Médico dos ricos, voz dos pobres
Aos 50 anos e com carreira consolidada, ele se tornou vereador para denunciar os abusos do governo em plena ditadura
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Ephraim de Campos formou-se em Medicina em 1940 e logo abriu um consultório que renderia bastante dinheiro e o tornaria bem conhecido no bairro da Lapa, na zona oeste da capital paulista. A clínica virou um pequeno hospital, onde, com a esposa Lygia, atendia pacientes que podiam pagar e também quem não tinha condições. Bom ouvinte, recebia operários e operárias, além de gente rica. Certo dia, durante a ditadura militar, uma professora aflita chegou contando que a polícia havia prendido e estava torturando um menino de 14 anos.
O médico foi ao Departamento de Ordem e Política Social (Dops), a polícia de inteligência e repressão aos opositores do regime militar, e ouviu do delegado: “agora tudo pode, fazemos o que queremos”. Presbiteriano, achou que era seu dever denunciar a violência. Levou a sério a missão e resolveu concorrer a vereador. Foi eleito em 1968 para a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP).
Três anos depois, voltou ao Dops, detido exatamente por conta de um discurso feito em Plenário no dia 5 de maio de 1971, quando leu um manifesto sobre o Dia dos Trabalhadores assinado por 25 sindicatos paulistanos. “Entre os anos de 1965 e 1968, como os salários não foram reajustados na mesma proporção da elevação do custo de vida, sofremos um prejuízo da ordem de 35% a 45%, conforme a região geoeconômica”, dizia a carta. Outro trecho do texto pedia reforma agrária.
Na sessão de 22 de março de 1972, em uma fala que o Dops considerou “incriminada”, criticou o prefeito paulistano José Carlos de Figueiredo Ferraz por acabar com incentivos fiscais para os que tinham apenas uma residência na cidade: “se Sua Excelência lançasse 300% ou 200% em cima de mim, que sou filho de família rica, que nasci em berço de ouro sob dossel azul, estaria muito certo. Mas lançar às costas dos moradores da Vila Pirituba, da Lapa, da Vila Romana o aumento de 100% é com o que não concordo”.
Vereador pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de 1969 a 1972, o forte de Ephraim foi mesmo sua voz. Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo mostrava que o médico havia sido um dos cinco vereadores mais atuantes na Tribuna da CMSP em 1971, segundo levantamento do próprio Legislativo.
Os frequentes discursos do parlamentar, ricos em dados e números, eram geralmente alinhados com as ideias do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e “difundidos pela direção do Partido entre suas organizações de base e comitês”, como aponta registro do Dops. Por ser obrigado a atuar na ilegalidade, o Partidão, como era chamado, buscava eleger seus representantes em outros partidos: nos anos 70, a opção era o MDB, legenda de oposição à ditadura tolerado pelo governo. No caso de Ephraim, havia um acordo com os comunistas, que previa apoio ao médico nas eleições em troca de contribuições de metade dos vencimentos como vereador e um trabalho político, na Câmara, em conformidade com a linha comunista. “E, de fato, eleito, adotou uma política de acordo com os interesses do Partido, (…) proferindo discursos integrados na linha do PCB”, menciona um documento do Dops publicado no Projeto Brasil Nunca Mais.
Quem orientava Ephraim sobre o que deveria ser dito era Moacir Longo, dirigente paulistano do Partido Comunista à época. “Ele seguia as orientações do PCB nos discursos usando a linguagem do MDB, mas o mandato era pautado pelas próprias iniciativas dele, era uma pessoa preparada”, explica Longo. “Ephraim teve uma atuação muito boa na Câmara; era muito respeitado não só pelo comportamento político, mas como pessoa, muito afável, doce, de relação excelente com os colegas”, completa.
COMUNISTA NA CÂMARA
“Antes do golpe militar no Brasil, Ephraim não era propriamente militante, era simpatizante contribuinte do PCB, aparecia em alguns atos e dava contribuição mensal”, conta Moacir Longo, eleito vereador de São Paulo em 1963, mas que teve o mandato cassado no ano seguinte pelos militares.
