Parla, parlamentar!
Discursos dos vereadores fazem parte da luta política, registram a história da cidade e são protegidos pela Constituição
Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
A fala, para um parlamentar, é instrumento de trabalho. Está na própria raiz da palavra que define o local onde atuam vereadores, deputados e senadores. “Parlamento”, segundo o dicionário, vem do francês parler, que significa falar. Daí que, por definição, parlamentos são locais onde se fala. E muito.
“A base do trabalho dos vereadores é a fala”, afirma Breno Gandelman, responsável pela Secretaria Geral Parlamentar (SGP), unidade da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) que dá suporte ao trabalho dos vereadores. “Todo projeto prevê uma discussão antes de ser aprovado e, para chegar a um denominador comum entre 55 vereadores, é preciso muita conversa dos parlamentares entre si e com a população”, afirma o secretário.
É conversando que os parlamentares promovem embates ou entram em acordos e, desse jeito, fazem a política funcionar. Mesmo os textos dos projetos só podem virar lei após serem lidos em voz alta no Plenário, conforme o Regimento Interno da Câmara Municipal. E, além da fala que negocia e da fala que vira norma, vereadores também fazem uso da palavra para discursar na Tribuna, uma fala que influi nas disputas do presente e pode continuar a ressoar nas memórias do futuro.
PALAVRAS PERIGOSAS
Falar é perigoso. Em determinadas épocas, o Estado coloca olhos para vigiar os que têm a coragem de abrir a boca e há determinadas palavras que podem dar em cadeia, tortura, morte. Agenor Mônaco, vereador da CMSP em 1964, ano em que um golpe de Estado pariu uma ditadura que durou 21 anos, lembra que, após a chegada dos militares ao poder, as galerias do Palacete Prates, antiga sede da Câmara, passaram a ser frequentadas por agentes do governo que tinham a função de “informar a conduta de cada vereador”. Na época, o que era dito no Plenário podia ser a diferença entre voltar para casa após o expediente ou passar a noite na cadeia.
O vereador João Carlos Meirelles comprovou isso em 11 de maio de 1964, quando subiu à Tribuna para cobrar uma atitude contra a prisão de dois colegas. “Esta Casa não pode continuar a ouvir discursos sobre ruas esburacadas enquanto dois senhores vereadores estão na cadeia”, disse Meirelles, e foi além: “a democracia está sendo vilipendiada (desprezada)”. Seu discurso teve consequências rápidas. Três dias depois, uma carta enviada à Câmara pelos agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) dizia ter “a honra de comunicar” que Meirelles também havia sido preso e agora fazia companhia aos outros vereadores na cadeia.
Não foi o único caso. Outro vereador, Ephraim de Campos, relata em um depoimento que foi preso nove vezes durante o exercício do mandato, entre 1969 e 1972 – algumas delas por conta de ter feito na Tribuna denúncias que desagradaram ao governo.
Das várias vezes em que Campos foi preso, o País vivia o período mais duro do governo militar, iniciado após a decretação do Ato Institucional nº 5, que dava às forças da repressão poder para fechar o Congresso, cassar qualquer político e prender quem bem entendesse. Por sinal, o estopim que levou o ditador Artur da Costa e Silva a decretar o AI-5 foi justamente um discurso de Pequeno Expediente (uma das fases de uma sessão ordinária) do deputado federal Márcio Moreira Alves, em que o parlamentar pedia que o povo boicotasse as paradas de Sete de Setembro e as moças se recusassem a sair com oficiais. Em 13 de dezembro de 1968, um dia após a Câmara dos Deputados rejeitar um pedido de licença da Presidência para processar Moreira Alves, o general Costa e Silva baixou o AI-5, abrindo a temporada de torturas e execuções pelo governo. Sim, discursos podem ser muito perigosos.
IMUNIDADES
Vinte anos depois, com a redemocratização, a Constituição Federal de 1988 buscou dar imunidade aos parlamentares para que pudessem ter a liberdade de falar e atuar, como representantes de seus eleitores, sem sofrer a pressão do Executivo ou do Judiciário. O artigo 53 da Constituição determina que deputados e senadores têm imunidade plena: não podem responder, “civil ou penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Já a imunidade dos vereadores tem um alcance menor: o artigo 29 diz que os vereadores são “invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do município”.
