Sonhando com os pés no chão
Grupos que discutem andar a pé como meio de transporte despontaram em 2013 e vêm mudando políticas públicas
Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Colaboraram: Matheus Briet | m.briet@hotmail.com e Renata Oliveira | renataoliveira-cci3est@saopaulo.sp.leg.br

A psicóloga Marina Pereira, 48 anos, costumava viver cercada de automóveis, nas ruas e nos empregos: trabalhou numa empresa de radares, foi dona de uma autoescola focada em pessoas com medo de dirigir e só se locomovia sobre quatro rodas. Há dois anos, mudou tudo. Vendeu o carro e passou a percorrer São Paulo usando apenas o transporte público e os próprios pés.
“No começo eu tinha vergonha de dizer que não tinha carro. Hoje eu sinto muito alívio quando falo: não tenho carro, que bom!”, explica Marina, sorridente, sentada na varanda do seu apartamento na Vila Mariana, zona sul da capital, numa manhã com pouco sol de novembro passado.
Ela gostou tanto de trocar o estresse dos congestionamentos pela alegria da atividade física nos seus percursos pela cidade que passou a atuar como voluntária de uma organização não-governamental (ONG), a Corrida Amiga, que incentiva outras pessoas a fazerem o mesmo. É quando ela olha para mim e pergunta: “vamos lá?”. Hoje Marina vai me ensinar a correr a pé para o trabalho.
A descoberta dos pés
Procure pelo termo pedestre no dicionário Houaiss e você encontrará definições desanimadoras: “sem brilho, rústico, modesto”. A vida nas metrópoles afastou tanto as pessoas dos próprios corpos que se locomover pelas ruas sem rodas ou motores passou a ser visto como uma prática indigna, que nem deveria ser considerada meio de transporte. “A indústria automobilística fez a gente perder o gosto por andar. A caminhada virou um modo de deslocamento estigmatizado”, resume a pesquisadora Ana Carolina Nunes, mestranda em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro do coletivo de mobilidade a pé Sampapé.
Basta andar por qualquer metrópole para perceber como as ruas excluem quem se locomove a pé. Na cidade de São Paulo, alguns semáforos demoram tanto tempo para abrir aos pedestres que é possível cozinhar e servir um prato de macarrão instantâneo durante a espera pelo sinal verde. E não é exagero. Em junho do ano passado, uma performance-denúncia realizada pela associação Cidadeapé comprovou essa tese ao colocar um voluntário vestido de “Super-Ando, o herói dos pedestres” cozinhando um Miojo na esquina da Avenida Rebouças com a Rua Oscar Freire.
Outro indício de como a cidade é hostil para quem caminha está na má conservação das calçadas, responsável por 18% das quedas que acontecem na capital paulista, conforme dados do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (veja quadro abaixo).
E olha que, mesmo sendo tão desprovido de brilho, rústico e modesto, o andar a pé permanece como o principal meio de deslocamento para a maioria da população. Dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) mostram que 36% dos deslocamentos diários dos brasileiros são feitos usando os pés. Em São Paulo, são 31%, segundo pesquisa origem-destino feita pelo Metrô.
A ideia de que a caminhada é um meio de transporte e que, portanto, precisa da proteção e do incentivo do poder público é algo que os brasileiros começaram a descobrir nos últimos quatro anos. Um levantamento feito pelas ONGs Cidade Ativa e Corrida Amiga, com apoio do Instituto Clima e Sociedade, apontou que 80% das entidades que trabalham com o tema da mobilidade a pé surgiram a partir de 2013.
Para a gestora ambiental Silvia Stuchi Cruz, 32 anos, criadora da ONG Corrida Amiga, é natural que a explosão do interesse pelo transporte a pé tenha nascido junto com as Jornadas de Junho de 2013, quando muitos brasileiros descobriram pela primeira vez as ruas como espaço de luta política. “Ir para a rua desperta um outro olhar nas pessoas sobre a cidade”, diz.
Silvia criou a Corrida Amiga em 2014, buscando trazer ao Brasil um exemplo que havia conhecido durante um estágio de doutorado na França, ao ver muita gente usando a corrida como meio de transporte. Ela acha curioso que seja preciso criar ONGs para estimular as pessoas a andar, que é uma das primeiras coisas que aprendem na vida. “Nós mostramos a viabilidade de um transporte primordial que estava esquecido. É uma questão que deveria ser óbvia para todo mundo, mas não é.”
Legislações pedestres
A Paulista, palco principal das Jornadas de Junho de 2013, marcou a primeira grande vitória dos movimentos pelas caminhadas: o fechamento da avenida-símbolo de São Paulo aos carros durante domingos e feriados. A medida tornou-se oficial em 25 de junho do ano passado, com a publicação do Decreto 57.086, da Prefeitura, que criou o programa Ruas Abertas.
“As pessoas, no começo, estavam muito resistentes a essa mudança, mas hoje é um espaço frequentado por todos”, comenta a coordenadora editorial Adriana Chaves, 38 anos, que costuma frequentar a Paulista todo domingo para comer, correr e ver os artistas de rua. Ela lamenta que a cidade ainda não seja muito amigável para quem anda com pés no chão: “São Paulo poderia ser melhor para os pedestres. Tem regiões impossíveis de se andar. Ainda é uma cidade muito voltada para carros”.
A abertura da Paulista e de outras avenidas nasceu da mobilização da ONG Sampapé e da rede de ativismo Nossa Sampa. “Em 2013, era visível que havia uma demanda reprimida das pessoas para ocupar as ruas. Durante as manifestações, muita gente ficava socializando na Avenida Paulista depois que os protestos acabavam”, relembra Ana Carolina Nunes. Para ela, “as ruas são um espaço de disputa política”, quer as pessoas estejam ali protestando ou apenas se deslocando. “Quando um carro vai para cima de um pedestre, é uma disputa política. É uma discussão sobre quem tem direito à rua”, afirma.

