Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Publicada originalmente em ago/2014 – edição nº 9
Raposo Tavares e Fernão Dias foram bandeirantes notáveis, muito conhecidos, que ajudaram a povoar o Brasil e ampliar seus limites territoriais ao fundar vilas, em busca de ouro e pedras preciosas pelo País afora. Ambos dão nome a duas das mais importantes rodovias brasileiras. Ao mesmo tempo, praticavam atos violentos, matando ou escravizando índios. Por isso, são vistos como heróis por uns e bandidos por outros, ou uma mistura de ambos. Porém, há uma parte de sua biografia que ainda hoje é pouco comentada: eles e outros líderes de bandeiras foram vereadores da Câmara da capital paulista, então chamada Vila de São Paulo de Piratininga.
A relação entre a instituição e os sertanistas era conturbada. Em setembro de 1627, os vereadores pediram a prisão de Antônio Raposo Tavares, alegando que ele organizava uma expedição sem licença. O temor dos vereadores era que, com a saída de muitos homens, a vila ficasse desprotegida e fosse atacada por índios. As atas da época, documentos muito utilizados pelos historiadores para estudar a Câmara, mostram que o “delinquente” Raposo Tavares deveria ser detido e, caso a ordem não pudesse ser cumprida, que lhe tomassem “a pólvora e o chumbo”.
Não foram encontrados registros de que tenha sido preso ou se sua munição foi confiscada. Assim, a expedição ocorreu e, em maio de 1629, Raposo Tavares e sua bandeira voltaram a São Paulo com centenas de índios escravizados, tornando-o um homem admirado. Em 1º de janeiro de 1633, foi eleito juiz ordinário da vila, cargo hoje equivalente ao de presidente da Câmara.
Outro bandeirante que teve problemas com a Câmara foi Manuel Alves Preto. Em 1628, ele organizou uma grande bandeira rumo à região do Guairá, um antigo território espanhol a oeste do atual Estado do Paraná, para destruir missões dos jesuítas. Voltou a São Paulo com centenas de índios escravizados e foi acusado pelos padres jesuítas de ser violento demais. Por isso, não pôde assumir o cargo de vereador, para o qual tinha sido eleito. Manuel Preto era dono de fazenda na Freguesia do Ó e explorava uma mina de ouro no Morro do Jaraguá, na zona oeste da cidade.
O chefe do Arquivo da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), historiador Ubirajara de Farias Prestes Filho, conta à Apartes que os condutores das bandeiras adquiriam destaque na vila paulista, e isso os credenciava a assumir funções na administração local.
Na ata da Câmara de 1º de fevereiro de 1681, há o registro de que um vereador pediu para ser substituído no cargo para “buscar remédio no sertão, o trato ordinário desta terra”. Prestes Filho explica que as expressões “buscar remédio no sertão” e “buscar remédio para a pobreza” apareciam frequentemente nos documentos do período colonial para indicar a busca por índios, chamados de negros da terra, para escravizá-los.
No livro Viagem pela história do Brasil, o historiador Jorge Caldeira esclarece que um dos segredos da eficiência dos bandeirantes era conhecer a natureza e os costumes indígenas. Quase todos eram mamelucos (filhos de indígenas com europeus) e casados com índias. A língua mais falada por eles era a geral (indígena). Segundo Caldeira, a união das ambições europeias com os costumes locais criou um novo tipo: o sertanista.
FALSAS ESMERALDAS
Fernão Dias Paes foi vereador de São Paulo em 1651, e anos antes também teve de dar satisfação à Câmara. Em ata de 2 de setembro de 1623, está registrada uma ordem para que ele explicasse por que pretendia formar uma bandeira. No documento, consta que “o procurador do Conselho foi informado que Fernão Dias, capitão dos índios, queria ir ao sertão e levar consigo alguns moradores, o que era um grande prejuízo deste povo, por haver pouca gente”.
