Gastronomia nas ruas
Câmara prepara lei para regulamentar o comércio ambulante de comida
Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Esperança: A ambulante Márcia Uchoa de Godoy tem “fé em Deus que o projeto será aprovado, pois é ótimo pra quem quer trabalhar”
Ângelo Dantas/CMSP
A cidade de São Paulo abre o apetite de quem anda por suas ruas. Afinal, nelas sente-se o cheiro de pipoca, cachorro-quente, milho cozido, churrasco grego, espetinhos, acarajé, pastel, churro, sanduíche de pernil, frutas variadas, yakisoba e de tantas outras delícias vendidas por ambulantes.
A comida de rua faz tanto sucesso que na cidade há eventos específicos durante os quais chefes renomados montam barracas para vender suas especialidades, como O Mercado Festival Gastronômico, Chefs na Rua e Feirinha Gastronômica, sempre com muito público.
Apesar dessa riqueza, o comércio de comida de rua praticamente não é regulamentado. As únicas exceções são as barracas de pastel e frutas nas feiras (que obtêm licença da Prefeitura) e alguns veículos que comercializam cachorro-quente que conseguiram autorização da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). Desde 2007, porém, nenhuma licença é concedida para os dogueiros, como são chamados os vendedores de hot dog.
Regularização: Matarazzo diz que projeto é para formalizar algo que já existe de fato, mas ainda não tem regras
Fábio Lazzari/CMSP
Essa lacuna legal está sendo preenchida pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), onde parlamentares preparam uma lei para regulamentar a venda de todos os tipos de comida de rua. Apresentado inicialmente pelo vereador Andrea Matarazzo (PSDB), o projeto de lei 311/2013 foi endossado por Arselino Tatto (PT), Marco Aurélio Cunha (PSD), Ricardo Nunes (PMDB), Floriano Pesaro (PSDB) e Goulart (PSD), que se tornaram coautores.
Em 4 de setembro a iniciativa foi aprovada, por unanimidade, em primeira votação. Para Matarazzo, isso ocorreu porque os vereadores perceberam a necessidade de regulamentar a situação dos vendedores: “São Paulo toda consome esses produtos, da Cidade Tiradentes à Avenida Luís Carlos Berrini”. Para se tornar lei, o projeto ainda precisa ser aprovado em segunda votação e ser sancionado pelo prefeito Fernando Haddad (PT), o que, segundo Matarazzo, deve ocorrer rapidamente.
Otimismo
Em 18 de setembro, foi realizado na CMSP um Encontro Público para analisar a questão. Compareceram chefes de cozinha e vendedores ambulantes. Durante os debates, o chefe Andre Mifano, proprietário de um restaurante e de um food truck, disse esperar que as pessoas “menos favorecidas possam se sustentar de uma atividade tão rica como essa”.
Checho Gonzales, idealizador de O Mercado Festival Gastronômico, que reúne vários cozinheiros para vender suas especialidades a preços bem mais baratos do que os cobrados nos restaurantes, afirmou que eventos desse tipo têm um enorme potencial de sucesso. “É um mercado muito atraente. Com certeza essa lei vai aumentar o movimento também em bairros distantes”, aposta Gonzales.
O dogueiro Thiago Niza está animado com a possibilidade de regulamentação. No encontro, ele falou sobre o sofrimento que enfrenta por não ter uma atividade regularizada. “Sempre há agressões da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana nas fiscalizações”. Porém, dias depois, em entrevista à Apartes, ele se mostrou preocupado com a concorrência que pode haver com a chegada de grandes empresários ao mercado de comida de rua. Ele, que vende cachorros-quentes preparados no porta-malas de seu veículo, na porta de estádios e de casas de shows, sugere que a lei determine que a licença
seja dada só para quem vai trabalhar diretamente na venda, não para quem vai terceirizar o serviço.
A vendedora de frutas Márcia Uchoa de Godoy também está otimista. “Esta lei é ótima pra quem quer trabalhar. É muito ruim ficar com medo da perseguição dos fiscais”, disse ela, enquanto atendia aos fregueses em uma esquina da Bela Vista. “Tenho fé em Deus que ela será aprovada.”
Apoio ao empreendedor
Na justificativa do projeto, os vereadores, além de reconhecerem a importância econômica desse tipo de comércio, afirmam ser “inegável que a comida de rua consolidou-se como uma alternativa aos cidadãos que fazem suas refeições fora de casa, quer pela agilidade, pelo menor custo, por complementarem o abastecimento e oferta de alimentos em locais pouco servidos de bares e restaurantes, ou até mesmo pela gastronomia envolvida na escolha de um quitute, doce ou refeição preparada tradicionalmente na rua”.
