Pimentinha da Brasilândia
Personagem central na primeira investigação oficial sobre crimes da ditadura no Brasil, ela fez história nos direitos humanos
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Renata Oliveira | renataoliveira-cci3est@saopaulo.sp.leg.br
De São Joaquim da Barra (SP), onde nasceu em 1947, Tereza Cristina de Souza Lajolo guardou o sotaque e outras lembranças. O destino comum à maioria das garotas daquela época – casar-se cedo, estudar pouco e se dedicar apenas às tarefas domésticas – ela rejeitou: com o empurrão da mãe, sua primeira grande parceira, foi para São Paulo no primeiro dia do ano de 1966 para fazer história na política da cidade.
Filha caçula de Olga Polito de Souza e Joaquim de Souza (Tereza tem outras duas irmãs, Heloiza e Angela, e um irmão, Djalma), foi a última a ser enviada à capital. O pai considerava mais adequado que fosse à “escola normal”, curso de nível médio para formar professores, e depois se casasse. “Minha mãe tinha uma cabeça muito evoluída. Você vê pela data em que ela me mandou pra São Paulo”, lembra Tereza, aos risos. “Sentei no quarto do pensionato e pensei: ou vai ou racha, tem que tocar pau na vida”.
Decidiu começar a vida na nova cidade fazendo um curso preparatório para vestibular. Para encontrar o local, tinha apenas um papelzinho rabiscado pelo cunhado, com o endereço e sem mais orientações. Matriculou-se, fez um mês de cursinho e foi aprovada em Geografia na Universidade de São Paulo (USP). A ideia inicial era estudar Geologia, como o irmão, mas naquela época ouvia que mulher não era bem-vinda em “pesquisa no mato”. Escolheu Geografia porque poderia aprender sobre Geologia, também. Do professor Aziz Ab’Saber, recebeu mais um motivo para continuar: ele viu nela o “espírito de busca” necessário a todo geógrafo.
Tanques de guerra
Esse espírito fez Tereza sugerir uma pesquisa, no segundo ano da Geografia, que a transformaria em assistente da professora Regina Sader. Com ajuda de mais duas alunas, o quarteto começou a estudar sobre a precarização do trabalho no campo em São Joaquim da Barra, onde as plantações de café davam lugar à cultura de soja e criação de gado. A pesquisa, no entanto, nunca seria concluída: em 1968 os policiais do regime militar invadiram a casa de uma das participantes e apreenderam todas as informações levantadas, sob suspeita de que compunham uma ação de guerrilha.
A pesquisa não era remunerada, mas dava a Tereza o direito de comer sem pagar no restaurante do Crusp, o conjunto residencial da USP para estudantes de baixa renda. Sem essa ajuda extra, ela foi atrás de trabalho e virou professora substituta numa escola pública. No fim do ano, porém, teve de devolver o posto à professora titular. Estava sem salário e desalojada: ela e todos os moradores do Crusp, local de vivência política, cultural e de resistência à ditadura, foram expulsos pelo Exército a poucos dias do Natal.
“Os policiais apareceram com tanques de guerra apontados pra cada prédio do Crusp, com cavalaria, cachorro, metralhadora”, conta Tereza. Os alunos foram levados ao hoje desativado presídio Tiradentes, de onde a estudante e a maioria dos colegas saíram sem ser fichados. Não puderam, porém, voltar a viver no Crusp, e Tereza foi morar com a irmã. Em 1969, precisando “mais do que nunca” de um emprego, conseguiu trabalho em uma escola estadual do bairro Brasilândia, na zona norte. “Uma das estradas, a do Sabão, era de terra, tudo derrapando, no escuro, sem luz, e o que tinha dos dois lados eram pequenas chácaras”, lembra.
Terminou a graduação em 1972, casou e se mudou para a Brasilândia com o então marido, o engenheiro Roberto Lajolo. “Acabei com a Geografia ou a Geografia acabaria comigo”, brinca Tereza, ao lembrar que demorou a se formar por ter participado do movimento estudantil. A motivação para essa e outras militâncias de esquerda teve origem em suas raízes católicas, num contexto de forte influência da Teologia da Libertação, uma corrente surgida durante os anos 60 na América Latina, marcada pelo engajamento nas questões sociais. “A Teologia da Libertação buscava fazer com que o povo, a população e os trabalhadores compreendessem seu papel e significado na sociedade e lutassem por eles, assim como Jesus foi uma pessoa com história de luta pelos desprovidos, que precisavam ter a noção de sua importância”, conta.
