O advogado do Ratinho
Com o prestígio alcançado na TV, Dr. Farhat chegou à Câmara e deixou uma obra que dura até hoje, o Parlamento Jovem Paulistano
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Era a maior confusão na TV. Muita gente gritando e, às vezes, partindo para a agressão física, forçando os seguranças a agir. De um lado, uma mulher exigindo que um rapaz assumisse a paternidade do filho e pagasse pensão. De outro, o suposto pai negando com veemência que o filho fosse dele. Após muito suspense, o apresentador Ratinho anunciava o resultado do exame de DNA. Mais gritos e confusão.
Na cena seguinte, Ratinho anunciava: “agora o nosso advogado, Dr. Farhat, vai informar os procedimentos legais que devem ser tomados para ajudar os envolvidos”. Com voz calma, Farhat explicava o que a lei determinava, os direitos da criança e as obrigações dos pais. Assim, programa a programa, o advogado foi conquistando fama e respeito. “As pessoas pediam autógrafo pra ele na rua”, lembra-se a filha Fernanda.
Descendente de libaneses, José Rogério Shkair Farhat nasceu em São Paulo, em 11 de outubro de 1945. Seus pais, o comerciante Michel e a dona de casa Irene, tiveram seis filhos. Parte da infância de Rogério foi na Rua Cubatão, na Vila Mariana, onde jogava bola com os irmãos e os meninos da vizinhança. “Desde criança ele era corintiano roxo, paixão que herdou do pai e passou para mim e para minha irmã”, conta Fernanda.
Quando completou 18 anos, Farhat se apresentou ao Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) do Exército para servir na Cavalaria, pois adorava cavalos. “Ele nos ensinou a cavalgar”, diz Fernanda. Já Adriana, a filha mais velha, lembra-se de que ele tinha muito orgulho de sua temporada nas Forças Armadas, “que lhe deu lições de disciplina e muita responsabilidade”.
Ainda na juventude, influenciado por um tio, Farhat resolveu se tornar advogado. Segundo Fernanda, o pai nasceu para ajudar as pessoas e percebeu que a melhor forma de conseguir essa meta era exercendo a advocacia. “Não vejo nenhuma outra profissão que caberia nele”, completa Adriana. Formou-se na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 1969. Da época de estudante guardou boas lembranças e amizades. “Gostava tanto da turma que nunca faltou a sequer um encontro anual dos ex-alunos”, conta Fernanda.
Em sua carreira jurídica, trabalhou na Assembleia Legislativa de São Paulo, no Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, no Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Handebol e no Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Tênis. Também teve um escritório de advocacia onde atendia, principalmente, a população mais humilde.
Quando trabalhava na Assembleia Legislativa paulista, com o deputado Nabil Chedid, conheceu Sílvia Barros da Cunha, filha de uma funcionária. Começaram a namorar e se casaram em 1981. Ele com 36 anos e ela com 20. O casal teve duas filhas: Adriana, em 1982, e Fernanda, em 1987.
NO AR
Em 1997, o programa Ratinho Livre já era um sucesso da TV Record quando um membro da equipe do apresentador ligou para o advogado pedindo que fosse à emissora para prestar assistência jurídica às mães que pediam exame de DNA dos filhos. A ideia original era que Farhat ficasse nos bastidores, mas na hora ele foi chamado ao palco e teve uma boa atuação na frente das câmeras. Foi convidado para comparecer outras vezes. Em 1998, quando o apresentador foi para o SBT, Dr. Farhat o acompanhou.
Em entrevista à Apartes, Ratinho lembra que o advogado “ficava muito bem no ar, passava um tom de seriedade, falava bem, discursava com muita propriedade e era carismático”. De acordo com o apresentador, essas características fizeram dele uma pessoa querida pelo telespectador.
Nas eleições do ano 2000, o prestígio foi convertido em força eleitoral e ele se elegeu vereador em São Paulo, pelo Partido Social Democrático (PSD). Com a ajuda do apresentador e com o slogan “Dr. Farhat, o advogado do Ratinho”, conseguiu 63.620 votos, o terceiro candidato mais votado na ocasião. Em 2004, concorrendo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), reelegeu-se com 44.132 votos.
Na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), Farhat deixou um legado que permanece até hoje: o Parlamento Jovem Paulistano. A iniciativa, criada em 2001, busca oferecer uma lição de cidadania e democracia a 55 crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares, divididas em 11 partidos fictícios (Assistência Social; Cultura; Educação; Emprego; Esportes, Lazer e Recreação; Habitação; Natureza; Trânsito e Transporte; Saúde; Segurança Urbana; e Planejamento Urbano). Por um dia, ao ano, os jovens atuam como se fossem vereadores de fato, apresentando e debatendo iniciativas de interesse da cidade.
Segundo a justificativa de Farhat ao apresentar o projeto que resultou na resolução 10/2001, criando o Parlamento Jovem na CMSP, a ideia era levar aos jovens não só uma maior conscientização em relação aos problemas enfrentados pelo Município, mas despertar neles um espírito crítico para o mundo, desenvolver a capacidade de liderança, a responsabilidade social e o companheirismo necessários para criar mudanças positivas. Desde o início, o Parlamento Jovem ocorre todo ano e mais informações podem ser obtidas em www.saopaulo.sp.leg.br/premio-parlamento-jovem-2016.
O funcionário da Câmara Municipal Paulo Ildefonso de Paula, que trabalhou com o vereador na organização do Parlamento Jovem, lembra que o Dr. Farhat era bem humorado, mas focado no serviço. “Ele era tão detalhista que se preocupava em definir até o cardápio do almoço que seria servido às crianças”, conta Paulo. “Esse evento era a menina dos olhos do vereador”, diz.