Matarazzo explica que a lei vem para formalizar algo que já existe de fato, mas que ainda não tem regras. Ele informou que as principais cidades do mundo já regulamentaram a questão e ressaltou que esse tipo de venda, muitas vezes, é apenas o primeiro passo: “É fundamental apoiarmos o empreendedorismo”.
Oportunidade: Mifano (ao centro), dono de restaurante e de food truck, acredita que o comércio de rua pode beneficiar muita gente
Divulgação
Pelo projeto, o comércio ambulante de comida se divide em três categorias: carrinhos de mão (como os dos pipoqueiros e dos vendedores de milho), barracas desmontáveis (como as das feiras), que só seriam permitidas em eventos, e os veículos motorizados, caso dos food trucks (caminhões de comida, na tradução literal), como são chamados, principalmente, os trailers e furgões destinados a vender alimentos.
Em cada uma das 31 Subprefeituras da cidade haverá uma Comissão de Comida de Rua, formada por dois representantes das associações de bairro ou moradores da região, um representante da Secretaria de Saúde, um da CET, um do Conselho de Segurança (Conseg) e por um funcionário da Subprefeitura. Esse grupo concederá um Termo de Permissão de Uso, além de determinar o ponto e o horário em que os vendedores podem trabalhar. O armazenamento, transporte, manipulação e venda de alimentos seguirão a legislação sanitária das esferas municipal, estadual e federal.
Quando o comerciante for locado em uma calçada, ele deverá manter ao menos 1,2 metro para circulação de pessoas. A fiscalização ficará a cargo da Subprefeitura e sua Comissão. A venda de bebida alcóolica será proibida, exceto nos eventos, situação em que será necessária uma licença especial.
Pelo projeto aprovado em primeira votação, a validade do alvará seria de um ano, mas já há um acordo para que, na segunda votação, seja especificado que a validade será de dois anos, com possibilidade de renovação.
Matarazzo explicou que o objetivo da proposta é assegurar a tranquilidade de quem trabalha com o comércio de comida de rua, sem que haja riscos de o comerciante ter seu equipamento apreendido a qualquer momento. Ao mesmo tempo, garante os requisitos necessários para a fiscalização das condições de higiene e segurança dos alimentos.
Para auxiliar os vendedores de comida de rua, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Estado de São Paulo (Sebrae-SP), que apresentou sugestões ao projeto, oferece uma assessoria especial, o Receita de Sucesso, na qual podem obter dicas sobre gestão de negócios.
Doação
O projeto também se propõe a disciplinar a doação e distribuição gratuita de alimentos nas ruas, para que essas ações sejam realizadas mediante um processo de autorização semelhante ao que deve ocorrer com o comércio de comida de rua. Os vereadores ressaltam que, atualmente, essas iniciativas de caridade são proibidas e que a lei proposta pretende permitir que a doação e a distribuição sejam feitas “de modo a garantir a segurança do alimento e o convívio harmonioso com outras normas de uso do espaço público”.
“Tendência mundial”
Fazer as refeições na rua faz parte do cotidiano das grandes cidades do mundo. Roma é famosa por seus sorvetes; Paris, pelos crepes; Nova York, pelos hot dogs. Mas nos últimos anos, principalmente nos Estados Unidos, essa tendência se intensificou e surgiram os caminhões de comida gourmet, com pratos rápidos e sofisticados de várias regiões do mundo a um preço mais acessível.
A comida de rua ficou tão importante que este ano até ganhou uma enciclopédia, a Street Food Around the World: An Encyclopedia of Food and Culture (Comida de Rua ao Redor do Mundo: uma Enciclopédia sobre Comida e Cultura, em tradução literal), organizada por Bruce Kraig e Colleen Taylor Sen. Nela há informações sobre o comércio ambulante de alimentos em mais de 100 países, além de 150 receitas para quem quiser fazer em casa as delícias da rua. A parte que trata do Brasil foi escrita pela jornalista Olívia Fraga.
Outro sinal de prestígio da comida de rua foi que o guia gastronômico francês Le Fooding, na edição de 2013, indicou o trailer Le Camion qui Fume um dos melhores lugares para se comer um hambúrguer em Paris.