Nº04 – História

Nomes de guerra

Em 1897, o conflito de Canudos, no sertão baiano, fez a Câmara mudar os nomes de seis ruas do centro de São Paulo

Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br

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MUDANÇA – Entre 1897 e 1899, a Rua Direita chamou-se Floriano Peixoto

Guilherme Gaensly/Arquivo Público do Estado de São Paulo

Não se falava em outra coisa. Em 1897, a guerra do Exército brasileiro contra um arraial pobre do sertão baiano era tema de tudo quanto fosse roda de conversa. “É um zunzum que ensurdece, / Um vaivém que nos põe mudos, / Desde que o dia amanhece / Até que acaba: – Canudos!”, escreveu um poeta no jornal A Bahia. Políticos e intelectuais de todas as tendências debatiam o conflito nas tribunas e nos jornais, editoras vendiam mapas do arraial “nitidamente litografados” e lojas, em seus anúncios, usavam o nome Canudos para vender de sapatos a vestidos de seda.

Os habitantes do arraial, comandados pelo líder religioso Antônio Conselheiro, já haviam rechaçado duas pequenas expedições enviadas para combatê-los, entre outubro de 1896 e janeiro de 1897. Mas o que fez o pânico se espalhar por todo o País foi a derrota da terceira expedição, uma força de 1.300 homens comandada por um dos heróis do Exército republicano, coronel Moreira César, o Corta-Cabeças.

Em 10 de março, seis dias após a morte de Moreira César em Canudos, a guerra virou assunto na Câmara Municipal de São Paulo. Além de suspender sessão e fazer voto de pesar, os vereadores decidiram alterar os nomes de seis ruas do centro para homenagear militares mortos em Canudos e heróis da República da Espada.

“Deante do inesperado acontecimento que acaba de enlutar a Patria Brazileira e o glorioso exercito nacional, pela morte de seus bravos soldados no combate com as hordas monarchistas nos sertões da Bahia, indicamos que a Camara Municipal de S. Paulo suspenda a sessão de hoje, lançando na acta um voto de pesar e protesto ao chefe da nação, por intermédio do presidente [equivalente a governador] d’este Estado, a sua franca solidariedade e apoio incondicional em todos os terrenos em prol da Republica”, afirmaram os vereadores (grafia da época).

Nem tão heroicos

Antes do encerramento dos trabalhos, a Câmara aprovou a mudança dos nomes das Ruas Direita (rebatizada Marechal Floriano Peixoto) e São Bento (Coronel Moreira César), duas das mais conhecidas vias de São Paulo. Na sessão seguinte, no dia 17, o Plenário aprovou propostas dos vereadores Gomes Cardim, Alfredo Zuquim e Roberto Penteado que rebatizavam as Ruas do Quartel (que virou Cabo Roque), João Alfredo (General Carneiro), da Esperança (Capitão Salomão) e das Flores (Coronel Tamarindo), “em homenagem aos patriotas e heroicos soldados assassinados covardemente na cruzada de Canudos, defendendo a Republica”.

CAPTURADO – Soldados do Exército levam prisioneiro para execução

Flávio de Barros/Museu da República

Nem todos os “patriotas e heroicos soldados” homenageados pela Câmara eram tão heroicos assim. O próprio Moreira César não ganhara o apelido Corta-Cabeças por ser um defensor dos direitos humanos. Ao contrário, era um militar cuja “bravura cavalheiresca” esvaía-se “na barbaridade revoltante”, segundo Euclides da Cunha em Os Sertões. Quando foi capitão, participou do linchamento de um jornalista, Apulcro de Castro. Anos depois, encarregado de reprimir duas rebeliões contra o governo Floriano Peixoto (a Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, em Santa Catarina), ficou conhecido pelas execuções de inimigos indefesos.

