Do papel para sua vida
Como é o caminho dos projetos de lei, que servem também para debater ideias e levantar bandeiras
Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Montagem sobre fotos de Gute Garbelotto/CMSP (terminal) e Ana Paula Hirama/Flickr (cidade de SP)
Fazer lei não se aprende na escola. Nem mesmo nas escolas de leis, os cursos de direito. “O processo legislativo é um ilustre desconhecido. Não é disciplina em nenhuma faculdade. A academia só se preocupa com o que vem depois da lei, não antes”, analisa o procurador-chefe da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), Paulo Augusto Baccarin.
Então, os vereadores, escolhidos pela população para construir as leis da cidade de São Paulo, precisam aprender a fazer isso na prática. É uma tarefa tão complexa que pega os recém-chegados de surpresa. “A Câmara Municipal surpreende qualquer um”, afirma o vereador Jean Madeira (PRB), que vive seu primeiro mandato. “A gente chega achando que é só sentar diante do computador, escrever um projeto de lei (PL), protocolar e mudar o mundo. Mas é muito mais complicado do que isso”, conta.
Para fazer seu trabalho, os vereadores contam com o auxílio tanto dos funcionários dos gabinetes, escolhidos pelos próprios parlamentares, como da equipe técnica da CMSP, formada por servidores concursados. “A Câmara tem bons funcionários, que esclarecem todas as dúvidas de pronto. Quem é marinheiro de primeira viagem aprende a navegar”, diz Madeira.
PONTOS DE PARTIDA
Há vários portos possíveis para começar essa viagem. A ideia de um projeto pode nascer, por exemplo, de uma experiência pessoal do legislador. Madeira conta que um de seus projetos surgiu quando brincava com a filha de 11 anos no Parque Ibirapuera e percebeu que a menina, criada em apartamento, tinha nojo de pisar na grama. “Pedi para ela ficar descalça e brincamos com bola de gude, pião, pipa, ioiô. Ficou apaixonada. Não sabia que existia esse tipo de brincadeira, porque na escola as crianças só ficam no Whatsapp. Isso é ruim, pois pai e filho perdem o contato humano”, conta. Veio daí a inspiração para o vereador apresentar o projeto que criou a Lei 16.007, de 2014, que instituiu a Semana do Brincar como Antigamente, com o objetivo de incentivar as brincadeiras tradicionais na rede municipal de ensino.
Se uma experiência pessoal às vezes resulta em um projeto, é da conversa entre vereadores e população que surge a maioria das ideias para as leis. “Temos duas salas de reunião no gabinete e passamos o dia ouvindo as pessoas para criar os projetos de lei com base nas demandas que recebemos”, afirma Madeira. Outro vereador de primeiro mandato, Toninho Vespoli (PSOL), segue a mesma estratégia: “Noventa e nove por cento dos nossos projetos nascem do diálogo com a sociedade civil”, aponta.
PROJETO – Jean Madeira (no destaque, com a esposa Vanessa e a filha Amanda) promove a Semana do Brincar como Antigamente
Fotos: Erik Teixeira/Assessoria vereador Jean Madeira
Além das conversas com os vereadores, a população tem outros meios para enviar sugestões de projetos à Câmara. Um deles é a Ouvidoria, via telefone, internet ou pessoalmente (veja na pág. 33), que encaminha as mensagens para as lideranças dos partidos e para um banco de dados com ideias para leis. Entidades civis, como sindicatos, órgãos de classe, associações e organizações não-governamentais (ONGs), também podem protocolar, nas comissões, requerimentos sugerindo projetos de lei. Nesses casos, é bom lembrar, trata-se de sugestões dos eleitores, que os parlamentares não têm obrigação legal de transformar em projetos.
Outra possibilidade de nascimento de uma lei é a apresentação, por qualquer pessoa ou entidade, do seu próprio PL. Neste caso, a proposta irá tramitar pela Casa igual aos projetos apresentados pelos parlamentares. O caminho é apresentar o chamado “projeto de iniciativa popular”, reunindo as assinaturas de 5% do eleitorado paulistano – que corresponde atualmente a quase 440 mil pessoas, número maior do que a população de 98% das cidades paulistas. Para facilitar a participação popular, um projeto de emenda à Lei Orgânica (PLO 9/2011), de José Américo (PT), propõe reduzir essa porcentagem para 0,5%, ou 44 mil assinaturas.
QUESTÃO DE JUSTIÇA
Para escrever seu projeto, o vereador pode recorrer à equipe do gabinete ou ao Setor de Elaboração Legislativa da Casa. A secretária-geral parlamentar da CMSP, Karen Lima Vieira, responsável pelas equipes que auxiliam no processo legislativo, lembra algumas recomendações para se construir um bom projeto. “A redação tem que ser clara e direta”, diz ela. Mas a dica mais importante é outra: “Um projeto é bom quando ouve o maior número possível de pessoas. É importante dialogar com todas as instituições e grupos que tenham relação com o assunto, pois há mais chance de fazer a lei pegar”.
