Caminhos livres
Ações facilitam o acesso de deficientes visuais a lazer, transporte e outros direitos
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou Karine Seimoha, aluna do curso Repórter do Futuro
Camila Marinho, mãe de Enzo, é cega e “teve o filho nos braços” por duas vezes antes de ele nascer. Foi “indescritível” e “emocionante”, lembra. Grávida de nove meses no fim de outubro, quando falou à Apartes, a assistente administrativa havia ganhado modelos experimentais de um consultório particular, que imprimiu o ultrassom do feto em 3D, na forma de um boneco feito de resina. A impressão foi feita em dois momentos distintos da gestação e em tamanho real. “Parece extravagante, mas está embutido no conceito de acessibilidade que a mãe cega possa perceber o bebê em seu útero, já que as outras mães podem ver a imagem do ultrassom”, diz João Felippe, especialista em acessibilidade e mobilidade da Associação Laramara, centro de pesquisas e serviços ao indivíduo com deficiência visual de São Paulo.
“Existe muita diferença entre sentir o meu bebê e apenas ouvir os batimentos cardíacos dele”, conta Camila. A assistente foi pioneira de uma novidade que pode se estender a outras gestantes com a mesma deficiência que a dela. O Projeto de Lei (PL) 219/2015, da vereadora Patrícia Bezerra (PSDB), garante impressão de ultrassom em 3D a todas as grávidas cegas atendidas pela rede de saúde pública municipal. Um dos objetivos é ajudar a fortalecer o vínculo entre mãe e bebê, sem depender da descrição do médico sobre as feições, tamanho e sexo da criança. Para Camila, a ideia é ótima se, quando virar lei, não houver burocracia para as mães conseguirem seus modelos em três dimensões.
A impressão do corpo inteiro do feto custa cerca de R$ 3 mil, segundo o especialista em medicina fetal Heron Werner, um dos idealizadores da tecnologia em uma empresa incubada no Instituto Nacional de Tecnologia, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
SUPER-HERÓIS
Sem visão desde os sete anos, o advogado Carlos Alexandre Campos, consultor de acessibilidade do Memorial da América Latina, em São Paulo, diz que não precisa enxergar para sentir a expressão artística de uma pintura. “Arte é muito mais sentimento do que concretude”, define. No entanto, considera indispensável receber materiais de apoio para construir mentalmente as imagens que as demais pessoas podem ver. Por exemplo, réplicas em 3D ou bidimensionais e informações técnicas sobre as obras e o ambiente, transmitidas por braile ou audiodescrição.
“Quem nasceu sem visão, particularmente, não tem muitas referências de formas, cores, paisagens, fisionomias e pode se sentir frustrado se receber informações insuficientes para a sua compreensão”, explica Campos, que também é membro do Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência e coordenador da Pastoral das Pessoas com Deficiência da Arquidiocese de São Paulo.
Na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) tramita o PL 503/2015, do vereador Ari Friedenbach (PHS), segundo o qual os espaços culturais do Município devem adaptar suas obras de arte quando isso for necessário para que visitantes com deficiência também as sintam com “riqueza de detalhes”. Na justificativa da proposta, o parlamentar diz querer atender, principalmente, os 345 mil paulistanos cegos ou com grande dificuldade de visão. Segundo Friedenbach, experiências que explorem todos os sentidos podem oferecer “uma nova visão”, inclusive, a quem enxerga.
“É muito bom ter museu e teatro à disposição, mas a gente precisa conseguir chegar lá, ter uma boa acessibilidade no mobiliário urbano, para não ter a perna quebrada, por exemplo”, lembra Leonardo Ferreira, que é cego desde a infância e trabalha com tecnologia assistida na Laramara.
Bem diferente do Demolidor, super-herói cego da Marvel que desvia até de armas de fogo usando os sentidos restantes, Leonardo e a maior parte das pessoas com a mesma deficiência se locomovem fora do ambiente doméstico com várias dificuldades. O técnico já foi quase atropelado ao atravessar um semáforo sem sinalização sonora. Duas semanas antes da entrevista à Apartes, ganhou um hematoma na perna ao trombar no engate de um carro parado na calçada.
“Na maioria dos lugares tem calçadas extremamente esburacadas, com vasos ou mesas de bar em que a gente tropeça, portão que abre e você bate a cabeça, orelhão mal posicionado e um monte de obstáculos que nos impedem der ter uma vida mais saudável”, enumera Leonardo. “Aprendemos a nos proteger, mas a família tem um grau de apreensão”, desabafa. Para ele, já existe tecnologia suficiente para que a cidade seja mais inclusiva.
A locomoção pelo Município era ainda menos amigável antes de garantias aprovadas pela CMSP. A Lei 15.914/2013, idealizada pelo vereador Toninho Vespoli (PSOL), assegura às pessoas com deficiência o direito de descer dos ônibus municipais fora das paradas obrigatórias. Mais antiga, a Lei 11.250/1992, projeto de Edson Falanga, isenta de pagar tarifa no transporte coletivo paulistano quem tiver deficiências.
Além das conquistas no âmbito local, há direitos previstos na legislação nacional, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Um dos trechos da norma federal determina a instalação de piso com sinalização tátil em locais públicos com risco de acidente. Na capital paulista, a Prefeitura é obrigada a instalar nos postes, de forma gradual, placas em braile com os nomes das vias públicas. A determinação veio da Lei 15.898/2013, proposta pela vereadora Noemi Nonato (PROS).
