Um viva à democracia
Vereadores cassados por ações autoritárias têm mandatos restituídos em solenidade
Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Viva a democracia”, saudou Moacir Longo, 83 anos, encerrando a sessão solene de 9 de dezembro, realizada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) para restituir simbolicamente os mandatos de 42 vereadores cassados por ações autoritárias, entre 1937 e 1969.
Nessa noite, Longo atuou como presidente na segunda metade da sessão solene. Nem parecia que, 49 anos antes, um dia após o golpe militar de 31 de março de 1964, o mesmo Longo, então vereador, havia sido obrigado a fugir da Câmara, escondido em um carro, para não ser preso pela polícia.
Para o ex-vereador, a democracia que saudou em sua fala é uma menina ainda, uma moça mal saída dos 25 anos. Ele defende que o regime democrático, com respeito à liberdade política, só começou a ser construído no País a partir da Constituição de 1988. E olhe lá. “Ainda temos que avançar muito na construção da democracia, não apenas política, mas social.”
Para Longo, não houve “redemocratização” após o fim da ditadura, simplesmente porque não existiu regime democrático antes, fosse no período monárquico, na República Velha ou mesmo após o fim do Estado Novo. “Tivemos democracia de 1946 a 1964, quando houve todas essas cassações denunciadas aqui hoje? Não tivemos”, disse. “A noite de hoje é importante para as novas gerações tomarem conhecimento de que no Brasil nunca houve democracia de fato para todos; neste País sempre reinou a opressão a todas as oposições”, criticou Longo durante a sessão.
Mozart Gomes/CMSP
Um dos exemplos das imperfeições do regime democrático brasileiro estava sentado à esquerda de Longo: Armando Pastrelli, 95 anos. Eleito vereador em 1947, teve o mandato cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Quando tentou entrar na Câmara para ver a posse dos colegas, em 1º de janeiro de 1948, foi barrado na porta. Agora, Pastrelli estava de volta à Casa, presidindo a primeira metade da sessão de restituição de mandatos. “Eu me sinto muitíssimo honrado em ver que me fizeram justiça”, afirmou.
Em sua fala, Pastrelli lembrou que a cassação do mandato parlamentar foi apenas uma das várias perseguições que enfrentou. Por ter sido membro do clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB), passou a ser abordado o tempo todo pela polícia e enfrentou dificuldade até para arrumar emprego. Para fugir da perseguição, resolveu trabalhar no Amapá. Mesmo lá, foi alcançado pela chegada de um cartão de Natal enviado pelo líder comunista Luís Carlos Prestes, o qual despertou comentários de como Pastrelli seria “perigoso”. Cansado, abriu uma oficina para consertos de máquinas gráficas que, após alguns anos, tornou-se uma indústria bem-sucedida, transformando o antigo operário em patrão. “Fiquei ligado à burguesia, peguei idade e gozei um pouco dos benefícios que a riqueza traz”, relembrou.
Lembranças de família
Homenagens como esta permitem “reescrever a história”, afirmou o vereador Orlando Silva (PCdoB), ao lembrar que a comunista Elisa Kauffmann Abramovich, até então considerada uma candidata eleita e não empossada, agora passava a ser oficialmente reconhecida pela CMSP como a primeira vereadora em São Paulo. O parlamentar Gilberto Natalini (PV) disse que o evento ajudaria a lembrar a todos da necessidade de rejeitar soluções autoritárias para os problemas da política. “Só o aprofundamento da democracia pode consertar os erros da própria democracia”, afirmou.
Além de Longo e Pastrelli, únicos vivos entre os cassados, a cerimônia também contou com a participação das famílias dos antigos vereadores, que receberam diplomas simbólicos de restituição de mandato. “Meu avô ficaria feliz ao ver o reconhecimento da Câmara Municipal de São Paulo, a mais importante do País, num evento pró-democracia como este”, afirmou Luiz Antônio Marrey, procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo e neto de José Adriano Marrey Junior, vereador cassado em 1937, com o fechamento de todas as casas legislativas pelo Estado Novo.
“Foi feita justiça”, disse Sônia Maria Dias Carvalho Simões, viúva de Benone Simões, comunista cassado em 1947. “Meu marido dizia que havia lutado o bom combate, deixando suor e lágrimas. Nunca se arrependeu de nada.”
Outro filho de comunista cassado em 1947, Hermes Ubiratan Chade disse que o evento foi uma boa homenagem ao pai, Calil Chade, e às lembranças que deixou. “O que a vida dele passou para mim é que o mais importante é a luta pelos nossos sonhos e ideais”, recordou.