Em Canudos, muito do fracasso da expedição foi culpa do salto alto com que o coronel entrou na batalha, desprezando os inimigos ao ponto de dizer “vamos almoçar em Canudos” para seus comandados pouco antes de invadir o arraial. O coronel Tamarindo, que assumiu o comando da terceira expedição após a morte de Moreira César, entrou para a história ao falar, diante da batalha perdida, outra frase memorável: “É tempo de murici, cada um cuide de si…”.

Já o Cabo Roque era celebrado como o herói que teria sido morto enquanto protegia o cadáver de Moreira César dos jagunços de Canudos. O heroísmo durou até o cabo ser descoberto, muito vivo, e confessar que, durante o conflito, havia simplesmente largado o corpo do comandante no mato e saído correndo, “vítima da desgraça de não ter morrido, trocando a imortalidade pela vida”, nas palavras de Euclides da Cunha. O personagem teria inspirado o dramaturgo Dias Gomes a criar o Cabo Jorge, protagonista da peça O Berço do Herói, de 1963, um personagem que passa a ser considerado herói após ser falsamente dado como morto. Em 1985, Dias Gomes reaproveitaria o mesmo mote na trama da sua telenovela Roque Santeiro. Por outro lado, ninguém até hoje desmentiu a história do martírio do Capitão José Salomão da Rocha, que “tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara”, também segundo Euclides da Cunha. Tanto que seu feito é lembrado em um verso da Canção da Artilharia do Exército: “Abraçado ao canhão morre o artilheiro”.

Os outros dois homenageados pela CMSP nunca pisaram em Canudos, mas foram lembrados como símbolos da República da Espada (1889-1894), período em que o recém-proclamado regime republicano, comandado por militares, esmagou uma série de revoltas contra o governo federal. O símbolo dessa fase foi o marechal Floriano Peixoto, segundo presidente do Brasil (1891-1894). Os soldados que enfrentavam Canudos, segundo Euclides da Cunha, “tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória”. O outro homenageado, general Gomes Carneiro, foi encarregado por Floriano de combater a Revolução Federalista no Paraná, onde morreu resistindo, com 600 homens, a um cerco de mais de 3 mil revoltosos, no episódio conhecido como Cerco da Lapa.

O fim de canudos

SOBREVIVENTES – Mulheres e crianças aprisionadas em Canudos

Flávio de Barros/Museu da República

Chama atenção o modo como a primeira alteração nos nomes das ruas, em 10 de março, foi realizada. A pedido do vereador Gomes Cardim, as mudanças foram aprovadas sem debate, “pois que sua discussão pareceria pôr em duvida os sentimentos republicanos da Camara”. Não havia ambiente para questionamentos. O clima era de guerra.

Como relata a pesquisadora Walnice Nogueira Galvão em No Calor da Hora, várias matérias jornalísticas  retratavam Canudos como um grupo com ramificações em Nova York e Paris que pretendia restaurar a monarquia no Brasil e pediam sua destruição. Canudos era “uma horda de mentecaptos e galés”, segundo Rui Barbosa, considerado o principal intelectual brasileiro, ou uma “vergonha que cumpre extinguir de pronto”, de acordo com um manifesto de acadêmicos baianos. “Em Canudos não ficará pedra sobre pedra”, prometia o presidente da República, Prudente de Morais.

A promessa foi cumprida com o envio, em abril, de uma quarta expedição contra Canudos, com mais de 5 mil homens, comandados pelo general Artur Oscar. Em outubro, já haviam destruído o arraial. Não houve rendição. O conflito acabou quando os soldados mataram os últimos defensores de Canudos: um velho, dois adultos e uma criança. “E assim, com essa mobilização geral da opinião feita pelos jornais, acompanhando as operações bélicas, a Guerra de Canudos foi, afinal, ganha e o arraial arrasado a dinamite e querosene juntamente com quem não quis se render. Os prisioneiros foram todos degolados, restando apenas algumas poucas centenas de mulheres e crianças que foram dadas de presente ou vendidas. A República estava salva”, resume Walnice.