A única ligação prévia com o mundo político que ficou na lembrança do filho Ephraim de Campos Júnior é que o pai era seguidor do ex-interventor paulista, ex-governador e ex-prefeito Ademar de Barros. Uma menção do Dops confirma essa afirmação: em 1958, um informante da polícia teria dito que Ephraim era representante do Partido Social Progressista (PSP, a sigla de Ademar) na Lapa e havia participado com o ex-prefeito da inauguração de iluminação pública de várias ruas naquele bairro. O curioso é que, embora Ademar tenha se aliado ao PCB no começo da sua vida política, depois adotou uma forte retórica anticomunista e teve papel importante na articulação do golpe de 1964.
Em 1968, Ephraim filiou-se ao PCB, do qual se tornou um dos diretores na capital. “Era muito lúcido, ajudava muito nas discussões com suas opiniões”, diz Longo. Algumas das reuniões clandestinas dos comunistas chegaram a ser feitas em locais cedidos pelo próprio médico, no litoral paulista e na Rodovia Raposo Tavares. Ainda assim, mantinha a discrição sobre suas atividades políticas, mesmo em família. Júnior recorda de o pai ter dito, apenas uma vez, que a “moçada da luta armada ia se arrebentar”, ao criticar a resistência com armas contra a ditadura. Em casa, o assunto era quase unicamente Medicina, já que Ephraim e a esposa, Lygia Lucia de Campos, eram profissionais da área e ex-colegas da Universidade de São Paulo (USP).
Ele vivia intensamente sua profissão e fazia dinheiro desde que terminou a faculdade. “Naquela época, a medicina particular tinha mais renda, o médico de bairro tinha uma remuneração enorme e ele era um médico tradicional, respeitado na Lapa”, diz o vereador Gilberto Natalini (PV), que ainda estudava Medicina quando esteve preso com Ephraim.
O médico comunista também atendia em postos de saúde públicos. Num inquérito do Dops, há uma declaração assinada em 29 de novembro de 1972 pelo então prefeito de Cajamar (região metropolitana de São Paulo), Juvenal Ferreira dos Santos, na qual descreve a falta que Ephraim estava fazendo à população desde que fora detido: “este município necessita de seus serviços profissionais, pois atende gratuitamente, em cada vez que vem, cerca de 30 crianças, filhas de pessoas pobres que não têm condições de pagar um médico”. Segundo o documento, nenhum outro profissional queria assumir a vaga por causa da dificuldade de acesso.
“Ephraim não precisava de política, veio trazer o partido comunista para dentro da Câmara Municipal”, analisa Natalini. Ephraim Júnior concorda: “meu pai ganhou muito dinheiro com a Medicina, era rico, entrou na política por acreditar no que estava fazendo”. Edu, como Ephraim era chamado pelos comunistas para esconder sua verdadeira identidade, introduziu o PCB na Câmara por causa de um convite feito pelo partido. “Ele era uma pessoa limpa, até então sem prontuário no Dops como subversivo, por isso o partido comunista decidiu conversar com ele para ver se aceitaria disputar eleição pelo MDB”, lembra Moacir Longo.
A eleição de 1968 seria mais concorrida do que a anterior, porque o número de cadeiras na CMSP havia caído de 45 para 21 graças à Constituição Federal de 1967. Assim, a estratégia do PCB foi concentrar todos os esforços na candidatura do médico. “Para nossa surpresa, naquele quadro de dificuldade, com muitos militantes recuados e outros presos, Ephraim teve uma votação surpreendente”, recorda-se Longo. O médico contou com o expressivo apoio de 20.597 eleitores. Para se ter uma ideia, nas eleições de 2016 cinco vereadores eleitos tiveram menos votos, sendo que hoje a cidade tem o dobro do número de habitantes em relação àquela época.