VOZ POPULAR
Outra ideia da qual Farhat se orgulhava muito era a Tribuna do Povo, oportunidade em que qualquer cidadão podia se expressar livremente na CMSP. Inaugurada em 2003, tratava-se de uma tribuna no Auditório Freitas Nobre, no térreo do Palácio Anchieta (sede da CMSP), na qual os paulistanos podiam, durante 15 minutos, “se utilizar da palavra e discursar sobre qualquer matéria”, apresentar sugestões e críticas ou, simplesmente, expor seus próprios problemas.
No regimento interno da Câmara Municipal já havia a previsão da possibilidade de instalar uma tribuna para a população. Mas, quando apresentou a ideia de criar a Tribuna do Povo, Dr. Farhat afirmou que as regras tinham alguns requisitos complicados de ser preenchidos. Por exemplo, o munícipe que desejasse fazer uso da palavra deveria ser representante de um movimento social. Essas exigências, segundo ele, “dificultavam o exercício da livre expressão de pensamento”.
Nas sessões da Tribuna do Povo, geralmente aos sábados de manhã, Dr. Farhat atuava como mediador. Anotava as queixas e encaminhava para as secretarias e subprefeituras. Segundo o parlamentar, os cidadãos “utilizavam o microfone, sem censura e sem pauta prévia, com liberdade de falar o que quisessem, reclamar, reivindicar e dar sugestões”.
O vereador se empolgou tanto que apresentou um projeto para ampliar a realização das tribunas populares para várias regiões da cidade, a fim de garantir aos cidadãos a livre expressão de pensamento. “Não há como pensar em democracia sem a participação popular, e felizmente temos observado que essa participação, a cada dia que passa, vem se intensificando e fortalecendo”, explicou na justificativa do projeto. A iniciativa recebeu pareceres favoráveis das Comissões de Justiça, Administração, Educação e Finanças, mas terminou sendo arquivada no começo de 2009, com o fim da legislatura, e não saiu do papel.
GRATIDÃO
Farhat fez questão de conceder a Medalha Anchieta e o Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo para Carlos Roberto Massa, o Ratinho. O vereador justificou seu pedido afirmando que o programa do apresentador divertia, denunciava e ajudava a população.
Em outra proposta de honraria, enalteceu suas origens. O vereador promoveu homenagens ao Esporte Clube Sírio, fundado por imigrantes em 1917, e à Câmara Árabe-Brasileira, “pela sua tradição no relacionamento que desenvolve entre o Brasil e os países árabes”.
Em 2008, tentou outra reeleição, mas não conseguiu. Com 13.727 votos, ficou na suplência. No discurso de despedida, pronunciado na Tribuna da CMSP em 18 de dezembro de 2008, responsabilizou a Lei Cidade Limpa, que ironicamente foi aprovada com seu apoio. A legislação restringiu o uso de faixas e cartazes em espaços públicos. “Por um lado, essa lei favoreceu o conjunto de munícipes, deixando a cidade mais limpa; por outro, dificultou a divulgação da minha candidatura”, lamentou na época.
O advogado costumava resumir sua participação na Câmara dizendo que tinha a consciência tranquila por ter feito o que pôde. De acordo com Adriana, seu pai sabia dos riscos de uma eleição: “claro que não ficou contente com o resultado, mas analisou os pontos onde poderia melhorar e seguiu em frente, virou a página”.
Em 2012, Farhat disputou novamente uma eleição para voltar à Câmara Municipal. Obteve 23.160 votos e não conseguiu. Mesmo sem ocupar uma cadeira de vereador, ia com frequência ao Palácio Anchieta, principalmente para participar de seu principal legado. Esteve pela última vez em uma sessão do Parlamento Jovem em 8 de novembro de 2013. Dirigindo-se às crianças e adolescentes que estavam no Plenário, aconselhou: “participem da vida política porque a geração de vocês, um dia, vai comandar este País; preparem-se”.
A frase pode ser considerada sua despedida da vida pública. Em fevereiro de 2014, o advogado descobriu um câncer na bexiga. Começou o tratamento, mas em agosto o quadro se agravou. Dr. Farhat morreu em 14 de dezembro. “Meu pai lutou o quanto pôde, nunca entregou os pontos”, conta Fernanda.
As filhas dizem que Farhat era um porto seguro para elas. “Papai era muito presente nas nossas vidas, preocupado, mas sempre incentivador”, lembra Adriana. Ele as apoiou em suas escolhas profissionais. Fernanda se formou em radialismo e Adriana em administração de empresas.
Fernanda lamenta que o pai tenha passado tão pouco tempo com o neto, Théo. “Quando ele morreu, meu filho tinha apenas um ano e sete meses”. Mas ressalta que o tempo que ficaram juntos foi bem aproveitado. “Théo nasceu de seis meses e nos 73 dias em que ficou na UTI meu pai ia visitá-lo diariamente”, afirma. Ela acredita que Théo vai ter boas lembranças do avô: “o neto era seu maior xodó”.
Um dia após a morte do ex-vereador, Ratinho dedicou-lhe o programa e declarou no ar: “Farhat foi verdadeiramente um cidadão de bem”. O apresentador mantém até hoje boas recordações de seu colega de palco: “sempre passava no meu camarim, muito atencioso, se preocupava com cada um dos casos de DNA. Excelente advogado, acabava sendo um paizão auxiliando e orientado as famílias”.