Chuveirada
Em 1980, passou em um concurso e virou professora efetiva da rede estadual na Brasilândia. Lá, fincaria raízes e aprofundaria sua militância política, principalmente ao se envolver nas demandas do bairro e dos clubes de mães, em que mulheres debatiam sobre sua importância na sociedade. “A mulherada era dona de casa, lavava, passava, arrumava, cuidava da saúde de toda a família, mas pensava que não fazia nada”, diz Tereza, que criou alguns clubes na região.
Os clubes de mães iam além de fortalecer a consciência feminina. Juntas, as mulheres de 35 vilas dos arredores lutaram pelo acesso à água encanada, por exemplo. “Lembro de um marido que implicava quando sua esposa ia às reuniões. Até o dia em que chegou água à casa deles, ela engatou uma mangueira e deu uma chuveirada nele, na rua”, conta Tereza.“O povo ficou todo feliz, e ele começou a apoiar”, lembra.
“Para as mulheres da Brasilândia ela era a Pimentinha, estava sempre à frente do movimento, sempre ao lado das mulheres, que a sentiam como presença efetiva”, diz Fermino Fechio. Militante de direitos humanos e ex-ouvidor nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, ele foi vereador junto com Tereza e também foi secretário de Administração municipal quando ela comandou a Secretaria de Transportes em 1989, no governo de Luisa Erundina.
Na época em que Fechio começou a se envolver nos movimentos populares na Brasilândia e bairros vizinhos, ouvia o nome de Tereza “reinar nas bocas das mulheres”. “Era uma época difícil, em que não havia democracia, estávamos em pleno regime militar e tínhamos que fazer tudo com muito jeito e cuidado, porque vinha repressão doída”, lembra o ex-vereador. As atividades da professora renderam, inclusive, várias anotações no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP), a polícia de inteligência e repressão aos opositores do regime militar.
Para Fechio, a população reconhecia a coragem de Lajolo em forma de votos. Na primeira vez em que concorreu a um cargo público, em 1982, a mulher que até então se considerava uma “professorinha da Brasilândia” foi eleita para a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) com mais de 26 mil votos. “Eu não era conhecida nesse mundo maior. Meu marido era quem ia para os contatos políticos externos”, diz Tereza.
A candidatura foi proposta pelos moradores da região. “A gente fazia impressão em casa, dobrava papel, e o pessoal do bairro ajudava”, lembra Luisa Lajolo, 36 anos, filha mais nova de Tereza. A professora concorreu pelo recém-criado Partido dos Trabalhadores (PT), mas não esperava ser eleita, muito menos com 33 votos a mais do que Luiza Erundina, que em 1988 tornou-se prefeita de São Paulo pela mesma legenda: “quando saiu o resultado tomei um susto”.
Além de Tereza e Erundina, a bancada petista daquela legislatura contava com a jornalista e militante feminista Irede Cardoso e dois metalúrgicos: Claudio Barroso e João Carlos Alves. “Tereza tinha muito o espírito da primeira bancada do PT na Câmara”, relata Rita Freire, ex-assessora da parlamentar. “As pessoas vinham da militância, da resistência à ditadura, com princípios muito arraigados e a ideia de atuar na instituição para promover mudanças, principalmente para ajudar que os movimentos populares se organizassem para assumir espaço na política”, completa.
Como reflexo do relacionamento com as mães da periferia, o gabinete de Tereza era majoritariamente composto por mulheres. Nos dois primeiros anos na CMSP, integrou uma comissão que defendeu creches nos locais de trabalho das mães, para que pudessem amamentar com mais frequência e tranquilidade. No Plenário, avisou que não sossegaria enquanto não estivessem garantidos na sociedade espaço, respeito e direitos das mulheres, e que essa busca impediria sua passividade diante dos “jogos de cavalheiros”: “espera-se, talvez, das mulheres, que ajudemos nossos filhos e maridos a serem os melhores, os mais qualificados para atuar nessa modernidade onde não há lugar para todos, a começar para nós mesmas”, disse num discurso em 1994.