O programa Ruas Abertas transformou-se em política de Estado com a Lei 16.607, de 2016, nascida de um Projeto de Lei (PL) da vereadora Juliana Cardoso (PT) e do ex-vereador Nabil Bonduki e sancionada em 29 de dezembro. “A ocupação do espaço público através da cultura, do lazer e da arte no período noturno ou mesmo 24 horas, como é o caso da Virada Cultural de São Paulo, é um ótimo exemplo de política pública, inclusive copiada por muitas cidades do Brasil; no entanto, é preciso oferecer condições para que esse exemplo se torne frequente e descentralizado em nossa cidade”, afirma a justificativa do projeto.

Hoje, uma das principais bandeiras dos movimentos é a aprovação de um Estatuto do Pedestre, previsto no PL 617, de 2011, de autoria dos vereadores Atílio Francisco (PRB), Gilberto Natalini (licenciado), José Police Neto (PSD), Mario Covas Neto (PSDB), Ricardo Teixeira (PROS) e Ricardo Nunes (PMDB) e dos ex-vereadores Antonio Goulart, Claudio Prado, Floriano Pesaro, Marco Aurélio Cunha, Nabil Bonduki, Netinho de Paula e Ricardo Young. Elaborado com a participação de diversas entidades de mobilidade a pé, o estatuto se propõe a aprimorar a infraestrutura que dá suporte à caminhada, por meio da melhoria das calçadas e da integração das caminhadas com outras redes de transporte.

Mas já faz um bom tempo que as leis aprovadas na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) influenciam os passos de quem anda pela cidade. As regras que valem hoje para a construção e reforma das calçadas estão definidas na Lei 15.442, de 2011, feita a partir de um PL do ex-vereador Domingos Dissei e regulamentada pelo Decreto 52.903/2012. Lá estão as regras que exigem a presença de pelo menos duas faixas em todas as calçadas: uma de serviço, destinada a mobiliário urbano, como árvores e postes, e uma faixa livre para pedestres.
Em 2008, um projeto da então vereadora Mara Gabrilli deu origem ao Plano Emergencial de Calçadas, que permite à Prefeitura de São Paulo reformar ou construir calçadas em rotas estratégicas e locais com grande circulação de pedestres. Seis anos depois, a Lei 15.966/2014, criada a partir de um PL do vereador Paulo Frange (PTB), estabeleceu que as multas por má conservação de calçadas devem ser cobradas sobre a área irregular dos passeios, e não sobre a área total.
Olhando e andando
“Você já parou por aqui? Olha em volta, repara. Agora, a gente para e vê se o carro vai deixar a gente passar na faixa. Se deixar, agradece e acena. Se não deixar, agradece e acena também.” Enquanto corremos pela calçada, Marina me ensina a manter aberto um “olhar contemplativo” para pessoas e paisagens que passam pela gente. Essa é uma das atividades desenvolvidas pela Corrida Amiga, em que um voluntário ensina, na prática, como fazer correndo o percurso entre casa e trabalho.

