Artigo: Reconsiderações teóricas contra as cotas raciais

Vereador Fernando Holiday (PATRIOTA)

Caro(a) leitor(a),

Creio que, antes de percorrer este artigo, é meu dever moral lhe comunicar que este não se trata somente da expressão de uma opinião sucinta sobre um assunto repisado há décadas e rediscutido de tempos em tempos. Aproveito-me da oportunidade e tentação rara de escrever sem grande limite sobre opiniões que expresso há anos por meio do meu mandato como vereador e até mesmo antes disso. Contudo, a minha manifestação desta feita se focará em fazer um mea-culpa quanto a minha contribuição, por vezes descontextualizada, em um tema tão importante para a história do Brasil: a escravidão negra e a herança do racismo. Minhas inúmeras falas sobre o assunto, quase sempre atreladas à discussão sobre cotas raciais, contribuíram – em maior ou menor grau – para o surgimento de figuras com um discurso absolutamente repugnante e distante de nossa realidade social, como o daqueles que hoje tomaram o controle da Fundação Palmares. As opiniões que expus de forma sem grande detalhamento nos últimos anos foi, no mínimo, conivente com o surgimento de uma direita ignorante, que desconhece os fundamentos sociológicos da identidade brasileira e sequer sabe interpretar (mesmo que para discordar) os principais pensadores do processo histórico de formação do Brasil que justifiquem – para alguns – a adoção de medidas como cotas raciais ou comemorações de datas como o da “consciência negra”.

Observando esse cenário desolador no qual o debate público foi jogado, onde a leitura e a análise se tornaram meros fragmentos de um passado, pretendo – com esse texto – desfazer, ao menos em parte, a impressão equivocada de que minhas opiniões críticas ao movimento negro e contrárias às cotas raciais, se assemelham ao culto da ignorância que tomou conta do atual governo federal e, em especial, das instituições federais criadas como forma de se combater o racismo. Aos esperançosos que chegaram aqui esperando uma reconsideração sobre meus posicionamentos quanto a esses temas, sinto desapontar: sigo com as mesmas opiniões. Entretanto, farei ao longo desse singelo artigo, uma autocrítica sobre a maneira com a qual tratei esse tema. Farei isso enquanto percorrerei de forma breve sobre o processo histórico de formação do Brasil, através da análise historiográfica e sociológica que levou a construção das posições que sustento há tanto tempo. Talvez, agora mesmo, o leitor pense: “só agora?”. Bom, sou obrigado a dizer que não é tarde demais, mas, certamente, se eu tivesse esclarecido melhor minha interpretação sobre o percurso que nos levou ao enraizamento do racismo brasileiro, é possível que hoje ouvíssemos menos a torpe e infame frase: “não existe racismo no Brasil”.

Passadas as minhas justificativas iniciais sobre a necessidade deste texto, passo a percorrer sobre a realidade fundante do Brasil, que deve ser pressuposto básico para a discussão que proponho.

Não é possível fazer uma discussão séria sobre as cotas raciais sem que antes passemos pela dura realidade do tráfico negreiro que se tornou um dos maiores negócios da então América Portuguesa. A partir da segunda metade do século XVI, o trabalho escravo negro começaria a superar as tentativas das vilas – em sua maioria fracassadas – de forçar um trabalho escravo dos ameríndios. Inicialmente, os historiadores brasileiros como Gilberto Freyre, diriam que a preferência pela mão-de-obra escrava africana se daria pela vantagem biológica dos negros em relação aos índios que seriam “preguiçosos” ou menos aptos aos trabalhos braçais. Essa tese ficaria ultrapassada na segunda metade do século XX com historiadores como Fernando Novais, que demonstraria a preferência pelos africanos na lógica econômica. Pois o mercado interno de nativos escravos não renderia tantos lucros à metrópole portuguesa quanto o trafico negreiro, já que um escravo que atravessava o Atlântico até chegar em seu destino final seria, evidentemente, mais valioso do que um escravo capturado na própria colônia. Além disso, poupavam-se esforços na contenção das inúmeras resistências e conflitos resultantes da tentativa de escravização dos índios no século XVI e início do século XVII. É preciso aferir também que houve ainda o efeito trágico das epidemias trazidas pelos lusitanos sobre as populações indígenas que não estavam biologicamente preparadas para o morticínio que viria junto nas caravelas.