A trajetória de Dias, conhecido como Caçador de Esmeraldas, voltou a cruzar com a da Câmara em 1681, em um dos enganos mais famosos da história do País. Seu filho, Garcia Rodrigues Paes, levou 47 pedras para os vereadores e afirmou serem esmeraldas. Ele fez questão de ressaltar a honestidade da família e garantiu que muitas pedras haviam sido entregues ao administrador da Coroa para serem enviadas ao rei. As “joias”, que todos pensaram ser esmeraldas, não passavam de turmalinas, sem valor comercial na época. Fernão Dias havia morrido meses antes, às margens do Rio das Velhas, em Minas Gerais, certo de que havia realizado o grande sonho de encontrar pedras preciosas.
Outros sertanistas também foram vereadores na Vila de São Paulo. Entre eles, Simão Jorge, primeiro presidente da Câmara em 1563; Afonso Sardinha, o Velho, juiz ordinário em 1587; Baltazar de Godoi; Pedro Taques, que também foi secretário do governador-geral dom Francisco de Souza; e Pedro Vaz de Barros, governador da Capitania de São Vicente em 1603.
PODER TOTAL
No período das bandeiras (séculos 16, 17 e 18), a Câmara desempenhava o papel dos três Poderes atuais (Executivo, Legislativo e Judiciário). Os vereadores faziam as leis, executavam e julgavam e prendiam quem as desrespeitasse. Como a Vila de São Paulo passava anos sem receber a visita de um governador-geral ou capitão-mor, representantes do rei de Portugal (autoridade máxima também no Brasil), a Câmara tinha muita autonomia.
De acordo com um levantamento do Arquivo Municipal Washington Luís, as obrigações da Câmara de São Paulo incluíam: cuidar dos muros que defendiam a vila contra os ataques dos índios, zelar pelas fontes e caminhos públicos, contratar e fiscalizar obras, garantir a limpeza pública, fiscalizar a qualidade e o peso dos alimentos vendidos, regular profissões como a de padeiros e ferreiros, conceder terras, cuidar da cadeia, nomear carcereiros e cobrar impostos, entre outras. Enfim, era a responsável pelo bem-estar de todos.
A polêmica de “ouro, índios e diamantes”
Ainda hoje, mais de dois séculos após as últimas bandeiras, a questão da escravidão indígena causa polêmica na Câmara Municipal de São Paulo. No Auditório Freitas Nobre, localizado na área externa do Palácio Anchieta, sede da CMSP , há uma placa em homenagem aos prefeitos Francisco Prestes Maia e José Vicente de Faria Lima. Fixado em 7 de setembro de 1969, inauguração do Palácio, o objeto traz a frase “Floresceu outrora, às margens do Anhembi, sob a égide de São Paulo Apóstolo a Vila de Anchieta e Nóbrega. Cresceu, expandiu-se à mercê dos aventurosos bandeirantes à busca do ouro, índios e diamantes, dilatou as fronteiras da pátria”. Para alguns, a palavra “índios” aparecer entre “ouro” e “diamante” põe os indígenas como bem material. Por isso, em 2002 o vereador Nabil Bonduki (PT) apresentou o projeto de resolução (PR) 12/2002 , solicitando a retirada da frase da placa. Na justificativa, o parlamentar afirma que a Câmara não deveria enaltecer a ação dos bandeirantes que saíam à busca dos povos indígenas com o intuito de escravizá-los, tratando-os como mercadoria. “É inaceitável que uma instituição que acolhe e representa o povo mantenha uma inscrição que perpetua visão preconceituosa contra os povos oprimidos, que estão nas raízes de nossa formação étnica e cultural”, afirma Bonduki. O projeto foi arquivado por mudança de legislatura (os quatro anos de mandato de um vereador), mas Bonduki informou que vai reapresentá-lo. “Não é correto a Câmara mostrar uma frase que trata os índios de forma pejorativa”, declarou.
Para chegar a vereador naquela época, era necessário ser um “homem bom”, ou seja, proprietário de terra considerado nobre mais por viver como tal do que por ter algum título de nobreza. Segundo o historiador Prestes Filho, no livro Câmara Municipal de São Paulo: 450 de História, “viver como nobre envolvia ter serviçais e saber exibir certa distinção nas maneiras”.
Nessa categoria não eram incluídos índios, negros, judeus e aqueles que realizavam trabalhos braçais. Assim, era comum um bandeirante também ser vereador.
