André Luzzi
Para especialista em segurança alimentar, o mercado de alimentos prejudica a saúde, a cultura e as relações entre pessoas
Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Quando a ONG Ação da Cidadania surgiu, em 1993, capitaneada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, a palavra de ordem era o combate à fome e à miséria. Nos anos seguintes, a luta contra a fome passou a ser travada em uma batalha mais ampla, chamada segurança alimentar.
Membro da Ação da Cidadania e especialista no tema, André Luzzi de Campos afirma que a segurança alimentar enxerga o alimento como um direito humano, de olho nas implicações que a produção e o consumo de comida têm em todas as esferas da vida, como fonte de saúde, cultura e de relações sociais.
Como representante da Ação da Cidadania no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional da cidade de São Paulo, Luzzi ajudou a elaborar o primeiro Plano Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional, aprovado em junho e com validade até 2020.
Formado em relações internacionais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), é mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP). Concluiu neste ano o doutorado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da USP, com uma tese que analisa a atuação dos movimentos sociais na busca pelo direito à alimentação no Brasil e em Moçambique.
Luzzi também é presença constante nas edições do Prêmio Betinho, honraria criada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) em homenagem a Herbert de Souza. Em 2011, fez parte da comissão julgadora do evento. Em 2010 e 2012, colaborou na realização de uma oficina para esclarecer dúvidas a respeito da premiação.
Atualmente, Luzzi dirige o Centro de Políticas Específicas da Secretaria Estadual da Administração Penitenciária e prepara um documentário sobre um dos temas que mais o fascina. O nome? Alimentação e poder.
Como vê a questão da alimentação no Brasil?
Se antes os grandes flagelos eram a fome e a desnutrição, hoje a gente tem uma sobreposição entre a má alimentação e a ausência de alimentação. Temos grupos que passam fome e que estão desnutridos e, por outro lado, a má alimentação levando não só à obesidade, mas também a doenças associadas, como diabete, hipertensão e os diferentes tipos de câncer.
O conceito de segurança alimentar lida com tudo isso?
Exatamente. A segurança alimentar é um olhar integral, para o sujeito e o desenvolvimento, que garante acesso ao alimento, observando as necessidades alimentares de cada grupo populacional e de que forma as práticas alimentares estão apoiadas na promoção à saúde e nos hábitos culturais. A ideia é não pensar só no alimento em si, mas em todas as relações que ele constrói na vida das pessoas. Um ponto central é pensar o alimento como um direito humano.
Qual o papel do mercado na questão do direito à alimentação?
Há um grande conflito de interesses. O mercado tem uma lógica de maximizar ganhos numa escala transnacional, em detrimento de uma alimentação que tenha a dimensão da vida. Existem hoje de 7 a 12 organizações que comandam o mercado de alimentos no mundo. Empresas da área da alimentação estão dentro de grupos que incluem indústrias e o mercado financeiro. Todos veem o alimento apenas como uma mercadoria, destituído dos laços sociais e dos aspectos culturais envolvidos.
Como isso prejudica a segurança alimentar?
Se por um lado temos a necessidade de produzir em grande escala, usando maquinários com grandes sistemas mecanizados, por outro o mercado retira da população os saberes transcendentais e ancestrais. Antigamente, o cultivo de algumas sementes era feito pelas mulheres, no processo de transmissão de um saber de geração em geração. Ao redor da escolha das sementes não estava só o ato de plantar, mas de conversar sobre a vida, falar de valores, construir uma integração social. Hoje, quem produz as sementes é uma empresa. No campo dos transgênicos, a corporação pode destituí-las da capacidade de se reproduzirem. São as sementes terminators: produzem uma única vez e não podem mais ser cultivadas. Sendo que, numa prática de escolha genética ao longo da história, os grupos indígenas e os campesinos criaram formas de beneficiar as sementes e produzir espécies mais resistentes. Quando os investidores da área da alimentação expandem a fronteira agrícola em áreas como a Amazônia ou o Centro-Oeste brasileiro, vemos também uma expulsão de grupos que estavam historicamente naquele território: o saber, a guarda ancestral daquele ambiente, vai sendo precarizado.
Hoje o mundo vive uma situação de extinção de alimentos: plantas que carregavam uma alta capacidade de alimentar as pessoas não são encontradas mais em alguns territórios do mundo. Podemos ver nas cidades como aquilo que historicamente fazíamos entre os nossos familiares vai sendo perdido para uma padronização da alimentação. Se formos a um call center, vamos ver o quanto as pessoas se alimentam mal e é embutida uma cultura alimentar que rompe os laços do encontro, de estarem juntas para confeccionar aqueles alimentos.
A perda do hábito de cozinhar em casa, com alimentos escolhidos ou produzidos ao lado da família, tem impacto social e na saúde?