O leitor talvez se pergunte qual a relação disso com o tema central do texto, não é mesmo? Pois bem, é preciso relembrar essa reconstrução óbvia de nossos primórdios, porque tem surgido pelos canos sanitários do que há de pior na direita: a ideia de que a escravidão teria de alguma forma sido estimulada pelos próprios africanos (ignorando-se as particularidades dos diferentes povos ali existentes), já que o comércio de escravos era comum dentro do próprio continente e o tráfico negreiro já era presente nas sociedades islâmicas e na Europa, muito antes da chegada dos portugueses ao Brasil. Essa afirmação quase sempre vem acompanhada da conclusão de que “os próprios negros vendiam seus companheiros para os europeus”. Esse raciocínio é feito como uma tentativa de construção argumentativa, no sentido de que o racismo não seria a origem, em si mesmo, da escravidão. Cabe lembrar que esses fatos são realmente verdadeiros, mas a interpretação carece de conhecimento sobre o contexto histórico.

Os africanos subsaarianos não vendiam “seus companheiros”, até porque a África – como já me referi – não é um povo unificado, que represente uma cultura única. Haviam, e ainda há, diversos grupos que guerreavam entre si. A venda de escravos se dava por alguns povos que tinham o costume de escravizar seus prisioneiros de guerra. Inclusive, Darcy Ribeiro lembrará em sua obra “O Povo Brasileiro” (publicada em 1995), que muitos desses negros vindos para a América Portuguesa não falavam as mesmas línguas e tinham religiões diferentes, o que muitas vezes era motivo de conflitos entre eles, mesmo após serem igualmente escravizados pelos lusitanos. Logo, claro, é possível dizer que o tráfico era facilitado por africanos de diferentes povos. Contudo, a chegada dos negros no Brasil foi acompanhada – de forma intrínseca – da ideia de que eles poderiam ser escravizados e tratados como propriedade (com caráter bem semelhante aos animais de carga), pois não eram inteiramente humanos, mas sim, um simulacro de algo que lembrava os mesmos. Essa tese, evidentemente racista, foi criada, penso eu, entre outros motivos, para aliviar a pressão dos jesuítas, que insistiam no processo de conversão dos indígenas para o cristianismo e se recusavam a permitir a escravidão daqueles que adotassem os costumes e as crenças da Igreja. Seria o cúmulo da ignorância, portanto, afirmar que o processo de escravidão foi culpa dos próprios africanos ou que isso não teria em seu seio a mácula do racismo.

Posto isso, vale ressaltar que o racismo atrelado à escravidão não se resumia só ao discurso sobre a inferioridade humana dos negros, como também se traduzia no tratamento que recebiam. A meu ver, não há obra que resuma melhor o sofrimento pelo qual passavam os escravos, como a poesia abolicionista “O Navio Negreiro” de Castro Alves, cujo trecho reproduzo abaixo:

Era um sonho dantesco… o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros… estalar de açoite…

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar…

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães:

Outras moças, mas nuas e espantadas,

No turbilhão de espectros arrastadas,

Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente…

E da ronda fantástica a serpente

Faz doudas espirais …

Se o velho arqueja, se no chão resvala,

Ouvem-se gritos… o chicote estala.

E voam mais e mais…

 

Esse sofrimento desumano persistiu por séculos até a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888, com a decretação da Lei Áurea. O Brasil foi o último a abolir a escravidão em sua região e foi um dos países (e colônia) que mais enriqueceu e abusou do mecanismo do tráfico negreiro para enriquecer os comerciantes desse negócio, além de fornecer mãos calejadas aos donos de engenho e seus enormes canaviais, ou ainda, como forma da busca sedenta pelo ouro nas primitivas Minas Gerais do século XVIII.

