Uma noite de femenagens
Criado em 2012, Prêmio Heleieth Saffioti destaca mulheres e entidades que lutam contra a discriminação
Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
A gente estava em 12 pessoas, porque eram só os estudantes que tinham dormido na ocupação. E chegaram dez viaturas da Polícia Militar. A gente entrou em desespero, tinha muita certeza que ia perder a ocupação. O diretor da escola destruiu nossas barricadas e conseguiu alcançar o pátio, onde eu estava. Olhei na cara dele e falei: “não tem arrego”. Ele veio na minha direção e deu um tapa na minha cara. Fiquei sem reação. Estava me sentindo um nada, porque um cara que se diz educador estava agredindo a aluna dele que lutava por educação. Não tem sentido. A polícia reprimiu com muito spray de pimenta e fechou a porta do pátio. A gente estava passando muito, muito mal. Aí os vizinhos, que viram que a escola estava sofrendo repressão, começaram a levar água para a gente. Foi a cena mais linda, de escola pública, mesmo: vizinho, professora, comunidade. Uma mãe, não sei de onde surgiu essa linda mãe, entrou na roda e começou a declamar uma poesia. A gente percebeu: nossa, recuperamos o bastão. Aí o sinal tocou e os policiais foram embora.
A autora da narrativa de violência e de luta que você leu acima é uma estudante de 15 anos chamada Lilith Cristina Passos Moreira, que contou essa história durante a 4ª edição do Prêmio Heleieth Saffioti, celebrada no Salão Nobre da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), em 28 de março. A respeito da agressão que teria sido cometida por um diretor escolar, a Secretaria de Estado da Educação foi procurada pela Apartes e preferiu não comentar, mas parabenizou a CMSP pelo prêmio.
A estudante tem orgulho de carregar o nome de Lilith, a primeira mulher de Adão, aquela que, segundo uma das tradições do judaísmo, teria sido expulsa do paraíso por não aceitar se submeter ao marido e que por isso é saudada como a “primeira feminista”.
Lilith foi escolhida para homenagear todas as estudantes que, no final do ano passado, ocuparam quase 200 escolas públicas e fizeram o governo estadual desistir de um projeto de reorganização que previa o fechamento de 93 escolas. Ou melhor: “femenagear”. É que, na noite da premiação, as integrantes da mesa preferiram usar uma nova palavra, para tirar o “homem” do verbo e deixar claro que a celebração era delas.
Lilith conta que a presença feminina foi central no movimento contra o fechamento das escolas: “a linha de frente das ocupações era só de meninas”. Isso porque elas tinham mais motivos por que brigar. “A gente é que tinha mais indignação, por ser mulher, pobre, muitas vezes negra, e por ter que aguentar todo dia um professor machista dizendo ‘você não pode usar regata, porque provoca os meninos’”, conta.
Neste ano, o Prêmio Heleieth Saffioti buscou reunir no mesmo evento duas gerações de feministas. Além de Lilith, a premiação também femenageou o Centro Informação Mulher (CIM), surgido em 1979 com “a intenção de acumular, acervar, registrar a história da vida e luta das mulheres, já que a mulher não consta da história da humanidade”, conforme explica a artista e militante Marta Baião, presidenta do CIM.
No seu resgate da memória, o CIM montou um acervo de documentos sobre a história do feminismo, com aproximadamente 15 mil livros e 5 mil títulos de periódicos. Além da memória, o CIM também acolhe a arte, por meio do grupo de teatro Mal Amadas Poéticas do Desmonte, que usa a linguagem teatral para falar de feminismo.
Marta levou suas colegas do Mal Amadas ao Salão Nobre na noite de femenagens, onde, juntas, com pandeiros e panelas, dançaram e cantaram sobre luta e identidade feminina: “essa vida pacata passou, não quero mais essa dor, eu não aceito essa dor”.
PRÊMIO
O Prêmio Heleieth Saffioti foi criado em 2012, nos 80 anos de instauração do voto feminino, pela Resolução 2/2012, de autoria da vereadora Juliana Cardoso (PT), e se propõe a femenagear “as mulheres ou entidades de mulheres que tenham se destacado em ações de combate à discriminação social, sexual ou racial e na defesa dos direitos das mulheres no Município de São Paulo”. A criação da honraria foi sugerida pela União das Mulheres.
As premiadas são escolhidas por uma comissão julgadora formada por representantes da Comissão de Direitos Humanos e da Comissão de Saúde, Promoção Social, Trabalho e Mulher, ambas da CMSP; do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública paulista; da União de Mulheres de São Paulo; do CIM; da Marcha Mundial das Mulheres e da Articulação Popular e Sindical de Mulheres Negras. “É um prêmio no qual nós tentamos estimular cada vez mais o movimento de mulheres e todas as organizações sociais para que elas continuem realizando seus trabalhos”, afirma Juliana Cardoso.
O nome do prêmio femenageia a pesquisadora, escritora e militante Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, falecida em 2010, aos 76 anos. A advogada Maria Amélia Teles, a Amelinha, da União das Mulheres, afirma que a figura de Heleieth remete à luta pelos direitos femininos como um meio de combate a todas as formas de opressão.
Uma ideia que nem sempre foi compreendida. Nos anos 70, quando os movimentos feministas ganharam força no Brasil, as mulheres tinham que combater não apenas a opressão da sociedade patriarcal e a ditadura militar, mas também a incompreensão de seus colegas de militância. “A esquerda na época era antifeminista, porque considerava a luta das mulheres um desvio no caminho da luta de classes”, explica Amelinha.
Formada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), Heleieth tratou de mostrar, em seus livros, que a luta de todos e todas era uma só. Em A mulher na sociedade de classe: mito e realidade, tese de livre-docência escrita para a Universidade Estadual Paulista (Unesp) em 1966 e publicada como livro em 1969, a pesquisadora introduziu no debate brasileiro a teoria do nó, que via os problemas de classe social, etnia e gênero como questões atadas umas às outras, de tal jeito que não se mexe com uma sem que se mexa com as demais “Heleieth defendia que a luta da mulher só pode caminhar abraçada à luta contra o racismo e pela igualdade social”, explica Amelinha.
Heleieth foi professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde criou um núcleo de estudos de gênero. Também recebeu o título de professora emérita da Unesp de Araraquara, onde se aposentou. Morreu em 14 de dezembro de 2010, de hipertensão arterial sistêmica.
Amelinha diz que, se estivesse por aqui, Heleieth teria ficado muito feliz ao testemunhar a explosão dos movimentos feministas ocorrida no ano passado, que revelou os rostos de Lilith e tantas outras feministas adolescentes. “Heleieth teria adorado ver como os feminismos brasileiros se renovaram e hoje estão mais vivos e jovens do que nunca”, afirma.
As ganhadoras do prêmio |
2016Lilith Cristina Passos Moreira e
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2015
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2014
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2013
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