Da geografia para a história
No segundo dia na Câmara, a petista pediu, com outros vereadores estreantes, a instalação de duas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI), uma delas sobre Transportes. Como membro, aprofundou-se sobre o assunto e repassava o conhecimento aos movimentos de cidadãos, para que soubessem brigar por seus interesses. “Quando o povo ia falar nas audiências públicas com o secretário de Transportes e mostrava domínio do assunto, ele já sabia que eu tinha passado por lá”, lembra. “O pessoal fiscalizava e achava as trampolinagens; muita coisa começou a ser tocada.”
Em 1988, Tereza havia sido escolhida pelos colegas como uma das melhores vereadoras da Câmara, segundo publicou o jornal Folha de S. Paulo na época, muito por conta de sua fiscalização dos transportes na cidade e sua crítica aos aumentos nas passagens de ônibus. Como secretária municipal, encontrou apenas “ônibus velhos, batendo lata, sem sequer um parafuso na reposição de peças”, recorda o colega Fermino Fechio. Para reposição, havia só um pneu recauchutado.
Essa precariedade fez com que Tereza tivesse de aumentar o valor das passagens, mesmo a prefeita Luiza Erundina tendo prometido dar à população uma tarifa social. A secretária esperava resolver o problema ao estatizar os transportes coletivos, mas não teve tempo para isso: após nove meses, retomou seu mandato na CMSP. Ela diz não ter recebido uma explicação para a demissão.
No Legislativo paulistano, em outubro de 1990 assumiu a relatoria da CPI sobre a vala de Perus. Escreveu o relatório e ajudou a investigar a origem e a responsabilidade por ossadas encontradas em uma vala clandestina no cemitério Municipal Dom Bosco, no bairro Perus, e a utilização dos demais cemitérios de São Paulo para ocultamento de corpos das vítimas da repressão no País.
A criação da CPI foi motivada pela descoberta, no Dom Bosco, de mais de mil ossadas não identificadas de pessoas enterradas como indigentes. A Comissão constatou, entre outras coisas, que o plano do regime era construir um crematório no cemitério de Perus, mas sem sala de cerimônias e com porta de acesso no formato vai-e-vem. Isso fez com que a empresa responsável pela obra suspeitasse da construção. Diante do impedimento, tentaram transportar as ossadas para o crematório de Vila Alpina, inaugurado em 1974, mas a dificuldade logística motivou a criação da vala em Perus. “Abrimos espaço para informações como as do Instituto Médico Legal, e demonstramos que registravam como confronto com a polícia, por exemplo, as mortes que, pela foto, pareciam ter sido causadas por tortura”, aponta Tereza.
Fruto de uma apuração dedicada, o relatório concluiu a maior investigação, até aquele momento, sobre os crimes da ditadura no Brasil, conforme aponta o livro Vala clandestina de Perus. “Até ali, o desaparecimento de pessoas, os falsos tiroteios e atropelamentos, as marcas da tortura e dores da perda pertenciam apenas ao universo dos familiares, sobreviventes, amigos, integrantes de movimentos de direitos humanos e, também, a parte da imprensa silenciada ou parceira do regime”, diz um dos textos que apresenta a publicação.
Durante o inquérito, o jornalista Ivan Seixas, filho de um desaparecido político e colaborador da CPI de Perus, ficou frente a frente com o assassino de seu pai, Joaquim Alencar Seixas, morto em abril de 1971 e o primeiro militante de esquerda encontrado como indigente no então recém-inaugurado cemitério Dom Bosco. Ivan ressalta que o relatório de Tereza virou base para as comissões da verdade brasileiras, que procuraram elucidar as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar. “Coordenei a comissão do governo paulista e muito do relatório foi baseado no da CPI de Perus”, conta o jornalista.
O ex-vereador Ítalo Cardoso, membro da comissão de inquérito sobre Perus, considera que nesse trabalho Tereza deu sua maior contribuição histórica: “o papel dela e da assessoria, de muita firmeza sobre o que queriam, ficou marcado no material que ela produziu e foi ponto de partida pra muito do que se falou em Brasília, no processo da Comissão Nacional da Verdade”. Ele afirma que poucos trabalhos tiveram a mesma intensidade e ousadia, porque haviam se passado apenas cinco anos desde o fim do regime militar. “A investigação incomodava muita gente que vinha do período da ditadura e estava ali, presente”, reforça a ex-assessora Rita Freire, responsável por ajudar a redigir e editar o relatório da comissão.
