Nº22 – Desarquivando

Vale da discórdia

Vereador Silva Telles foi o primeiro a propor transformar o Anhangabaú em parque, mas na época muita gente foi contra

Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

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NO PAPEL - Desenho do projeto de Silva Freire mostra como ficaria a região central após a reforma Acervo CMSP
NO PAPEL – Desenho do projeto de Silva Freire mostra como ficaria a região central após a reforma
Imagem: Acervo CMSP

 

Os paulistanos estavam entusiasmados em 1906. O grande teatro da cidade, o Municipal, estava em construção e iria rivalizar com as maiores casas de espetáculo da Europa. O local escolhido para abrigar a casa de espetáculos foi o Morro do Chá, próximo a uma das cabeceiras do viaduto de mesmo nome e em uma das encostas do Vale do Anhangabaú.

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Embora o clima fosse de euforia, o vereador Augusto Carlos da Silva Telles chamou a atenção para um ponto negativo. Segundo ele, ao chegar ao teatro os frequentadores teriam uma visão nada agradável do fundo das casas humildes localizadas na Rua Líbero Badaró, do outro lado do viaduto. “Gastamos muito dinheiro com a construção do grande teatro, não é possível que fique com vista somente para o fundo das casas”, reclamou Silva Telles da Tribuna da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), em 15 de setembro de 1906. A solução proposta por ele foi criar um parque no local. Estava dado o pontapé inicial de uma questão que duraria décadas: o que fazer com o Vale do Anhangabaú?

Silva Telles apresentou, então, indicação para que fossem realizados o tratamento paisagístico e a abertura de “uma rua artisticamente traçada” no local, além do alargamento da Líbero Badaró. Também sugeriu que as novas construções tivessem uma fachada de frente para o Vale. O vereador acreditava que essas obras criariam “o complemento indispensável ao belo e imponente Theatro Municipal”.

Na época, o Ribeirão Anhangabaú já estava canalizado e os paulistanos não viam mais suas águas. No vale, havia apenas os quintais das casas e terrenos baldios. Era uma paisagem que combinava com o nome que os indígenas haviam dado ao riacho: em tupi, Anhangabaú significa “rio das maldades do diabo”, porque os indígenas acreditavam que as águas do local provocavam doenças físicas e espirituais.

O EXEMPLO ESCOCÊS

O prefeito Antônio Prado se animou com a ideia de uma grande reforma no Centro velho e do embelezamento do Vale do Anhangabaú. Em 1907, solicitou ao diretor de Obras Municipais, Víctor da Silva Freire Jr., e ao vice-diretor, Eugênio Guilhem, a elaboração de um projeto.

Três anos depois, a proposta foi apresentada e continha muitas das ideias do vereador Silva Telles. Em linhas gerais, previa o ajardinamento do Vale do Anhangabaú, o alargamento da Avenida São João, o prolongamento da Líbero Badaró, a construção de um viaduto ligando o Pátio do Colégio à Rua Boa Vista e a criação de uma praça (futura Praça do Patriarca). Além de embelezar a cidade, o projeto tinha o objetivo de diminuir os engarrafamentos de automóveis no Centro, que na época já eram enormes.

Na Rua Líbero Badaró haveria uma grande mudança se o projeto da Prefeitura fosse concretizado. Seria proibido construir no lado que dava para o Vale do Anhangabaú, permitindo que todos tivessem uma vista do futuro parque. No local, haveria um mirante.

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TRANSFORMAÇÃO – Plantações de chá e agrião em 1910 no Vale do Anhangabaú (foto de cima), que após urbanização passou a ser parque e um dos endereços mais elegantes da cidade, com os Palacetes Prates, que sediaram a CMSP, a Prefeitura e o Automóvel Club de São Paulo (em foto de 1927).
Fotos: Acervo Fundação Energia e Saneamento

 

As justificativas para as mudanças foram compiladas na publicação Melhoramentos da cidade de S. Paulo, lançada em 1911 e parte do acervo do Arquivo Geral da CMSP. No documento, Guilhem faz elogios a Glasgow, maior cidade da Escócia, por ter criado muitos parques. “Devemos imitar os escoceses, ajardinando as zonas mais próximas do Centro e principiando pelo embelezamento do Vale que separa a parte animada e comercial da cidade dos bairros – hoje mais tranquilos e sossegados, amanhã mais animados e movimentados – de Higienópolis, Campos Elísios, Barra Funda, Bom Retiro”, defendeu o vice-diretor.

