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As muitas lembranças da ladeira

Na Ladeira da Memória estão o primeiro monumento da cidade, um painel de azulejo projetado pelo criador do brasão paulistano e uma árvore centenária
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Renata Oliveira | renata.olliver@live.com

Publicada originalmente em ago/2018

Apesar do nome pouco amigável de figueira-brava, a árvore localizada no Largo da Memória, região central de São Paulo, tem mais de cem anos e dava sombra e descanso para diversos viajantes que realizavam o transporte de cargas e mercadorias. Esses tropeiros vinham da região oeste do Estado em direção ao vale do Rio Tietê e aproveitavam para relaxar um pouco embaixo da figueira.

A árvore fica ao lado do Obelisco do Piques, primeiro monumento da cidade (datado de 1814), e nem mesmo o conforto que proporcionava aos tropeiros foi suficiente para que estivesse livre do risco de ser derrubada.

Em 1919, o então prefeito Washington Luís encarregou o arquiteto Victor Dubugras de elaborar um projeto para o Largo da Memória, como uma maneira de celebrar o Centenário da Independência do Brasil, que ocorreria três anos depois.

A série de melhorias passou pela construção de escadas em curva e pela colocação de um novo chafariz e de um painel de azulejos, ambos projetados pelo artista José Wasth Rodrigues. No painel constava, pela primeira vez em um monumento público, o brasão da cidade. O símbolo, criado por Wasth e por Guilherme de Almeida, havia sido o vencedor de um concurso organizado pela Prefeitura em 1917.

Nem todos os pontos da reforma, porém, agradaram a todos. Poucos meses após o início, o vereador Amaral Gurgel expôs, na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), sua preocupação com o cuidado dado às árvores do local.

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Ilustração do Largo da Memória, no início do século 19, sendo utilizado como ponto de descanso para viajantes | Crédito: Coleção de Arte da Cidade / Centro Cultural da Cidade de São Paulo/SMC/PMSP | Foto: Luciana Cristina Ramos Nicolau

Em indicação (sugestão feita por um vereador para que um órgão tome medidas), o parlamentar afirmou que a Prefeitura não poderia admitir que as obras de melhoramentos cortassem as “árvores seculares que existem naquele local”. Segundo Gurgel, na semana anterior “o machado inclemente das tradições” havia decepado uma “linda árvore plantada na parte lateral da Rua Quirino de Andrade”. No desabafo, ele completou: “isto dói”.

Semanas depois, o arquiteto João Bertacchi, da Prefeitura, respondeu ao apelo dizendo que o corte da árvore já era previsto devido à posição da nova escadaria, a não ser que fosse modificado o projeto já aprovado pela Câmara. “Ela ficaria com uma boa metade das suas raízes cortadas e o restante a descoberto, resultando igualmente na perda da árvore”, explicou Bertacchi.

O corte de árvores voltou a ser tema de discussões na Câmara em 1921. Na época, o vereador Luciano Gualberto alertava sobre a “necessidade urgente de acabar-se com o aniquilamento” das árvores da cidade, “absurda sob todos os pontos de vista”. O então prefeito, Firmiano Morais Pinto, relatou ter o apoio da Associação Rural Brasileira para os cortes.

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Foto de 1862 registra a vista do Largo, também utilizado como espaço para feira de escravos | Crédito: Militão Augusto de Azevedo/Acervo do Museu da Cidade de São Paulo

Se hoje a arborização é considerada primordial para a vida nas cidades, naquele tempo não era bem assim. Segundo o prefeito, no estudo realizado pela Associação Rural Brasileira, em caso de ruas estreitas a arborização se tornava mais danosa do que benéfica, por “interceptar raios solares e roubar alimento das plantas dos jardins”. Ainda de acordo com ele, todo dia apareciam pedidos particulares para que fossem “sacrificadas as árvores que umedecem as casas e tiram a vista de suas propriedades”. Eximindo-se de responsabilidade, Morais Pinto concluiu que se a Prefeitura errou, “errou com a Câmara, a Sociedade Rural, a imprensa e com o público”.

A centenária figueira-brava do Largo sobreviveu após as discussões na Câmara e segue em pé, fornecendo sombra aos apressados paulistanos que por ela passam.

DECLARAÇÃO DE AMOR

A ideia de enfeitar a cidade com o Obelisco do Piques foi uma declaração de amor dos moradores a São Paulo, afirma o jornalista Roberto Pompeu de Toledo no livro A capital da solidão. A cidade era vista, no começo do século 19, como mero lugar de passagem, mas com a criação de um monumento as pessoas tentavam deixá-la “nas condições mais agradáveis possíveis”.

A ideia foi proposta pelo engenheiro militar Daniel Pedro Müller, como complemento à construção da Estrada do Piques, que facilitaria a comunicação da cidade com o interior. Müller sugeriu a formação de um largo, a partir da ampliação das Ladeiras do Piques e da Palha, atual Rua 7 de Abril, e a construção de um chafariz e do obelisco, que foi erguido em pedra de cantaria por Vicente Gomes Pereira, o mestre Vicentinho.

Os historiadores não chegam a uma conclusão unânime quanto aos motivos da criação, mas concordam que o monumento foi construído para eternizar algo, e por conta disso o Largo e a Ladeira ganharam nome de Memória. Algumas pessoas também chamam o obelisco de Pirâmide do Piques por conta de seu formato.

