova lei, a julgar pelo posicionamento de Renato Ventura, vice-presidente-executivo da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). À Apartes, ele elogiou o processo de participação nos debates e a proposta de adensamento nos eixos de transporte, mas afirmou que “de alguma forma se manteve a visão de que o mercado é algo que deve ser controlado, e não um parceiro pelo crescimento adequado da cidade”.

Outro ponto polêmico foi a proposta da Prefeitura de ampliar a presença de comércio e serviços em alguns bairros nobres, como Jardins e Pacaembu, definidos como Zonas Exclusivamente Residenciais (ZERs). Após muitos protestos, o projeto de lei recuou em muitos pontos com relação às ZERs. Mesmo assim, o resultado final desagradou a parte dos representantes das associações de bairros dessas regiões. “A lei aumentou a incomodidade e os conflitos entre as diferentes áreas da cidade. Há casos de bairros totalmente residenciais que terminaram cortados por uma rua comercial”, afirma a advogada Célia Marcondes, presidenta da Sociedade dos Amigos e Moradores do Bairro Cerqueira César.

SOSSEGO - Em debate, moradores pedem manutenção de áreas residenciais, com pouco barulho (máximo de 40 decibéis) | Foto: Ricardo Rocha/CMSP
SOSSEGO – Em debate, moradores pedem manutenção de áreas residenciais, com pouco barulho (máximo de 40 decibéis) | Foto: Ricardo Rocha/CMSP

ETAPAS SEGUINTES

Concluídas as revisões do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento, o que vem a seguir? O próximo passo foi discutir um novo Código de Obras, cujo projeto de lei foi aprovado no Plenário da CMSP em 1º de julho e seguiu para sanção do Executivo.

Além do código, também fazem parte do planejamento da cidade de São Paulo os Planos de Bairro. De acordo com o arquiteto Valter Caldana, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, “os Planos de Bairro são a melhor forma de pegar o que está escrito no PDE e na Lei de Zoneamento e transformar em materialidade, ao levar essas questões à escala humana”.

Nesse processo, o arquiteto defende que as lições aprendidas com o debate travado na Câmara Municipal podem ser de grande ajuda. Segundo ele, nunca uma lei urbanística foi debatida em São Paulo com tanta participação: “as discussões em torno da Lei de Zoneamento conduzidas pela CMSP foram um marco, porque tiveram um trabalho de participação e comunicação com a sociedade que foi inédito”.

Sejam quais forem os próximos passos, daqui a 13 anos, em 2029, quando São Paulo fizer a próxima revisão da sua Lei de Zoneamento, será possível descobrir quais sonhos discutidos no Palácio Anchieta couberam dentro da realidade da cidade.