O relatório de Perus foi ainda ponto de partida para os trabalhos da Comissão da Verdade Vladimir Herzog, da CMSP, e motivou o convite do ex-prefeito Fernando Haddad para que Tereza coordenasse a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo. “Na Comissão do Executivo, Lajolo teve o papel fundamental de desvendar tantas atrocidades, abusos e perseguições realizadas no âmbito da administração municipal e de outros níveis durante a ditadura militar”, avalia o vereador Eduardo Suplicy (PT), que conhece a geógrafa desde a fundação do PT.
Aulas e bijuterias
Tereza foi vereadora titular na Câmara paulistana por 14 anos, de 1983 a 1996. Daqueles tempos, a filha mais velha, Mariana Lajolo, 39 anos, lembra que a mãe trabalhava até tarde: “muito enérgica, minha mãe não se intimidava por aqueles homens poderosos, e conseguiu estabelecer uma relação de trabalho respeitosa com todos eles, sem deixar de ser a mulher alegre, que fazia piada”.
Depois de tantas vitórias, conviveu com algumas derrotas em eleições para vereadora e para deputada estadual. Para Luisa Lajolo, a mãe esteve aberta a tantas causas que pode não ter garantido a necessária “bandeira eleitoral”. Mesmo sem vencer, Tereza achava que só o processo eleitoral já valia a pena: “campanha era um momento efetivo de fazer discussão política, entrar em contato com as pessoas e ajudar no processo de entenderem a realidade”.
Para estimular o debate, em 1996 foi pré-candidata do PT à Prefeitura de São Paulo, junto com Luiza Erundina e Aloizio Mercadante. Com o título Não desiste, o Diário Popular publicou uma nota sobre a insistência de Lajolo: “ela vai apresentar recurso à executiva estadual do PT, contra a decisão do diretório municipal de não aceitar a sua pré-candidatura”. A ex-vereadora explica por que aceitou o desafio: “sempre estive à disposição para tomar atitudes diante da realidade. Sempre. Eu não nego, nunca me neguei”.
De 1999 a 2000, voltou à CMSP como suplente. Quando não estava na Câmara, dava aulas e também já vendeu bijuterias para complementar a renda. Lembra-se do sobrenome de praticamente todos os alunos. Uma delas é Thatiana Galante, que teve aulas com Tereza em 1997. “Ela era engraçada, brincava e brigava de forma carinhosa, falava alto, tinha um erre marcado e nunca fez campanha política com a gente”, recorda-se Thatiana.
Aposentada como professora desde 2001, prestou outro concurso quatro anos depois e voltou a dar aulas na Brasilândia. Aposentou-se pela segunda vez em 2015. “Ninguém acreditava que uma pessoa tão importante para a política da cidade voltaria a ser professora, porque teria outros papéis a cumprir e também porque a máquina pública costuma tirar a pessoa da realidade de onde ela vem, o que torna a readaptação difícil”, diz a ex-assessora Rita Freire.
Na volta ao Magistério, Tereza encontrou algumas reações que não esperava, como o deboche de alunos por ser idosa. Ainda assim, gostava tanto de ser professora que se sentia apenas licenciada da profissão enquanto foi vereadora. Por isso se esforçou para levar à Câmara uma relação direta com o povo, sem intermediários, como fazia com os alunos. “Queremos a população lá, exigindo. Acabar com essa história de ‘senhor vereador’, com o clientelismo”, disse ao Jornal da Tarde assim que entrou para o Parlamento.
O jornal a descreveu como baixinha, inquieta, de sotaque caipira, disposta a dar voz às reivindicações populares. A definição continua valendo. Uma de suas inquietações mais fortes, atualmente, é a facilidade com que vítimas de violência ainda podem ser enterradas como indigentes na capital. O incômodo remete a um discurso feito por ela quando integrava a CPI de Perus: “não é apenas o passado que nos aflige. O autoritarismo não é coisa encerrada e escolhe formas para sobreviver”.
SAIBA MAIS
Livro
Vala clandestina de Perus. Instituto Macuco. Presidência da República, 2012.