Com o fim de Canudos, alguns dos setores que haviam pedido a destruição do arraial começaram a perceber que, da mesma forma como muitos militares não foram os heróis que se imaginava, os canudenses também não eram o grupo de conspiradores interessados em derrubar a República que a mídia e os políticos haviam retratado. O arraial era apenas uma comunidade de gente pobre, que, embora houvesse crescido a ponto de virar a segunda maior cidade da Bahia, mantinha-se à margem de todos os poderes da época, fosse do Estado, da Igreja ou dos grandes fazendeiros – e que talvez por isso incomodasse tanto.

Favelas

Os vereadores de São Paulo voltaram a tratar de Canudos na sessão de 27 de outubro, quando Roberto Penteado propôs “um voto de congratulação com o general Arthur Oscar, pela victoria de Canudos, com as forças em operações e com o brioso 1º batalhão de S. Paulo pela bravura com que revelou o seu patriotismo”. Dessa vez não houve a mesma unanimidade. Vereadores propuseram que a congratulação fosse feita à “Patria Brazileira” e a “todos os altos poderes da nação”. Sem acordo, a discussão foi retomada na sessão seguinte, em 3 de novembro, quando o vereador João Bueno afirmou que, “quando se iniciou a questão, teve que manifestar o seu descontentamento contra a degolação dos prisioneiros em Canudos, e que nessa occasião apresentou emenda para que a Camara se manifestasse contra esses factos”. O mesmo parlamentar, contudo, retirou a tal emenda, por entender que cabia ao governo “syndicar os fatos” e propôs, em seu lugar, uma congratulação “com o Paiz pela victoria da guerra em Canudos, trazendo a paz aos brasileiros”. Novamente, não houve acordo e a votação acabou adiada.

GUERRA – Soldados reconstituem captura de canudenses para fotógrafo Flávio de Barros

Flávio de Barros/Museu da República

O desconforto com que os vereadores retomaram a questão de Canudos fazia parte de um processo de mudança na mentalidade da “consciência letrada” do País, que, após o massacre do arraial, “termina reconhecendo os jagunços (como eram chamados os canudenses) como compatriotas e a guerra como fratricida”, segundo Walnice. O auge desse “mea-culpa” é a obra-prima Os Sertões, publicado em 1902, em que o jornalista Euclides da Cunha relata as execuções de sertanejos prisioneiros, sobre as quais ele mesmo havia silenciado em sua cobertura para o jornal O Estado de S.Paulo, e afirma que a campanha de Canudos “foi, na significação integral da palavra, um crime”. Para as vítimas, porém, protestos como os de Euclides ou do parlamentar João Bueno, além de ocorrerem tarde demais, nunca levaram a qualquer punição.

Das seis mudanças de nome feitas pela Câmara em 1897, apenas duas perduraram – a General Carneiro e a Capitão Salomão. Situação parecida ocorreu no Rio de Janeiro, que na mesma época rebatizou a Rua do Ouvidor como Moreira César, nome que também não pegou. Houve, porém, um nome originado de Canudos que atravessou o século, levado por antigos soldados da Guerra que foram morar no Rio de Janeiro. Descartados pelo Exército após a batalha, os antigos combatentes subiram em um morro para ali erguer casebres onde pudessem morar. Em homenagem a um morro de Canudos, batizaram o local de Favela. O nome “favela” se espalhou pelo País e passou a designar conjuntos de habitações precárias das cidades que, ao longo das décadas seguintes, algumas autoridades tratam do mesmo jeito que trataram Canudos – com a mesma brutalidade e, quase sempre, com impunidade.

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SAIBA MAIS

Livros

A Dinâmica dos Nomes na Cidade de São Paulo. Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick. Annablume, 1997.

No Calor da Hora. Walnice Nogueira Galvão. Ática, 1974.

Os Sertões. Euclides da Cunha. Várias editoras.