Nº06 – Cultura

Onde o povo está

Artistas de rua lutam por leis que garantam seu espaço na cidade

Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br

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REI – Marcio Henrique teme ser obrigado a deixar a Paulista

Marcelo Ximenez/CMSP

O gesto de passar o chapéu para recolher o troco, que em troca da arte garante o pão, é uma das principais tradições no dia a dia dos artistas que usam as ruas como palco do seu ofício. A outra tradição é a de ser perseguido por quem manda nas ruas, sejam policiais, guardas, fiscais, seguranças – e até outros artistas, que se declaram donos de determinados pontos.

Difícil encontrar um artista de rua sem uma história de repressão para contar. O músico Adão Fernandes, 57 anos, repentista há 29, perdeu a conta de quantas vezes foi preso. “Em 1985, quando eu cantava na Sé, fui preso três vezes no mesmo dia. Acusavam a gente de vadiagem”, conta Adão, que leva sua arte a sério: “Na véspera de a minha mãe falecer, deixei ela em casa e fui para uma cantoria. Você esquece tudo para levar uma mensagem e transmitir um pouco de amor para alguém”.

Mas nem sempre existe amor em SP, como já cantou um outro artista, e a repressão à arte de rua continuou, apenas trocando de motivações. Em outubro de 2010, quando teve início uma nova onda de perseguições, os artistas já não eram acusados de vadiagem, mas de fazer “exploração comercial do solo” sem permissão. A ação repressiva vinha da Operação Delegada, um convênio feito entre a Polícia Militar (PM) e a Prefeitura de São Paulo.

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MANIFESTAÇÃO – Diante da Prefeitura, artistas protestam contra decreto, em 25 de março

Mozart Gomes/CMSP

Em 10 de outubro daquele ano, na Avenida Paulista, uma apresentação do músico Rafael Pio, hoje com 34 anos, foi interrompida pela chegada de PMs que apreenderam a guitarra e o amplificador usados por ele. Revoltado, o músico quebrou o vidro de uma perua usada para recolher os materiais apreendidos. Acabou preso. Para os artistas, foi a gota d’água.

“A prisão de Rafael gerou comoção no meio artístico”, lembra o ator Celso Reeks, 37 anos, da companhia Nau de Ícaros. Ele se tornou um dos principais articuladores de um movimento que passou a lutar pela valorização da arte de rua. Após muita conversa entre o Poder Público e os artistas, o então prefeito Gilberto Kassab assinou, em julho de 2011, o Decreto 52.504, que liberava a apresentação artística em espaços públicos, sem necessidade de licença ou autorização, desde que não atrapalhasse a circulação de carros ou pedestres.

Na rua por opção

Avaliando que um decreto não era o bastante, os artistas procuraram os vereadores da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) em busca de uma lei. Como já havia ocorrido com o documento assinado por Kassab, a nova legislação foi elaborada a partir de um diálogo permanente entre os legisladores e a categoria. “Participamos de todo o processo”, conta Reeks. O resultado foi o Projeto de Lei 489, de 2011, assinado por vereadores de diferentes tendências políticas: Alfredinho (PT), Floriano Pesaro (PSDB), José Police Neto (PSD), Netinho de Paula (PCdoB) e Orlando Silva (PCdoB), além dos ex-parlamentares Jamil Murad (PCdoB) e Ítalo Cardoso (PT).

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SALVO? – Emerson Pinzindin voltou a tocar na Paulista após aprovação da lei

Mozart Gomes/CMSP

“Cria-se, através da arte nas ruas e parques, relações mais fraternas, afetivas, emotivas e solidárias entre os cidadãos”, afirmava o texto do projeto, que se tornou a Lei 15.776, promulgada no ano passado. “A lei manteve as conquistas trazidas pelo decreto e foi além”, afirma Reeks. A principal novidade foi liberar a venda de produtos, “desde que sejam de autoria do artista”.

Nas ruas, o decreto e a lei significaram uma trégua na relação entre artistas e autoridades. Na época, o músico Emerson Pinzindin (nome artístico de Emerson Pinto), 49 anos, que toca flauta transversal e saxofone na região da Paulista, estava impedido de tocar em frente ao Conjunto Nacional por conta de uma ordem judicial obtida pela administração do condomínio. “Depois que o decreto foi aprovado, voltei a tocar no mesmo lugar”, diz.

Emerson trabalhava como professor de música antes de decidir largar tudo, há 25 anos, para tocar chorinhos e clássicos nas calçadas. “A rua me trouxe a possibilidade de criar, renovar meu repertório e tocar para vários setores da sociedade”, conta. Desde então, é dessa forma que tira o seu sustento. “Quando o governo restringe a atuação dos artistas de rua, está cortando postos de trabalho”, afirma.

“Peruanos e bolivianos”

Por outro lado, a liberação para a arte de rua também gerou disputas. “Depois da lei, formaram-se pequenas máfias que controlam os pontos até com violência”, afirma o guitarrista Rafael Pio. Sentindo-se “muito triste e sem disposição para tocar” por causa das disputas com os colegas, o guitarrista que se tornou símbolo da repressão contra os artistas deixou de lado a Paulista para se apresentar em lugares menos movimentados. “Tenho vontade de voltar a me apresentar na Avenida Paulista, mas ainda não tenho forças”, contou à Apartes, no início de março.