O cenário que tracei até aqui com ligeireza e de forma simples, sem a menor sombra de dúvidas, encontra respaldo no movimento negro e não é motivo de discordância (entre os pensantes). É o resumo de uma chegada sofrida da população negra na colônia portuguesa, com base nas conclusões majoritárias de historiadores, embasados em documentos, depoimentos ou similares históricos. Contudo, esse cenário tornou-se o pressuposto de uma conclusão que se tornaria óbvia para as esquerdas brasileiras e quem busquei rebater. Refiro-me, caro leitor, à ideia de que a escravidão gerou para os negros uma espécie de “dívida histórica” que nunca foi paga pelo Estado Brasileiro, pois após a abolição, os ex-escravos ficaram sem qualificação, emprego ou qualquer ajuda que colaborasse em sua inserção na nova configuração de sociedade que se formava no Brasil. É sobre esse tema que passo a discorrer.

Um dos argumentos principais para se rebater a ideia de uma “dívida” ou “compensação” histórica reside na tese de miscigenação do Brasil que, ao contrário do que muitos militantes da esquerda afirmam, não é um mito e, diferente do que alguns direitistas pensam, não é uma novidade. O principal precursor dessa tese até hoje será Gilberto Freyre – que citei anteriormente –, que em 1933 lança o famoso (e respeitado) livro “Casa-Grande e Senzala”, no qual o autor fará uma longa e detalhada análise sobre o processo de formação da identidade brasileira, que se constituirá essencialmente pelos portugueses, africanos e nativos indígenas. É claro que uma obra tão antiga precisa ser lida em seu contexto de época, já que Freyre defenderá ideias que hoje consideramos absolutamente ultrapassadas ou até mesmo preconceituosas, mas que representaram um avanço científico no período em que foi escrito. Posso dizer, com uma certeza inabalável, que uma dessas inovações foi o reconhecimento de que o negro teve um papel essencial na formação daquilo que entendemos como povo brasileiro e de que essa contribuição não se resumia só ao trabalho braçal, como também foi uma contribuição social, cultural e religiosa.

Freyre vai além, ele dirá que o Brasil foi formado por meio de um intenso, profundo e único processo de miscigenação que deu origem a um povo antes inexistente, de modo que as identidades lusitana, africana e indígena se diluem no tempo e nas relações. Mais tarde, Darcy Ribeiro também falaria dessas identidades, que não encontravam referências que explicitassem suas etnias. Os mulatos passavam a surgir das relações entre brancos e negros, os caboclos das relações entre índios e brancos e os curibocas, das relações entre negros e índios. Esses sujeitos não eram africanos, não eram europeus, assim como também não eram índios. A sua identidade se caracterizava, nas palavras de Ribeiro, pela “ninguendade”, isto é, eles eram absolutamente ninguém dentro daquele contexto social. A partir disso começaria a se formar a consciência da existência de um outro povo: o brasileiro.

Contudo, apesar dessa aparente confluência de ideias entre Freyre e Ribeiro, o primeiro seria duramente criticado pelo grupo ao qual pertence o segundo: os marxistas. Segundo Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr, Fernando Henrique Cardoso e diversos outros, Freyre era o ideólogo de um palavrão chamado “Democracia Racial”, conceito, segundo o qual, a diversidade racial brasileira haveria suplantado as diferentes formas de racismo e o passado escravocrata brasileiro. Hoje boa parte dos autores marxistas reconhecem a contribuição de Freyre e não o resumem somente a essa barbaridade, mas é interessante analisar como a leitura de nossa história foi dominada pela análise marxista. De qualquer forma, é com base nesses mesmos autores que defendem teses absolutamente contrárias àquilo que acredito, que desenvolvi meus posicionamentos contrários à tese da “compensação histórica” e, consequentemente, contra a política de cotas raciais. O leitor mais atento já terá percebido isso alguns parágrafos atrás, quando citei Darcy Ribeiro (um reconhecido antropólogo de vertente marxista e defensor de um “socialismo moreno” no Brasil) para corroborar a ideia de miscigenação e “dissolução” dos povos.