É mais fácil do que eu poderia imaginar. O percurso de seis quilômetros entre minha casa, na Vila Mariana, e a Câmara Municipal de São Paulo, na Bela Vista, leva apenas 40 minutos e se mostra um jeito bastante viável de inserir uma atividade física no meio da minha rotina diária.
Como eu sabia que a gente iria passar por lugares movimentados, meu maior receio era de como as pessoas nas calçadas cheias de gente iriam reagir a uma dupla de corredores. A resposta de Marina é a gentileza. Tome cuidado com todo mundo, evite esbarrões, espere sua vez e cumprimente sempre que der, com um sorriso e um bom-dia. Engraçado ver que, mesmo no coração de São Paulo, as pessoas respondem a cumprimentos. Até que é um jeito bom de começar o dia, recebendo e distribuindo sorrisos. E olhando sempre.
“Se você for a pé questionando e brigando com todo mundo, vai chegar tão estressado como se estivesse no carro. Tem que adotar um olhar contemplativo”, explica Marina. Combina com o que uma médica, Stela Sartori, 39 anos, disse a respeito de como seu olhar se modificou após participar de atividades de caminhada: “aprendi a observar os lugares com mais interesse e descobri que, quanto mais observo, mais coisas novas e surpreendentes surgem no caminho”.

Assim, enquanto os tênis batucam no chão, meu olhar vai buscando: fachadas de casas em que nunca tinha reparado, um rosto de criança, um senhor cantando para a rua, a surpresa de uma orquídea amarrada em uma árvore, a arte subversiva das pichações nos muros, as barracas de comércio popular nas imediações do Hospital Beneficência Portuguesa, que eu nem sabia que existiam porque nunca tinha passado por ali, a não ser, talvez, dentro de um veículo, com os olhos aprisionados na tela de um celular e a mente em qualquer outro lugar e tempo que não aqui e agora.
São tantos os casulos em que a gente se aprisiona, a confortável surdez dos fones de ouvido, a lataria reconfortante dos automóveis, a bolha confortadora das nossas redes sociais. Quem sabe esse jeito de andar, pés no chão e olhar à frente, possa nos ajudar a ver uns aos outros e, assim, aprender como viver na mesma cidade de um jeito que abrace a todos.
Projetos e leis relacionados aos pedestresNormas aprovadasLei 16.607/2016 | Juliana Cardoso (PT) e ex-vereador Nabil Bonduki Lei 16.472/2016 | Ricardo Teixeira (PROS) Resolução 9/2013 | Gilberto Natalini (PV), José Police Neto (PSD), Ricardo Nunes (PMDB) e ex-vereadores Floriano Pesaro, Marco Aurélio Cunha, Nabil Bonduki e Ricardo Young Lei 15.442/2011 | Domingos Dissei Lei 15.245/201 | Toninho Paiva Lei 14.675/2008 | Mara Gabrilli Projetos de lei (*)541/2016 | George Hato (PMDB) 501/2015 | Atílio Francisco (PRB) 339/2014 | Eduardo Tuma (PSDB) (*) Da última Legislatura |
Estatuto do Pedestre*Algumas propostas
(*) O projeto precisa ser aprovado em 2ª discussão |
SAIBA MAIS
Sites
Cidadeapé. http://cidadeape.org
Corrida Amiga. http://corridaamiga.org
Mobilize. http://www.mobilize.org.br
Dissertação de mestrado
Andar a pé: um modo de transporte para a cidade de São Paulo. Meli Malatesta (USP, 2008). Disponível online.
Reportagem
Cobrança justa. Revista Apartes nº 6 (mar/abr-2014).