PERCURSOS
Em tramitação na Câmara Municipal estão outros projetos de lei (veja infográfico abaixo) que visam melhorar a acessibilidade em São Paulo. O PL 171/2015, de Valdecir Cabrabom (PTB), prevê a cessão, pela Prefeitura, de um dispositivo para a pessoa com deficiência visual digitar a linha do ônibus que deseja utilizar. O número ficaria registrado em um painel luminoso no ponto, visível ao motorista. Na mesma linha, o PL 480/2014, de Cabrabom e Vavá (PT), determina que o Executivo instale, nos ônibus, dispositivos de aviso sonoro que sinalize ao passageiro deficiente a aproximação do veículo solicitado.
Os autores das propostas contam que prefeituras como a de Jaú (SP) adotaram, em toda a frota de veículos, a tecnologia que permite comunicação entre passageiro e motorista. “Essas propostas, que facilitam a mobilidade, são tão importantes, mas tão importantes, que eu não sei por que não estão funcionando em São Paulo, qual é a dificuldade”, questiona o técnico Leonardo, que já usou em Curitiba (PR) um sistema público de comunicação com os ônibus.
Quem utiliza táxi e quer levar um cão-guia pode ser beneficiado se o PL 134/2015, de Salomão Pereira (PSDB) e Rodolfo Despachante, transformar-se em lei. Os vereadores propõem regras para permitir a aplicação municipal desse direito, que já existe em legislação federal ainda não regulamentada. Os atendidos pela Laramara relatam uma evolução no tratamento pelos taxistas, que estão cada vez mais receptivos aos cães.
No entanto, na justificativa do projeto de lei, os autores afirmam que muitos taxistas têm sido punidos com multas, advertências e suspensão da Carteira Nacional de Habilitação por transportarem os cachorros. A ideia do PL é estabelecer uma regra clara aos motoristas de táxi, além de beneficiar outra categoria profissional, pois com a aprovação do projeto, espera-se que sejam criadas condições para profissionais treinadores de animais se especializarem.
Para os que se deslocam a pé, a sinalização sonora dos semáforos para pedestres pode ajudar muito. A falta desse recurso, que quase rendeu um atropelamento a Leonardo, é tratada no PL 528/2013, de Eduardo Tuma (PSDB). A proposta é que os semáforos sejam adaptados aos deficientes visuais e daltônicos, com alertas sonoros diferenciados para cada cor. Em 2013, apenas 0,03% dos semáforos para pedestres da cidade emitia sons de alerta, segundo levantamento da Laramara.
De carro ou a pé, se o destino da pessoa cega for um bar, restaurante, lanchonete ou hotel, poderá exigir cardápio em braile. A determinação está na Lei 12.363/1997, proposta por Domingos Dissei. O especialista e professor João Felippe, da Laramara, gostaria que mais restaurantes cumprissem essa obrigação e oferecessem, também, informações audiodescritas, já que muitos deficientes não sabem ler em braile.
POTENCIAL
Antes de atuar na Laramara, Leonardo Ferreira trabalhou no Corpo de Bombeiros, como auxiliar administrativo, e em uma administradora de planos de saúde. Na última empresa, não exerceu qualquer função. “Mesmo recebendo, com carteira assinada, saí de lá sem ter trabalhado um dia sequer”, conta o técnico. “Ao me contratarem, queriam apenas cumprir a lei de cotas, sem saber que uma pessoa com deficiência visual pode produzir tanto quanto uma pessoa com visão normal”, diz. As cotas mínimas de contratação de deficientes por empresas privadas, definidas em lei federal, deixarão de existir em janeiro de 2016, com a entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, sancionado em julho.
“Uma pessoa com deficiência visual pode fazer tudo o que uma pessoa de visão normal faz, excetuando-se o que exija controle visual permanente, apurado”, explica João Felippe. Portanto, o indivíduo cego ou com baixa visão pode e deve exercer a profissão que escolher. Na cidade de São Paulo, a segunda semana de dezembro é oficialmente dedicada a ações públicas e privadas para conscientizar indivíduos com deficiência visual sobre suas potencialidades profissionais.
A ideia é do vereador Paulo Frange (PTB), autor do projeto que estabeleceu a semana de conscientização. “Historicamente, essas pessoas ficaram excluídas dos diferentes contextos de participação social”, diz Frange na justificativa do projeto. “Desinformação, preconceito e ausência de marcos legais foram determinantes na formação desta conjuntura”, completa. Por leis aprovadas na CMSP, o Município ainda celebra o dia da independência das pessoas com deficiência visual, em 15 de outubro (proposta de Adolfo Quintas, do PSDB) e o dia do sistema de leitura braile (PL de Antonio Carlos Rodrigues).
Há 40 anos, a meta de João Felippe é mostrar que seus atendidos na Laramara têm obrigações e direitos, e que cabe também a eles promover a mudança que desejam na comunidade. O professor acredita que há uma novidade em curso, com uma abordagem diferente em relação à pessoa com deficiência e a circulação delas por diversos cenários, mesmo com barreiras físicas e sociais. “A transformação não está ocorrendo na quantidade e qualidade que gostaríamos, mas há uma melhora”, analisa.
No espaço de brinquedos da Associação Laramara, a equipe da Apartes encontrou às gargalhadas o controlador de acesso Fernando Lima e seu filho Yuri, de 2 anos, que brincava em um cavalinho com molas. Yuri tem baixa visão e outras deficiências associadas, mas o pai não vê qualquer diferença entre seu menino e as outras crianças: “Ele vai se desenvolver também, só vai demorar um pouquinho mais”.
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