Procurador da Câmara Municipal paulistana e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Antonio Rodrigues de Freitas Júnior afirma que a imunidade não protege os parlamentares de processos políticos, movidos pelos seus pares. “O parlamentar pode sofrer um processo, votado no Plenário, que leve à perda de mandato por quebra de decoro, mas não pode ser processado civil ou criminalmente”, explica.
A garantia da imunidade para a fala dos vereadores foi reafirmada em fevereiro do ano passado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar um bate-boca entre dois vereadores do interior de São Paulo, em que um deles havia dito na tribuna que o colega não tinha “nenhuma moral” e apoiava a “ladroagem”, a Corte estabeleceu que, “nos limites da circunscrição do município e havendo pertinência com o exercício do mandato, os vereadores são imunes judicialmente por suas palavras, opiniões e votos”. Segundo a decisão, a imunidade busca “assegurar a fluência do debate público e, em última análise, da própria democracia”.
Em junho deste ano, contudo, a Suprema Corte brasileira deu sinal de que pode rever seu entendimento, ao aceitar denúncia do Ministério Público Federal contra o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) por ter dito que uma colega, a também deputada federal Maria do Rosário (PT), “não merecia ser estuprada” porque a considera “muito feia”. “O conteúdo não guarda qualquer relação com a função de deputado, portanto não incide a imunidade prevista na Constituição Federal”, analisou o relator, ministro Luiz Fux, ao transformar Bolsonaro em réu.
Freitas vê com preocupação a possibilidade de o caso Bolsonaro levar o STF a rever a jurisprudência a respeito dos limites da imunidade para a fala dos parlamentares. “Os fundamentos da decisão descritos pelo relator são preocupantes, pois apontam para o Judiciário uma atribuição muito poderosa, a de ser juiz dos limites da liberdade de expressão dos demais poderes”, afirma o procurador.
REBUSCADOS E CENSURADOS
Parlamentares falam para o dia de hoje, mas podem ser ouvidos muito tempo depois. Sempre que o presidente de uma sessão diz “com a palavra, o nobre vereador…” e o parlamentar se aproxima do microfone instalado na Tribuna, sabe que, nos minutos seguintes, todas as palavras que disser serão anotadas pela equipe de taquígrafos da Casa. O discurso passará, então, a fazer parte dos anais da CMSP e poderá ser lido e estudado por historiadores, jornalistas e outros curiosos ao longo de anos, décadas ou mesmo séculos após as palavras terem sido pronunciadas.
Para o historiador e supervisor do Arquivo Geral da Câmara, Ubirajara de Farias Prestes Filho, que já usou os anais da Casa como base para diversos estudos, os discursos dos vereadores formam “um material interessantíssimo para a compreensão do ambiente social e político de cada época”. Segundo ele, as transcrições das falas permitem ao historiador analisar “a emoção envolvida” nos debates e compreender que vozes da sociedade se faziam ouvir nas discussões. “É possível entender, para cada época, quais grupos são realmente representados nas discussões plenárias”, afirma Ubirajara.
Quem se aventura a percorrer os textos das antigas sessões da CMSP, que hoje estão disponíveis a todos no site do Centro de Memória da Câmara, tem a sensação de que os vereadores do passado falavam uma outra língua, toda trabalhada na norma culta, nas figuras de linguagem e até nas citações em latim. Num discurso em 14 de julho de 1988, por exemplo, o vereador Brasil Vita, saudado em sua época como um dos grandes oradores da Casa, era capaz de sair com um discurso assim ao falar sobre surdo-mudos: “atentai, senhores, para eles, pois não falam, não ouvem… apenas olham. E seus olhos, num misto de atenção e indiferença, são como dois círios a se consumirem, lentamente, tragicamente, na mais lenta e trágica noite, que é a noite do silêncio”.
Falas como essa, que às vezes obrigavam os taquígrafos a recorrer a dicionários para poderem realizar suas transcrições, dificilmente teriam lugar na Câmara Municipal dos dias atuais. “Se hoje alguém fizesse um discurso assim, soaria caricato”, afirma o taquígrafo Marcelo Ablas, que há anos transforma em texto os discursos da Casa. “Os vereadores hoje preferem usar palavras mais simples. Entendem que não adianta fazer um discurso rebuscado que poucos vão compreender.”