Na mesma publicação, o diretor Víctor Freire Jr. aponta que, quando a reforma fosse concluída, o Centro estaria preparado “para acudir às exigências do tráfego naturalmente crescente, durante longo prazo de tempo” e teria “um logradouro de aspecto original, como os que procuram modernamente constituir as cidades mais adiantadas”.

Uma cópia do projeto foi encaminhada ao presidente (governador) do Estado, Manoel Joaquim de Albuquerque Lins. “O fato de ter o Congresso do Estado autorizado o governo a aplicar 10 mil contos de réis nesses melhoramentos faz com que me dirija a vossa excelência”, justificou o prefeito Antônio Prado, que estava deixando o cargo. Segundo ele, o plano era recomendável não só porque daria ao Centro o aspecto de uma cidade moderna, próspera e civilizada, mas porque atenderia à urgente necessidade de facilitar as comunicações da região central com os bairros de que estava separado pelo Vale do Anhangabaú.

Albuquerque Lins, porém, não se mostrou muito entusiasmado com o projeto e divulgou em janeiro de 1911 sua proposta. O plano, elaborado pelo engenheiro Samuel Augusto das Neves, construtor famoso na cidade, coincidia com o da Prefeitura em vários aspectos. Mas apresentava algumas alterações: no Vale do Anhangabaú, haveria uma avenida arborizada com três pistas e prédios e, na Líbero Badaró, seriam permitidas construções nos dois lados.

O diretor de Obras Víctor Freire Jr. foi pego de surpresa e não gostou nada do projeto do governo do Estado. Passou a criticá-lo e acusou os autores do plano de o terem feito às pressas, sem levar em conta aspectos estéticos.

O historiador Roberto Pompeu de Toledo, no livro A capital da vertigem, explica que, além de questões urbanísticas, também havia interesses particulares em jogo. O empresário Eduardo da Silva Prates, o conde Prates, era um dos principais defensores das propostas da Prefeitura e tinha um bom motivo: havia herdado do sogro, Joaquim José dos Santos Silva, o barão de Itapetininga, imóveis na Líbero Badaró e terrenos nos dois lados do Vale do Anhangabaú. Assim, Prates tinha muito interesse em que fossem permitidos prédios nos locais.

ARBITRAGEM INTERNACIONAL

Para resolver o impasse, Vítor Freire sugeriu que um especialista internacional decidisse a questão. O nome indicado foi o do prestigiado diretor honorário dos Serviços de Arquitetura e dos Passeios, da Viação e do Plano de Paris, Joseph-Antoine Bouvard. Após a sugestão ser aceita pela Prefeitura e pelo governo do Estado, o paisagista francês passou 40 dias em São Paulo estudando a topografia, as construções e o trânsito da cidade.

Em 15 de maio de 1911, Bouvard apresentou seu relatório ao prefeito Raimundo Duprat, o barão de Duprat, que mandou uma versão traduzida para a Câmara Municipal. No documento, hoje guardado pelo Arquivo Geral da Câmara, Bouvard basicamente dá razão ao projeto da Prefeitura. Explica sua forma de trabalhar e garante que não havia sido levado “pela impressão do primeiro momento”. O arquiteto também se refere à reforma do Centro como “uma obra notável, que marcará época na história de São Paulo, que será a glória dos poderes públicos que lhe tiverem preparado a realização”.

Bouvard ainda fez questão de enfatizar a necessidade de espaços verdes, pois, segundo ele, “mais a população aumentará, maior será a densidade da aglomeração, mais crescerá o número de construções, mais alto subirão os edifícios, maior se imporá a urgência de espaços livres, de praças públicas, de jardins, de parques”. Na conclusão, afirma que havia chegado o momento de São Paulo entrar com “resolução no caminho que é traçado pelo seu rápido movimento de progresso”. E aconselha: “esta capital deve, hoje, sem tocar no passado, sem negligenciar o presente, cuidar do futuro, traçar o programa de seu crescimento normal, do seu desenvolvimento estético”.