Pois bem, aquelas etnias formadas da mistura entre os três povos originários tratados por Gilberto Freyre (portugueses, africanos e indígenas) deu origem a outros, que não se identificavam com ninguém, a não ser com a identidade própria de Brasil. Serão esses brasileiros, portanto, que formarão a maior parte da sociedade pós-abolição no século XX. É evidente, portanto, que as heranças negativas ou positivas não se transmitiram de forma linear para as gerações seguintes, de forma que uma pessoa negra nos dias atuais não é a necessária representação direta do terror sofrido pelos seus antepassados na escravidão, assim como uma pessoa branca de nossos dias não é a representação direta dos benefícios e mordomias dos europeus donos de engenhos do período colonial. Essa afirmação pode parecer loucura quando analisamos as últimas pesquisas do IBGE sobre desigualdade social e nos deparamos com uma desproporção entre a porcentagem de pretos e pardos na camada mais pobre da população (75%) e a porcentagem desse mesmo grupo entre os mais ricos (27%), segundo o levantamento publicado em novembro de 2019. Todavia, é importante esclarecer que, por mais que se debruce sobre os dados apresentados por essas e diversas outras pesquisas, a afirmação de que essas distorções têm relação somente com a cor da pele são seguramente muito frágeis. Essa desigualdade poderia ser perfeitamente creditada, por exemplo, à falta de mobilidade social, devido ao sistema capitalista absolutamente primitivo e à sociedade estamental ainda dominante na maior parte Brasil.

A herança da escravidão tem impactos ainda hoje sobre a população definida, em algum momento, pela “ninguendade”. Contudo, sustento a tese de que as distorções geradas por esse passado recente podem e devem ser ajustadas a partir de políticas públicas que ataquem problemas sociais, independente da cor da pele dos sujeitos em questão. Passei a sustentar essa ideia com maior segurança quando me deparei com a obra de Florestan Fernandes chamada “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, lançada em dois volumes no ano de 1965 pelo sociólogo marxista que mais tarde, na década de 1980, viria a ser deputado constituinte e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Ele analisa em riqueza de detalhes como se deu a absorção social do negro no contexto capitalista brasileiro após a decretação da lei Áurea em 1888.

Em sua obra, Florestan buscará desconstruir a noção de Democracia Racial, vista em Gilberto Freyre. Ele demonstrará isso ao analisar principalmente o contexto paulista para o qual muitos negros migraram em busca de oportunidades de trabalho e onde o capitalismo brasileiro se desenvolveria de forma mais inequívoca. A partir dessa observação, ele identifica que os negros tiveram enorme dificuldade de inclusão, pois apesar de terem sido juridicamente libertos, não tiveram como acumular capitais e poder de representação para que pudessem se organizar em um contexto de liberdade. Muitos, aliás, não sabiam exatamente o que essa liberdade representava e não foram preparados para sobreviver em uma realidade de relação livre e assalariada. Florestan chegará a descrever relatos de negros que abandonavam seus trabalhos ou eram demitidos por não conseguirem discernir entre as ordens de um patrão e as ordens de um dono. Alguns tinham o receio de que a submissão assalariada fosse o caminho para o retorno do sistema escravocrata. Essa e muitas outras dificuldades facilitaram a tomada dos empregos pelos imigrantes europeus que tinham a vinda estimulada desde meados do século XIX. Assim, o sociólogo vai analisando a constante perda de espaço do negro, que agora era livre, porém não era integrado.

Apesar da visão marxista, sou obrigado a utilizar Florestan Fernandes para defender a minha tese, pois o autor em sua análise parte de alguns pressupostos que considero essenciais para responder o problema da integração do negro na sociedade atual. Essa inferência é a de que o capitalismo é inerentemente dependente das liberdades individuais e a sua ampliação foi o que forçou, em grande medida, a abolição nas colônias francesas, nos Estados Unidos e, tempos depois, no Brasil. Ora, outrossim, foi essa mesma liberdade que permitiu aos imigrantes europeus – que vieram em condições deploráveis – subverterem a ordem estabelecida e criar um cenário com possibilidade de mobilidade social. Logo, se os ex-escravos tivessem sido preparados para o sistema, cuja base é a liberdade e a competição, o resultado poderia ter sido outro. É claro que a obra de Florestan é iminentemente mais complexa e muito mais densa do que resumi ou do que eu poderia interpretar em apenas alguns parágrafos, mas, em essência, as suas conclusões sociológicas, acredito firmemente, permitem-me a manobra interpretativa que faço nessas linhas.