Enquanto foi vereador, Ephraim trouxe à vida pública pelo menos um importante político contemporâneo: o ex-governador de São Paulo Alberto Goldman, então militante do PCB. “Ele foi um dos responsáveis pelo meu primeiro resultado eleitoral (a vitória como deputado estadual pelo MDB em 1970), que me permitiu começar a carreira política. Inesquecível”, conta Goldman.
MEMÓRIAS DOLORIDAS
Por causa da política, Ephraim foi detido nove vezes e passou 110 dias na cadeia. A detenção mais violenta foi em 15 de agosto de 1972, quando o levaram do Plenário da Câmara acusado de subversão, por alegadamente pertencer aos quadros do PCB. “Injetaram pentotal sódico, a droga da verdade, em meu pai para que confessasse alguma coisa comprometedora”, diz Ephraim Júnior, que é advogado. O filho acredita que os procedimentos de tortura contribuíram para que o pai tivesse demência senil aos 62 anos de idade. “Na saída do Presídio Tiradentes (hoje extinto), estava bastante arrebentado, gasto, puído, não foi mais o mesmo”, lamenta.
Segundo relato de Natalini, detido na cela em frente à de Ephraim, o então vereador ficou muito machucado e sofreu mais por ser mais velho que a maioria dos outros presos políticos. “Parece que tinham pisado no peito dele, quebrado costelas; era a notícia que corria por lá”, relembra. Natalini também conta que, nos intervalos entre as torturas e os banhos de sol, Ephraim jogava xadrez “por telepatia” com um colega de outra cela, para matar tempo.
Júnior teve que ajudar o pai procurando amigos advogados e políticos para “não deixar sumirem com ele”. Para evitar a tragédia, a luta era no sentido de que os militares ao menos assumissem que tinham levado o parlamentar. Apesar de terem sido bastante afetados pela situação, os filhos Júnior, seu irmão mais novo, Joaquim, e a irmã mais velha, Lídia, jamais questionaram por que o pai entrou para a política, já que tiveram uma criação rígida. Nem a mãe, Lygia Lucia de Campos, conseguiu interferir. “Naquela época, as mulheres não tinham voz ativa, choravam muito e pediam, sem adiantar… Era um desespero”, diz Júnior. Entre suas memórias doloridas, está a de ter queimado a obra completa de Karl Marx, que pertencia ao pai, para que os militares não a encontrassem enquanto Ephraim estava preso.
Outro esforço de Júnior foi ter ajudado o pai a criar um texto em que afirmava só ter tido prejuízos com a entrada na vida pública. O objetivo era despistar os militares. “Nos anos que restam da minha vida desejo equilibrar meus negócios particulares, que sofreram rude golpe desde que me meti nessa política, isto é, desde o primeiro semestre de 1968”, aponta um trecho da carta escrita a mão. Afirmou, ainda, que abriria mão de voltar a falar na Tribuna da Câmara ou a jornalistas.
Apesar de ter sido feita sob pressão, a promessa começou a ser cumprida em 15 de setembro de 1972, com a primeira de uma série de afastamentos da Câmara, solicitados pelo vereador. Seis dias antes, O Estado de S. Paulo publicou um ultimato dado pelo presidente da CMSP, Carlos Eduardo Sampaio Dória: “Se não chegar à Câmara Municipal pedido de licença do vereador Efraim de Campos, do MDB, a Mesa do Legislativo paulistano convocará o suplente da bancada (…), [atitude] necessária para regularizar a situação anômala criada em Plenário e nas comissões técnicas, desde que Efraim foi preso por autoridades policiais”. Efraim, grafado com efe, era o nome parlamentar adotado pelo médico, que durante todo o mandato presidiu a Comissão de Higiene e Saúde Pública da CMSP e foi vice-presidente ou membro da Comissão de Finanças e Orçamento. Suas ausências dificultavam as deliberações nessas importantes comissões e deixavam o MDB desfalcado nas votações em Plenário.