O projeto de lei é a forma de proposição mais conhecida, mas não a única. Além dos PLs, os vereadores também propõem projetos de emenda à Lei Orgânica, de resolução (para assuntos políticos e administrativos da Casa) e de decreto legislativo (usado para homenagens, por exemplo). Apenas os projetos de lei precisam ser aprovados pela Câmara e pelo Executivo para entrar em vigor.
Uma vez escrito, o projeto é protocolado. Aí começa para valer o processo legislativo, que lembra um game com várias fases que o projeto precisa vencer. Tudo se inicia com uma triagem do presidente da Casa, que pode barrar uma proposta exatamente igual a outra que já esteja tramitando ou tenha virado lei. Após a triagem, o projeto é lido em Plenário e publicado no Diário Oficial da Cidade de São Paulo. De acordo com a natureza do PL, o presidente traça o roteiro dos próximos passos, designando quais comissões de vereadores analisarão a iniciativa antes que possa ser apreciada em Plenário.
INCONSTITUCIONAL PODE?
Todos os projetos de lei começam a tramitar pela Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa (CCJ), conforme determina o Regimento Interno da CMSP. O papel da CCJ é analisar a proposta do ponto de vista legal, identificando, por exemplo, se está de acordo com a Constituição Federal ou a Lei Orgânica do Município de São Paulo.
Na CCJ, como nas demais comissões, o procedimento é o mesmo: assim que o projeto chega, o presidente da comissão escolhe um dos vereadores para ser o relator, a quem cabe dizer se aprova ou não a proposta. O relatório é discutido com os demais componentes da comissão, e o texto aprovado pela maioria vira parecer, ou seja, torna-se o pronunciamento oficial.
Para redigir os relatórios, os vereadores contam com a assessoria técnica da Casa, formada por consultores e procuradores. No caso da Comissão de Constituição, esse apoio é realizado pela Procuradoria, que faz uma análise para subsidiar o texto do relatório a ser assinado pelo vereador. Mesmo assim, lembra a secretária-geral parlamentar Karen Vieira, a decisão final é sempre política. “Pode acontecer de a Procuradoria dizer que o PL é inconstitucional, mas o relator ter uma mente um pouco mais aberta e achar por bem considerar legal”, afirma.
Como um parecer contrário da Comissão pode matar no ninho os projetos, a CCJ tem a tradição de vetar poucas propostas. O objetivo é dar a oportunidade de tramitarem pelas outras comissões e pelo Plenário, para serem debatidas pelos demais vereadores e pela sociedade, que são os que decidem se, no final, vale a pena aplicar as ideias.
Uma das leis mais conhecidas da Câmara Municipal é a 11.659/1994, do vereador Murillo Antunes Alves, que tornou obrigatório o uso do cinto de segurança nos automóveis. A iniciativa teria sido vetada por uma análise apenas técnica, já que apenas a União pode legislar sobre trânsito. “A rigor, era um projeto inconstitucional. Mas era um assunto que estava tão na agenda da sociedade que passou na Câmara, virou lei, pegou e salvou a vida de milhares de pessoas”, lembra o procurador-chefe Baccarin.
OUTRAS COMISSÕES
Vencida a CCJ, o projeto passa a tramitar nas outras seis comissões do processo legislativo (veja na pág. 30). Não em todas, somente naquelas que tenham relação com a temática da proposta. Nessas comissões, os vereadores são assessorados pela Consultoria Técnico Legislativa, que reúne profissionais como arquitetos, administradores, assistentes sociais, engenheiros, economistas, psicólogos e sociólogos. No caso da Comissão de Finanças e Orçamento, a assessoria é feita pelos economistas da Consultoria Técnica de Economia e Orçamento (CTEO).
Para dar conta de projetos que tratam de questões tão diferentes como o papel das ocupações ilegais em áreas de manancial ou as condições de produção do patê de fígado de ganso, os consultores estão sempre estudando. “Como cada consultor entende mais de determinados assuntos, fazemos seminários internos para apresentar os temas uns aos outros”, conta Roberto Tadeu Noritomi, supervisor da Equipe de Assessoria e Consultoria da Área Social. Os consultores também sugerem questionamentos ao Executivo, além de identificar entidades e associações que podem se interessar pelo debate.
Ricardo Moreno/CMSP
As análises feitas pelos consultores são sigilosas. A partir delas, cabe ao vereador tomar suas próprias decisões e determinar o conteúdo do relatório que será assinado por ele e publicado. Os consultores dizem que veem essa relação com tranquilidade. “Nossa missão é contribuir para qualificar o processo legislativo, temos o nosso ponto de vista, mas o que fazemos é colocar os prós e contras do projeto”, diz o arquiteto Pedro Campones Santos, da Equipe de Assessoria e Consultoria de Urbanismo e Meio Ambiente. “Para mim a relação é clara: o voto é do parlamentar, e é bom que seja assim. É preciso entender que o representante da população é o vereador”, afirma a consultora Simone de Melo Lins, supervisora da Equipe de Assessoria e Consultoria de Administração Pública.