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RAFAEL PIO – Cansado dos conflitos, músico afastou-se da Paulista (foto de 2005)

Ricardo Moreno

Quem não gostou da legislação foram os comerciantes da Rua 25 de Março. “Desde o ano passado estamos tendo uma invasão desses artistas de rua em nossos logradouros. Temos estátuas vivas (com estruturas imensas), dezenas de cantores (poluição sonora insuportável) e dezenas de peruanos e bolivianos ‘fazendo artesanato’(ocupando todas as calçadas)”, afirma Claudia Hurias, assessora administrativa da União dos Lojistas da 25 de Março e Adjacências (Univinco).

Uma das peruanas que irritaram os lojistas é Tania Mujica, 31 anos. Quando veio para São Paulo, há dez anos, a artista pretendia trabalhar com spray em azulejo, mas desistiu depois que fiscais da Prefeitura apreenderam seus instrumentos de trabalho. Percebendo que as estátuas vivas sofriam menos repressão, decidiu tornar-se uma – e isso mudou sua vida. A experiência de permanecer parada em meio ao movimento da Rua 25 de Março levou Tania a fazer palestras e vídeos sobre o silêncio e a meditação como ferramentas de autoconhecimento. “A estátua viva tem que ser um canal de paz e luz. Se a gente não estiver bem por dentro, não atrai as pessoas”, ensina.

Tania só não pôde ficar parada em 17 de março, quando, segundo ela, policiais, fiscais e seguranças de lojas a impediram de trabalhar na rua e ameaçaram apreender seu figurino e maquiagem. “Uma representante dos lojistas disse que em 24 horas iriam aprovar uma regulamentação que ia me tirar dali”, conta.

“Vou comprar uma trena”

Não foram 24 horas, mas três dias. Em 20 de março, a Prefeitura assinou o Decreto 54.948, que regulamentou a Lei 15.776 e pegou os artistas de surpresa ao criar uma série de novas restrições. Pela norma, os artistas são obrigados a se cadastrar nas Subprefeituras para trabalhar. Além disso, não podem atuar a menos de 5 metros de pontos de ônibus, orelhões e saídas de metrô, nem a menos de 20 metros de escolas e feiras de artesanato ou a uma distância inferior a 50 metros de hospitais e guias rebaixadas, entre outras proibições.

O decreto do Executivo atendeu às reivindicações dos comerciantes da 25 de Março, conforme explica a assessora da Univinco. “Solicitamos à Secretaria de Governo, através do senhor Chico Macena [secretário], uma solução, e ficamos muito satisfeitos pela regulamentação”, afirma Claudia Hurias.

Para os artistas, as restrições podem ser usadas para expulsá-los das principais vias. “Por esse decreto, eu não vou mais poder me apresentar na Paulista, porque em todo lugar tem orelhão, metrô, ponto de ônibus”, afirma Marcio Henrique de Aguiar, 41 anos, o Elvis da Paulista. Um dos momentos mais memoráveis de suas apresentações ocorre quando, vestido como o Rei na fase Las Vegas, invade com o microfone na mão ônibus parados no ponto e pede para os passageiros cantarem com ele. Marcio adora as ruas pela liberdade de fazer arte do jeito que quiser. “Trabalho na rua porque gosto. Eu não seria feliz sendo Luan Santana.”

Os artistas de rua passaram a organizar ações para pressionar pela revogação do Decreto 54.948 e pela retomada do diálogo entre a Prefeitura e a categoria. “Não precisamos e nem desejamos um Estado paternalista que se considera no direito de decidir quem, quando, onde e como se apresenta no espaço urbano de sua cidade”, afirma Celso Reeks. Em reunião com os artistas, a Secretaria Municipal da Cultura confirmou que o decreto foi elaborado para atender ao pedido dos lojistas, mas afirmou que a pasta é contra o cadastramento prévio de artistas e que iria trabalhar para rever a restrição.

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NA RUA – Tania Mujica se prepara para atuar como estátua viva

Fotos: Mozart Gomes/CMSP

No primeiro protesto contra as novas regras, realizado em frente à sede da Prefeitura, no dia 25 de março (uma coincidência, segundo os organizadores), os artistas levaram trenas para zombar das regras exigidas pelo Decreto. “Eu vou comprar uma trena / A cinco metros do metrô / Não pode falar poema”, cantaram. Rafael Pio estava lá, guitarra nas mãos, e já nem queria falar sobre brigas por pontos: “Agora é hora de união entre os artistas”.

O repentista Adão Fernandes, que participou do protesto, lembrou como a luta de sua categoria é antiga contando que um dos mestres da sua arte, o cearense Patativa do Assaré, acabou preso em 1943 e, na cadeia, ao ver um passarinho patativa numa gaiola, criou os versos: “Patativa descontente / Nesta gaiola, cativa / Embora bem diferente / Eu também sou Patativa. (…) Meu sofrer e teu penar / Clamam à Divina Lei. / Tu, presa para cantar / E eu preso porque cantei”.

Saiba Mais

Site
Artistas na Rua – www.artistasnarua.com.br

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