REPUTAÇÃO
A fama dos bandeirantes, também chamados de paulistas, espalhou-se por todo o território da colônia. Em 1673, o governo da Bahia contratou alguns deles para defender os colonos contra os índios gueréns. O pagamento seriam os prisioneiros escravizados. Como líder da expedição, João Amaro Maciel Parente derrotou os gueréns e centenas de índios tornaram-se escravos.
Dez anos mais tarde surgiu outra grande tarefa. Índios de várias tribos se uniram na Confederação dos Cariris para atacar os fazendeiros de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão, na chamada Guerra dos Bárbaros. Após o fracasso nos primeiros combates, o governador de Pernambuco, Matias da Cunha, enviou uma carta na qual afirmava que “só o grande valor dos paulistas poderia conseguir ali o mesmo que, com tanta glória, alcançaram na Bahia”. Foram organizadas cinco bandeiras. O líder Matias Cardoso foi para o Ceará e Rio Grande do Norte; Jorge Velho para a Paraíba; Manuel de Moraes para Pernambuco; e João Amaro Maciel Parente para o Maranhão. Os bandeirantes venceram, mas como poucos índios sobreviveram, o número de escravos não foi grande. Assim, o pagamento foi feito com terras, e muitos paulistas se tornaram fazendeiros no Nordeste.
Heróis ou assassinos
Nos últimos 150 anos, a imagem que se tem dos bandeirantes vem sofrendo grande mudança. De sertanistas com qualidades e defeitos, como eram vistos por seus contemporâneos no final do século 19, passaram a ser considerados gigantes que construíram o País. Mas, a partir da década de 1930, os sertanistas começaram a ser cada vez mais rotulados como assassinos de tribos. Nos últimos anos, os pesquisadores procuram uma visão mais equilibrada, contextualizando-os no Brasil colônia.
A construção do mito começou na segunda metade do século 19, quando a cidade de São Paulo iniciou a ampliação de sua importância econômica. As elites precisavam legitimar sua posição frente às outras Províncias. Segundo o historiador da CMSP Ubirajara de Farias Prestes Filho, “essa legitimação inclui buscar no passado a semente de seu crescimento atual, o que justificaria a vocação paulista para conduzir não apenas a Província, mas também o resto do País”.
Prestes Filho diz que as pesquisas históricas da época, bastante tendenciosas e ideologizadas, criaram a ideia do bandeirante corajoso, de origem nobre, responsável pela criação do território nacional. Anos depois, viraram bandidos que, quando não matavam, escravizavam.
O historiador afirma que a concepção idealizada e a demonizada precisam ser repensadas. “As pesquisas precisam ver os bandeirantes como personagens de seu tempo, para tentar entendê-los dentro do contexto”. Ele ainda chama a atenção para o fato de que, atualmente, além dos sertanistas os indígenas também são considerados atores sociais: “Eles resistiam, negociavam, usavam estratégias de sobrevivência na sociedade colonial. Esse protagonismo precisa ser ressaltado”.
Outro sertanista de destaque na história do Brasil foi Domingos Jorge Velho, contratado pelo governo de Pernambuco para acabar com o Quilombo dos Palmares, no interior de Alagoas. Em 1694, os negros foram derrotados e seu líder, Zumbi, degolado. Apesar da vitória, Jorge Velho deixou uma impressão ruim entre os pernambucanos. “Trata-se de um dos maiores selvagens com quem topei”, afirmou o bispo do Recife, d. Francisco de Lima. O governador de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro, qualificou os bandeirantes como “gente bárbara, que vive do que rouba”. Esses sertanistas não foram eleitos vereadores, mas conquistaram grande poder onde se estabeleceram.
SAIBA MAIS
Livros
Câmara Municipal de São Paulo: 450 anos de História. Ubirajara de Farias Prestes Filho. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012. Disponível em www.saopaulo.sp.leg.br
Câmara Municipal de São Paulo: 1560-1998 – Quatro Séculos de História. Délio Freire dos Santos e José Eduardo Ramos. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1998.
Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo. John Manuel Monteiro. Companhia das Letras, 1994.
História do Brasil. Eduardo Bueno. Publifolha, 1997.