Considerando, portanto, o que aconteceu com os imigrantes e a influência capitalista sobre a liberdade dos negros, posso conduzir as minhas observações com maior estabilidade para a hipótese de que as resoluções de problemas sociais crônicos poderiam corrigir distorções provocadas por séculos de uma política desumana e retrógrada. Mesmo entre os historiadores marxistas, que formam a imensa maioria na área, houve quem admitisse que o sistema capitalista poderia colaborar de alguma forma para que se alcançasse uma justiça social, mesmo que isso fosse relativamente distante da utopia socialista de revolução do proletário defendida pela maioria dos autores dessa corrente.

O autor mais conhecido nessa linha moderada é Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e ex-presidente da República Federativa do Brasil. Sua obra mais conhecida não trata especificamente da questão social envolvendo os negros, mas, a meu ver, pode colaborar na reflexão que, há alguns parágrafos, estamos fazendo. Na publicação “Dependência e Desenvolvimento da América Latina”, FHC divergirá de autores contemporâneos da década de 1960, que defendiam para os chamados países subdesenvolvidos somente duas alternativas possíveis: uma revolução com o rompimento abrupto das chamadas relações de dependência com o imperialismo, ou uma política voltada para a produção e o desenvolvimento interno com medidas protetivas. Fernando Henrique, que foi aluno de Florestan Fernandes, defenderá a hipótese segundo a qual a relação de dependência não impede mecanicamente o desenvolvimento do dependente, isto é, o capitalismo internacional poderia ser utilizado como forma de atrair investimentos externos, modernizar o Estado e conduzir os “terceiro mundistas” ao desenvolvimento. Em sua obra, ele buscará evitar análises generalizantes sobre a América Latina e destacará as diferenças entre os países da região. Nesse caminho, esmiuçará exemplos como o do México que tinha – já naquele período – um histórico interessante de atração do capital externo.

Nessa altura do campeonato, o leitor talvez esteja pensando que fugi totalmente do tema, entretanto, essa compreensão se faz necessária pois é um indicativo de que mesmo os marxistas foram em algum momento obrigados a reconhecer que o capitalismo é a única forma conhecida de geração de riqueza, ou seja, é, no mínimo, um instrumento que aumenta a possibilidade da diminuição da pobreza que assola a maioria de pretos e pardos do país.

O leitor mais crítico ainda dirá que não é possível afirmar com segurança que as causas sociais suplantam as dificuldades raciais vividas por negros em nossa amada terra. No entanto, se analisarmos friamente os cenários que contaram com a instalação da política de cotas raciais perceberemos que são, em sua maioria, instrumentos de avaliação que desconhecem as características físicas do candidato, mas absorvem indiretamente suas adversidades sociais. Não entendeu? Explico: o sujeito que se submete ao vestibular no Brasil não é visto pelo corretor, este – por sua vez – apenas analisará as respostas do candidato e concluirá se estão erradas ou certas. Se as questões da prova forem alternativas, a correção é feita por uma máquina. Ou seja, o processo de seleção não poderia implicar uma desvantagem por conta do racismo ainda presente em nossa sociedade. Contudo, a precarização do ensino público e debilidade da formação cultural do candidato poderiam facilmente desembocar em uma reprovação.