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Antes da reforma de 1919, o Largo da Memória era tomado por árvores | Foto: Aurélio Becherini / Acervo do Museu da Cidade de São Paulo

A certeza quanto à origem do termo “piques” é outro ponto que deixa dúvidas. Para Pompeu de Toledo, há duas possibilidades: a expressão “a pique” (que significa “a prumo, verticalmente”), por conta do terreno acidentado que formava ladeiras no entorno do monumento. Outra versão relata que o nome seria devido a uma família de mesmo sobrenome moradora do local. Na publicação Largo da Memória, do Instituto Itaú Cultural, ainda há outra hipótese: pique seria usado no sentido de afrontar alguém, já que os tropeiros também resolviam  suas rixas no Largo.

TROPEIROS E TRENS

O Largo era considerado a porta de entrada do Município porque ficava nos limites da cidade nova, do outro lado do Ribeirão Anhangabaú. As bicas de água e o chafariz do local tinham função dupla: serviam aos moradores dos arredores e eram ponto de parada para os viajantes e seus animais.

O local também foi espaço de uma feira de escravos, que ocorria ao meio-dia. “A elevação da subida, com o patamar (espaço no topo de uma escada) largo, circundado pelo paredão, punha em destaque a corte enfileirada da mercadoria negra”, conta Raimundo de Menezes, em São Paulo dos nossos avós.

Construído na mesma época do Obelisco, o primeiro chafariz do local foi retirado do Largo em 1872, época em que o fluxo de tropas viajantes diminuiu por conta da chegada dos trens, o que fez com que o local não fosse mais considerado a porta de entrada da cidade, apesar de ainda figurar como um ponto importante de São Paulo por sua posição privilegiada.

Em 1908, atendendo ao pedido de “cinquenta e tantos moradores”, o vereador Alvaro Gomes da Rocha Azevedo apresentou na Câmara Municipal o projeto de lei 12/1908 (veja na página 74), que alterava o nome da Ladeira do Piques, ao lado do Obelisco, para Rua Quirino de Andrade, denominação usada atualmente.

O projeto pretendia homenagear o coronel que havia morado por anos nas imediações. “Conheci de perto o saudoso extinto e posso dar testemunho de grande estima pessoal”, discursou Rocha Azevedo. “Parece-me que o seu nome, cercado da benemerência popular, irá honrar aquela via pública sem prejuízo de qualquer tradição histórica”, defendeu o parlamentar. O PL foi aprovado e se tornou a lei 1.081, de 13 de abril de 1908.

CAI OU NÃO CAI?

Atualmente com 15 metros de altura, a figueira-brava teve que passar por mais alguns apertos para provar que merecia ficar em pé. O fato de a enorme árvore se sustentar em um espaço reduzido de terra fez com que se tornasse causa de temor entre os moradores. Mensagens enviadas à Prefeitura, nos anos 80, questionavam se o espaço seria suficiente para mantê-la sem o risco de cair.

As dúvidas foram suficientes para que um dia aparecesse acorrentada ao muro da Rua Xavier de Toledo. Em entrevista à Apartes, a arquiteta e urbanista Sidnea de Souza declarou que as queixas foram a motivação para que “mesmo sem provas de que a árvore oferecia risco, a amarrassem para tentar tranquilizar os moradores”. A arquiteta faz parte da Ação Local da Ladeira da Memória, associação que reúne moradores e interessados em cuidar da área.

A corrente só foi retirada em janeiro de 2011, quando parte dela já havia sido absorvida pela árvore, que com o tempo se adaptou aos grilhões.  Segundo o jornal Folha de S. Paulo, o diagnóstico realizado pela Prefeitura concluía que a árvore estava saudável. No dia da vistoria, os técnicos não souberam explicar o motivo da corrente, nem identificar quem pudesse ter colocado.

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A figueira-brava (à esq.) sofreu ameaça de corte e chegou a ser acorrentada, mas continua em pé após mais de 100 anos | Foto: Gute Garbelotto/CMSP

Na década de 70, as ampliações das linhas de metrô também ameaçaram a Ladeira da Memória. Para Luís Saia, arquiteto e incentivador do processo de tombamento do local, as obras tinham a intenção de interferir no desenho da praça.

O trâmite para o reconhecimento do valor histórico e proteção do Largo foi iniciado em 1971 e concluído em 1975, abrangendo o espaço ocupado pelo Obelisco, por parte da Rua Xavier de Toledo e pela Ladeira. Com o tombamento, toda reforma no espaço deve ser submetida à aprovação da Secretaria de Cultura do Estado, tornando-o intocável a novas intervenções.

Para Saia, a cidade possuía uma estrutura e um comportamento que não poderia ser alterado pelo sistema viário. “Em todo o mundo, a conservação histórica é de suma importância, só aqui é que metem os pés pelas mãos”, declarou à Folha de S. Paulo em 1975.

Após mais de 200 anos de sua inauguração, milhares de pessoas passam pelo local histórico todos os dias. Como canta o Grupo Rumo: “Olha as pessoas descendo a Ladeira da Memória até o Vale do Anhangabaú. Quanta gente! Vagando pelas ruas sem profissão, namorando as vitrines da cidade”.

SAIBA MAIS

Livros
A capital da solidão. Roberto Pompeu de Toledo. Objetiva, 2003.
Largo da memória. Instituto Itaú Cultural, 1993.
São Paulo dos nossos avós. Raimundo Menezes. Saraiva, 1969.

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