PROJETO BOUVARD

Os defensores do projeto de Samuel das Neves também ficaram satisfeitos com a proposta de Bouvard, pois liberava a construção de prédios na Rua Líbero Badaró, desde que mantivessem um espaço entre cada um para não impedir a vista do Parque Anhangabaú.

Os vereadores aprovaram o Projeto Bouvard no final de 1911. Por questões orçamentárias, as obras demoraram a ser iniciadas e mais ainda para ser concluídas. O Parque Anhangabaú, por exemplo, só foi inaugurado em 1917, mesmo assim inacabado. Como admitiu o então prefeito Washington Luís em relatório enviado à CMSP, “as obras de arte, os grandes terraços, as fontes luminosas, as obras propriamente de embelezamento” poderiam esperar “tempos melhores”.

A própria Câmara Municipal funcionou na região, juntamente com a Prefeitura, em um dos edifícios gêmeos conhecidos como Palacetes Prates, situados na Rua Líbero Badaró e propriedades do conde Prates. Os prédios foram projetados por Samuel das Neves e por seu filho, o arquiteto Cristiano Stockler das Neves. A Câmara ficou ali até 1969, quando foi inaugurado o Palácio Anchieta, atual sede.

Depois de tantas discussões sobre as questões estéticas, o progresso de São Paulo não respeitou o Parque Anhangabaú. Na década de 1930, devido ao Plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia, a área verde foi cortada por três vias expressas destinadas a veículos: as avenidas Nove de Julho, Vinte e Três de Maio e Tiradentes.

Atualmente, o tráfego passa por túneis. Na superfície, entre os Viadutos do Chá e de Santa Ifigênia, há um enorme calçadão com jardins e esculturas. E o Vale do Anhangabaú passou a ser palco de muitos eventos culturais e manifestações políticas, que atraem grande público.

PRESENTE - Atualmente um calçadão com jardins e esculturas, vale é palco de atividades políticas e culturais Jose Cordeiro/SPTuris
PRESENTE – Atualmente um calçadão com jardins e esculturas, vale é palco de atividades políticas e culturais
Foto: Jose Cordeiro/SPTuris

 

O primeiro urbanista

O engenheiro Augusto Carlos da Silva Telles, no período em que foi vereador de São Paulo (1905 a 1914), tratou de temas urbanísticos que ainda não eram muito discutidos. Por isso, é considerado o primeiro urbanista do País, mesmo que na época ainda não se utilizasse esse termo. Segundo afirma José Geraldo Simões Júnior, no livro Anhangabaú: história e urbanismo, “seus discursos e proposições sempre foram marcados pela fundamentação urbanística, realizando análises sob um ponto de vista amplo, numa postura bastante diferenciada de seus colegas da Câmara”.

Em 28 de julho de 1906, por exemplo, defendeu que a Light, empresa responsável pelo abastecimento elétrico da cidade, substituísse “as linhas aéreas por canalização subterrânea”. Ainda hoje essa questão é discutida na capital paulista.

Em uma época em que a cidade crescia muito, Silva Telles chamou a atenção para o cuidado necessário quando se abre uma rua. “Deve-se atender, sempre, tanto quanto possível, que uma rua que se pretende abrir represente a satisfação de uma necessidade pública: a necessidade natural de expansão da cidade, um melhoramento na circulação ou mesmo um embelezamento”, afirmou da Tribuna da CMSP em um pronunciamento da época.

Silva Telles morreu em 1923, mas seus descendentes continuaram a fazer parte da história de São Paulo. Seu filho Goffredo Teixeira da Silva Telles foi vereador e prefeito de São Paulo e seu neto Goffredo da Silva Telles Júnior escreveu, em 1977, a Carta aos brasileiros, manifesto em que juristas destacados condenavam o regime de exceção e apelavam pelo estado de direito.

SAIBA MAIS

Livros
A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954. Roberto Pompeu de Toledo. Objetiva. 2015.
Anhangabaú: história e urbanismo. José Geraldo Simões Júnior. Senac São Paulo e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004.
Anhangabaú. Benedito Lima de Toledo. Fiesp, 1989.