O tom mais solto, às vezes informal, que os vereadores passaram a adotar em seus discursos tem levado os parlamentares a testar os limites do vocabulário usado em Plenário. O Regimento Interno determina que o presidente da Casa possui a prerrogativa de censurar pronunciamentos que contenham “expressão, frase ou conceito que considerar injuriosos”. Nesse caso, o presidente pode ordenar a retirada de trechos ou a substituição de palavras antes de um discurso ser publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo.
Nessa tarefa, a Presidência conta com a ajuda dos taquígrafos. “Sempre que um vereador diz algo que foge à caixinha do solene, alertamos o orador e o presidente para avaliarem se é o caso ou não de censura”, explica o secretário de Registro Parlamentar e Revisão, Alexandre Augusto Liceski da Fonseca. Já houve caso, por exemplo, de vereador que falou na Tribuna “houve uma denúncia de um babaca” e, por determinação da Presidência, o texto do Diário Oficial divulgou “houve a denúncia de alguém”. O mesmo vereador também disse que as tevês mandavam “a juventude brasileira cheirar merda”, que virou “cheirar esgoto” no registro oficial.
Em 24 de maio deste ano, Liceski advertiu o presidente de que um vereador, comentando a extinção do Ministério da Cultura anunciada pelo governo federal, havia dito no Pequeno Expediente: “autoridades que apoiam o governo falaram que os artistas eram um bando de veados”. Por conta disso, o presidente da Casa e o autor do discurso analisaram se o uso de “veados” podia ser considerado injurioso e, portanto, merecer censura.
Veados: pode ou não pode? “Os vereadores concluíram que não tinha problema, porque a palavra naquele contexto não era usada para ofender uma pessoa ou um grupo”, explica Liceski. Conclusão: quando o discurso saiu no Diário Oficial da Cidade de São Paulo, em 11 de junho, a incômoda palavra estava lá, impressa entre aspas.
Para Liceski, a adoção pelos vereadores de uma linguagem mais próxima do dia a dia, que abre espaço para gírias, vulgaridades e até palavrões, no lugar da fala empolada dos outros tempos, significou um enriquecimento dos discursos, ao contrário do que muitos podem pensar. “Os bacharéis passaram a dividir espaço com representantes de comunidades, que têm outro linguajar, mas que encaram os demais de igual para igual. Com isso, os discursos dos vereadores passaram a ficar mais próximos da realidade de São Paulo.”
População também pode falar na TribunaOs microfones do Plenário da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) também estão abertos para a população de São Paulo, e não apenas para os vereadores. O Regimento Interno da CMSP prevê a possibilidade de grupos da sociedade civil convocarem uma sessão extraordinária chamada Tribuna Popular, na primeira terça-feira de cada mês, para ocuparem a Tribuna e falarem aos vereadores. Para que uma Tribuna Popular aconteça, precisa ser solicitada por pelo menos cinco representantes de entidades ou movimentos sociais que queiram debater questões de interesse do Município ou projetos em discussão na Casa. A sessão dura no máximo uma hora e meia. Cada orador da Tribuna Popular fala por 15 minutos e pode atender a pedidos de apartes dos vereadores. Muito ativa na década passada, a Tribuna Popular foi caindo em desuso e hoje muito raramente é acionada pela população. Uma de suas última sessões ocorreu em 9 de dezembro de 2014, quando foi convocada pelas entidades Open Knowledge Brasil, Transparência Hacker e Minha Sampa para debater abertura e transparência no parlamento. “A Tribuna Popular é um dispositivo incrível de participação cidadã”, afirma Pedro Markun, um dos responsáveis pela Tribuna Popular de 2014. “A gente reclama o tempo todo do pouco espaço para participação que nos é dado pelas instituições políticas, mas a verdade é que o pouco que é oferecido acaba sendo subutilizado. A Câmara é a casa do povo, nada mais justo que ter o povo, de fato, ocupando esse espaço para levantar discussões políticas num espaço de excelência”, diz Markun. Ele só reclama de poucos vereadores terem participado da sessão da Tribuna Popular em que ele e seus companheiros falaram. “Nossa cultura política ainda é aquela em que a maior parte dos vereadores não acha importante ouvir as pessoas fora do ano de eleição”, lamenta. |