Antes de retornar das licenças, atribuídas a “assunto particular”, Ephraim deixaria de vez o Legislativo. Em 15 de dezembro de 1972, o presidente Sampaio Dória leu no Plenário a carta em que o comunista se despedia da Câmara: “Com o fim de formalizar a reversão ao serviço público, comunico a Vossa Excelência que renuncio ao mandato de vereador, visto que já estou licenciado do mesmo até seu término”.
FINAL DA LUTA
Um inquérito do Dops mostra que, nos interrogatórios militares, o médico era retratado por colegas de militância como um oposicionista à ditadura, mas sem vínculos partidários profundos. A ideia dos companheiros era poupar o vereador para que ele pudesse concorrer à reeleição e representar os comunistas por mais quatro anos na Câmara Municipal.
Diminuir o papel de Ephraim no PCB teria facilitado sua absolvição no mesmo processo que também condenou Longo e outro companheiro de partido, Alberto Negri. “Os policiais percebiam que ele não era comunista casca grossa, e não era mesmo; só cumpriu bem uma tarefa num determinado momento, mas sem essa militância que normalmente o pessoal que ia preso na época tinha”, explica Longo. Mesmo nas fases de maior envolvimento com a legenda comunista, o médico seguia dividindo seu tempo com o trabalho. “Efraim de Campos somente não tem tarefas maiores no PCB porque sua vida pública toma muito tempo, bem como sua clínica”, disse Negri ao Dops, em julho de 1972.
Companheiros de militância e militares já contavam com uma segunda candidatura e vitória de Ephraim. Uma ficha do Dops contém a seguinte anotação, após depoimento de Negri: “O vereador Efraim de Campos realmente foi eleito e será reeleito por ser bastante conhecido no PCB e contribuir sempre com importâncias em dinheiro para o PCB e para a despesa de presos políticos que estão sendo processados”.
Em outro documento, os agentes do Dops relatam a confissão do próprio vereador sobre suas intenções: “Ephraim de Campos confirma ter entregue a Alberto Negri, desde janeiro de 1972, diversas contribuições, porque ‘havia contratado com ele a impressão dos seus discursos na Câmara de Vereadores, assim como de volantes de propaganda eleitoral’”. O Dops ainda ressaltou que os panfletos da campanha de Ephraim faziam críticas a atos do governo.
Para garantir que a reeleição não se concretizasse, a Justiça Eleitoral impugnou a nova candidatura de Ephraim no dia 3 de outubro de 1972, mesma data em que ele foi preso novamente. As eleições ocorreram em 15 de novembro, sem que o médico pudesse concorrer. Ele, aliás, jamais voltaria a tentar um cargo público. Em 1985, recebeu a Medalha Anchieta e Diploma de Gratidão da Cidade, concedidos por iniciativa do vereador Luiz Tenorio de Lima. Na cerimônia, foi lida uma frase dita por Ephraim quando voltou integralmente para a Medicina: “Agora há liberdade. Eu não preciso mais falar, pois há muita gente pra falar. É a vez de a mocidade continuar nossa luta”.
Longe da política, Ephraim mudou-se para o sossego de Águas de Lindoia, no interior do Estado de São Paulo. Em dezembro de 1995, aos 78 anos, morreu de pneumonia e insuficiência respiratória. Para Júnior, naquele momento o pai estava “reduzido a uma sombra do homem de grande capacidade intelectual que era”, por causa das torturas que afetaram sua mente. Outras marcas, porém, ficaram na história de Ephraim de Campos. Uma delas foi a resistência e a ousadia com que expôs os ideais comunistas ao longo de quase quatro anos como vereador, sob a vigência do Ato Institucional nº 5, que deu início ao período mais rígido da ditadura militar.
SAIBA MAIS
Site
Brasil Nunca Mais Digital – bnmdigital.mpf.mp.br