O que fazer então? Bem, eu sempre defendi a possibilidade das cotas sociais. É verdade que elas já existem concomitantemente com as cotas raciais, contudo, acredito que a extinção das raciais em detrimento do aumento das sociais seria o cenário ideal (excetuando-se as particularidades que envolvem as cotas para índios e que mereceria um outro enorme artigo sobre o assunto). A permanência das cotas raciais aumenta a tensão racial e gera desconfiança em relação aos profissionais que se formam nesse contexto, como muito bem demonstrou o intelectual norte-americano Thomas Sowell no livro “Ações Afirmativas pelo Mundo”, no qual ele identificou esse padrão e diversos outros padrões negativos em países que adotaram medidas semelhantes ao longo do século XX para corrigir distorções, mas que acabaram criando uma série de embaraços e novos preconceitos. Esses foram os casos da Índia, Sri Lanka, Nigéria e Estados Unidos, que o autor analisou detalhadamente ao longo de sua obra.

Além disso, as cotas raciais geram distorções cruéis, como por exemplo, os inúmeros casos que se multiplicaram de comissões raciais criadas para analisar a fisiologia de candidatos em concursos públicos ou vestibulares que optassem pelo sistema de cotas. Em pleno século XXI, pessoas são colocadas diante de uma banca que analisará seus cabelos, tom de pele, textura dos lábios e o formato do nariz para concluir se elas são negras ou não. Essa barbaridade existe também na cidade São Paulo, medida criada na gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) e que venho combatendo por meio de projetos de lei e ações na justiça, mas que tem se tornado comum em universidades federais pelo país. Já não basta o racismo que a pessoa sofre ao longo da vida, agora é preciso que seja julgada, mais uma vez, pela cor da pele antes de poder se tornar funcionária pública ou alcançar uma vaga no ensino superior.

É evidente que essas medidas são pensadas para evitar fraudes e são feitas com boas intenções, entretanto, o resultado é cruel e repugnante. A ampliação das cotas sociais em detrimento da extinção das cotas raciais, excluiria essa problemática. A pobreza é um dado objetivo que pode ser analisado por meio da renda da família, assim como a escolaridade pública que é aferida pelo histórico. Além disso, esse sistema não seria nenhuma novidade e evitaria a humilhação pública dos candidatos. Por fim, o resultado social seria extremamente positivo, a maior parte dos beneficiados seriam aqueles que formam a maioria de pobres no país: os pretos e pardos. Com isso, se tornaria mais comum (como vem sendo com as cotas raciais) a presença de negros em lugares de destaque e no ensino superior, mas haveria uma diferença fundamental: não seriam julgados pela cor da sua pele. Dessa forma, não retrocederíamos aos portos brasileiros dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, onde negros eram avaliados fisicamente, como se fossem cavalos em leilão.

Espero ainda que fique inteligível que mesmo o cenário de cotas sociais não é o ideal, mas sim a inversão da pirâmide de investimentos educacionais, que hoje tem foco no ensino superior, enquanto renega o ensino básico. Isso gera a distorção de termos ricos estudando a vida inteira em escolas particulares e depois alcançando as vagas nas universidades públicas – que tem melhor qualidade por conta dos altos investimentos -, enquanto que os mais pobres estudam a vida inteira na escola pública com baixo investimento e pouca qualidade e, depois, se conseguirem, acabam majoritariamente em uma faculdade privada mais barata e de qualidade duvidosa. Enquanto o pobre, independente de sua cor, continuar a pagar os excelentes estudos dos mais ricos, as distorções permanecerão.

Em suma, espero que esse artigo permaneça por longos anos disponível no site dessa egrégia Câmara Municipal de São Paulo e que, com isso, eu possa contribuir de forma qualitativa com o debate público. Espero ter esclarecido áreas cinzentas de meu pensamento e, principalmente, rebatido as ideias sem embasamento e torpes defendidas por uma direita que emerge do lamaçal e a qual não me representa. Indubitavelmente algum dia esse artigo receberá duras críticas e tentarão rebater minhas aferições, que sei que são polêmicas. Contudo, espero que o leitor tenha compreendido a necessidade de eu ter feito diversas simplificações, devido à complexidade do assunto, o que implicou, necessariamente, em algumas imprecisões.

Espero um dia escrever um livro sobre o tema, para que, assim, as ideias fiquem mais claras e consistentes. Até lá, podendo ser este o meu último mandato, saberei que fiz o meu melhor.

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