Vizinho dos condes
Proibido de ampliar sua casa na Avenida Paulista, munícipe acusa Prefeitura de favorecer industriais
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
A cidade de São Paulo já era uma potência industrial em 1930 e passava por grandes transformações. O Código de Obras Arthur Saboya, que recebera esse nome em homenagem ao diretor de Obras da Prefeitura na época, havia sido aprovado pelos vereadores e sancionado pelo prefeito José Pires do Rio no ano anterior. Com a lei aprovada, surgiram acusações de que o Código não estava sendo respeitado por membros da elite econômica paulistana.
Em 30 de junho de 1930, Manuel Caetano Garcia protocolou um documento, hoje parte do acervo do Arquivo Geral da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), em que recorria aos vereadores sobre a decisão da Prefeitura, que havia negado licença para a construção de uma cobertura no terraço de sua propriedade, na Avenida Paulista, o endereço mais nobre da capital. O fato curioso é que naquele ano a avenida chamava-se Carlos de Campos (veja mais no quadro abaixo).
No requerimento, Garcia cita a lei 3.427/1929 (o Código de Obras Arthur Saboya), segundo a qual naquela avenida nenhuma edificação poderia ser feita sem que houvesse uma distância mínima de 10 metros entre o alinhamento do edifício e o das vias. Ele explica que, de acordo com o Código, edificar significava “fazer edifício destinado a habitações, fábricas, culto ou qualquer outro fim”. No texto original, o trecho “qualquer outro fim” está sublinhado.
Garcia admite, no pedido enviado à Câmara Municipal, que a cobertura do terraço em sua casa ultrapassaria a linha de recuo de 10 metros. E era esse o motivo que havia levado a Prefeitura a negar o pedido de licença em duas outras ocasiões, em 24 de abril e em 5 de junho daquele ano.
Embora reconhecesse estar em desacordo com a lei, em sua defesa Garcia cita dois casos bem parecidos com o seu: “o requerente não compreende como é que, na mesmíssima Avenida Carlos de Campos, o senhor conde Matarazzo está construindo, e o senhor conde Crespi já construiu, no alinhamento da citada via pública”.
No requerimento, além da planta do terraço, foram anexadas uma fotografia da mansão do conde Francisco Matarazzo e outra do palacete do conde Rodolfo Crespi. Nas fotos, podem ser vistas as entradas das mansões, com cobertura e guarita, a poucos metros da rua.
OS CONDES
Os empresários citados no documento eram destaques da elite econômica na época. Francisco Matarazzo foi o maior industrial do Brasil no século 20. Imigrante italiano, começou como mascate em 1881, em Sorocaba, interior de São Paulo, e se tornou proprietário de centenas de indústrias. Dizia-se que ele “fabricava fábricas”. Em 1917, recebeu do rei da Itália, Vítor Emanuel III, o título de conde.
A mansão Matarazzo, demolida em 1996, era um símbolo da força econômica de seu proprietário. O historiador Ronaldo Costa Couto, um dos principais biógrafos do industrial, conta no livro Matarazzo que para muitos paulistanos o palacete em estilo neoclássico parecia um gigantesco cofre.
Rodolfo Crespi, também italiano, chegou ao Brasil em 1893 e fundou uma empresa de manufatura de algodão na Mooca, zona leste da capital paulista. Em 1928, o rei Vítor Emanuel III concedeu também a ele o título de conde. No ano seguinte, em sua mansão houve um crime que chocou a cidade. Um filho do empresário, Dino Crespi, foi assassinado a tiro pelo motorista Domingos Farina, que havia sido demitido por roubo.
Na petição à CMSP, Manuel Caetano Garcia ressalta que a lei não permitia exceções, portanto os condes também deveriam cumpri-la. De acordo com Garcia, a licença para a cobertura “foi negada ao requerente, mas a outros concedida”. E conclui, de forma irônica: “o que faz supor que a lei tenha sido revogada”. Na esperança de ter o pedido atendido, no final do requerimento o proprietário do terraço sem cobertura escreve, como era costume, a abreviatura ERM, que significa “espera receber mercê”.
O presidente da Câmara Municipal na época, Luís Antonio Pereira da Fonceca, contudo, não se convenceu com os argumentos de Caetano Garcia. Poucos dias depois, indeferiu o pedido “por não ser o caso de recurso”. E o processo foi arquivado.
Homenagem passageiraProjetada pelo engenheiro uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, a Avenida Paulista foi construída onde ficava a Rua da Real Grandeza e inaugurada em 8 de dezembro de 1891. Na ocasião, cogitou-se batizar a nova via como Eugênio de Lima. Mas o engenheiro recusou a honraria e disse que a avenida deveria se chamar Paulista para homenagear todos os habitantes do Estado. A avenida logo se tornou um sucesso. Os milionários da cidade construíram palacetes e a população ia até lá ver as mansões e seus moradores, principalmente o conde Francisco Matarazzo, que se tornara um símbolo do imigrante bem-sucedido e uma atração turística. Em 27 de abril de 1927, o presidente (governador) do Estado de São Paulo, Carlos de Campos, morreu. Para homenageá-lo, os vereadores mudaram o nome da Avenida Paulista. “Tratando-se de uma via pública cujo nome recorda todos os paulistas, na sua generalidade, tenho a impressão de que a alma encantadora dessa avenida aguardava o momento oportuno para batizar-se com o nome do paulista que mais soube merecer seu povo”, afirmou o vereador Alexandre Marcondes Filho, em sessão de 30 de abril. “Os paulistas se orgulharão em ver, na soberba avenida onde Carlos de Campos passou uma parte feliz de sua existência, o nome do varão ilustre que tanto dignificou e enobreceu a sua terra e a sua gente”, completou o vereador Synesio Rocha na mesma ocasião. A homenagem durou apenas três anos. Em 13 de novembro de 1930, o prefeito José Joaquim Cardoso de Melo Neto decidiu que a avenida deveria voltar a se chamar Paulista, “que recorda, numa só palavra, todo o indefesso [incansável] trabalho e honra da gente paulista”. Atualmente, Carlos de Campos é nome de uma avenida no Pari, na zona central de São Paulo. |