Fortemente. Claro que antigamente também havia alimentos gordurosos, mas tinham uma função na vida das pessoas, que iriam ficar muito tempo na caça, nas atividades de sobrevivência. São descobertas que as comunidades faziam, e eu acho isso um grande barato: saber selecionar quais alimentos são aptos para o consumo humano. Se a gente for ver o pequi, um fruto do cerrado brasileiro, por dentro ele tem vários espinhos, é quase um ouriço. Fazer a seleção daquele alimento é de uma engenhosidade enorme. Essa história ia sendo transmitida. Hoje, a perda dessa prática de consumo e construção do alimento vai esgarçando as relações sociais. Quando a gente vai à prateleira escolher um alimento altamente industrializado, isso impacta fortemente na saúde e nas relações. As pessoas estão se liberando pela praticidade que o mercado tenta oferecer, mas esse tempo livre não é ocupado com atividades esportivas ou encontro entre as pessoas. Então de que nos serve? É muito mais um anseio publicitário, que nos leva a consumir produtos por fetiche.
O industrial Benjamin Steinbruch [vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] disse que o trabalhador não precisa de uma hora de almoço, porque poderia comer um sanduíche com uma mão e operar a máquina com a outra.
É revolucionário colocar o alimento no centro do desenvolvimento e do modelo econômico. Hoje, curiosamente, as pessoas que propõem ideias de passar mais tempo trabalhando são as que podem ter nutricionistas preparando suas dietas e chefes de cozinha criando seus cardápios. Nós estamos falando de uma outra dimensão, da vida cotidiana, de pessoas que gastam quatro horas para ir e voltar do trabalho. O que se coloca como resposta na vida delas são os alimentos processados, das grandes redes de supermercados. É uma inversão de valores. Vai na contramão das experiências que a gente está vivendo. Em países mais desenvolvidos, em que as pessoas estão cada vez mais se liberando do trabalho penoso e podem até trabalhar de casa, é possível voltar à produção agrícola, rompendo a dicotomia entre campo e cidade. É necessário restabelecer o vínculo entre onde se produz e onde se consome.
O Plano Municipal de Segurança Alimentar, aprovado neste ano, vai nesse sentido?
Ele ainda é parte de um processo de transição. É um documento que apresenta o conjunto das práticas e ações desenvolvidas pelas secretarias, e que tem a alimentação e a nutrição como um dos eixos. O desenho futuro é a gente conseguir olhar isso de uma forma mais integrada: que a educação possa conversar mais com o trabalho e com a cultura, e cada equipamento público seja um ambiente de promoção do direito humano à alimentação. Outra preocupação que o plano traz é pensar nos grupos mais vulneráveis em relação à insegurança alimentar e nutricional: no caso de São Paulo, a população em situação de rua, as populações negras e as mulheres. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE) mostra que, quanto mais negros e mulheres, maior a insegurança alimentar na família. É uma construção histórica das desigualdades do Brasil. Esses grupos populacionais têm mais dificuldade de trabalho e, sem renda adequada, mais dificuldade de acesso aos alimentos.
Que outro ponto destaca no Plano?
Um avanço importante é coordenar as várias outras iniciativas associadas à alimentação. Aqui na cidade nós tivemos uma conquista importante também em 2015, que foi a aprovação da lei da alimentação escolar orgânica [a 16.140/2015, de autoria dos vereadores Gilberto Natalini (PV), Ricardo Young (Rede), Dalton Silvano (DEM), Toninho Vespoli (PSOL) e Nabil Bonduki (PT)]. É uma lei que gera um compromisso do poder público de capacitar cada vez mais os agricultores para se habilitarem a fornecer para as cidades. Um importante ganho do Plano foi possibilitar questionar a administração sobre a efetividade do programa Leve Leite, que consiste na distribuição de leite em pó a todas as crianças da rede municipal de ensino. É um programa que desperdiça grande energia, sem contar o alto custo que envolve o acondicionamento, transporte e distribuição. Além disso, não existem evidências quanto ao seu impacto na melhoria da saúde e na qualidade de vida das crianças. Esse recurso poderia ser usado para aperfeiçoar a alimentação escolar por meio da aquisição de alimentos mais saudáveis, realização de atividades de educação alimentar, capacitação dos servidores e adequação dos espaços de preparo considerando as demandas de cada idade.
Por que alguns alimentos importantes do dia a dia aumentam tanto de preço de repente, como o tomate e o feijão?
Essa oscilação dos preços dos alimentos responde ao interesse dos agricultores ao mercado futuro. O aumento do preço do feijão, por exemplo, está bastante associado ao interesse dos produtores em se dedicar à soja. A soja não é produzida para consumo humano, mas para servir de ração aos animais. Por outro lado, alguns alimentos vão sendo destinados à produção de energia: cana, milho, entre outros. Isso traz mais um impacto no acesso ao alimento e no que vai ser consumido. É preciso que a população tenha entendimento sobre o que está sendo produzido e possa diversificar a produção para o consumo interno. É o que a gente chama de soberania alimentar.
Quais suas lembranças mais fortes de Betinho, com quem atuou na Ação da Cidadania?
A imagem de Betinho mostrava um sujeito frágil de saúde, mas com uma potência de vida e de fazer política muito grande. Mostra um pouco as nossas fragilidades humanas, ao mesmo tempo em que lembra a nossa força para reagir às grandes opressões do mundo. Tem outro aspecto que é a criatividade. Betinho tinha essa resposta rápida, que conseguia antever problemas e cercar com soluções inovadoras. Ele transitava por diferentes ambientes e sabia como não se ajoelhar ou ceder a pressões, mas se colocar altivo no debate público e trazer soluções, dialogando com o conjunto da sociedade.