A última comissão, pela qual passa a maioria dos projetos, é a de Finanças e Orçamento (segundo o Regimento Interno não é uma obrigatoriedade, mas virou uma prática da Casa). “Analisamos o impacto financeiro dos projetos”, explica o economista Adriano Nunes Borges, supervisor da Equipe de Assessoria e Consultoria Econômico-Financeira do Processo Legislativo. Há três projetos que passam apenas pela Comissão de Finanças e por nenhuma outra: o orçamento, a Lei de Diretrizes Orçamentárias e o Plano Plurianual.
As comissões também fazem audiências públicas, para ouvir o que a população pensa sobre determinados projetos. A Lei Orgânica cita dez casos em que é obrigatório realizar pelo menos duas audiências públicas, entre eles os projetos de Plano Diretor Estratégico (PDE), de orçamento e de Lei de Zoneamento. Nada impede que sejam feitas mais de duas audiências (no caso do PDE, aprovado neste ano, foram 62), nem que sejam convocadas em outros tipos de projetos.
DAS COMISSÕES AO PLENÁRIO
O teste de fogo das propostas é a ida ao Plenário, que o Regimento Interno define como “o órgão deliberativo e soberano da Câmara, constituído pela reunião dos vereadores em exercício”. Só podem ir para a votação plenária os projetos instruídos, quer dizer, aqueles que passaram por todas as comissões, desde a CCJ, no começo, à Comissão de Finanças e Orçamento, no final, passando pelas demais que o presidente julgou necessárias.
A tramitação do projeto entre vereadores, consultores e entre uma comissão e outra e o Plenário é conduzida pela Equipe de Secretaria das Comissões do Processo Legislativo, que tem sempre muitas tarefas e prazos curtos. O supervisor André Marcon conta que o trabalho fica ainda mais intenso quando os vereadores resolvem fazer a reunião conjunta das comissões, apelidada de “congresso de comissões”.
Nessa reunião, os parlamentares juntam todas as comissões do processo legislativo para analisar vários projetos de uma vez. Assim, o processo de redação e aprovação de pareceres, que pode levar meses, resolve-se em questão de horas. É uma tramitação acelerada, que serve para instruir mais projetos e deixá-los prontos para serem debatidos em Plenário.
O Regimento Interno da Casa prevê que as reuniões conjuntas de comissões ocorram “em caso de urgência justificada”. Segundo Karen Vieira, a prática é considerar como urgentes os casos em que projetos não instruídos são incluídos na pauta de votações em Plenário. Nesse caso, a reunião conjunta é o caminho para dar agilidade à pauta. Para o vereador Toninho Vespoli, o recurso deveria ser usado com menos frequência. “O congresso de comissões é usado em muitos projetos, inclusive alguns que mereceriam um debate mais aprofundado. É como as medidas provisórias, do governo federal, que deveriam ser exceção, mas viraram regra”, compara.
Depois de passar pelas comissões e pelo Plenário, o PL chega ao prefeito, que tem a missão de sancioná-lo ou vetá-lo (os decretos legislativos, as resoluções e as emendas à Lei Orgânica não precisam de aprovação do Executivo). Se ele veta um projeto, por entender que é inconstitucional ou “contrário ao interesse público”, nem tudo está perdido: a Lei Orgânica prevê que a Câmara ainda pode derrubar o veto, numa única votação, se conseguir o consentimento de pelo menos 28 vereadores, dos 55 que compõem a CMSP.
E NO FIM
Vários projetos são barrados em alguma etapa do processo e não conseguem chegar à reta final. Mas não significa que não tenham valido a pena. O procurador Paulo Baccarin, que gosta de citações literárias, usa o verso mais conhecido de Fernando Pessoa para lembrar que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. No caso dos projetos de lei, eles já têm valor apenas pelo debate que provocam. “O projeto de lei serve até para virar lei”, diz Baccarin. Como assim? O procurador explica: “Ao criar um projeto e discuti-lo com a sociedade, o parlamentar movimenta a cidade em torno daquela questão. É válido socialmente só por trazer à tona determinados temas. Tudo faz parte do fazer político.”
Comissões de estudos e investigaçõesAlém das seis comissões permanentes, que participam do processo de aprovar e barrar leis, a Câmara possui cinco comissões extraordinárias permanentes, sem relação com o processo legislativo: as comissões de Direitos Humanos, Cidadania e Relações Internacionais; de Defesa dos Direitos da Criança, do Adolescente e da Juventude; do Idoso e de Assistência Social; de Meio Ambiente; e de Segurança Pública. Servem para opinar, debater, receber denúncias e reclamações com relação às pessoas envolvidas em seus temas. A Câmara também cria comissões temporárias. As mais conhecidas são as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), cujo objetivo é apurar fatos determinados, que podem ser encaminhados ao Ministério Público para promover a responsabilidade civil ou criminal de infratores. Algumas CPIs tiveram importância histórica, como a do Cemitério de Perus, instalada em 1990, que investigou a vala clandestina usada pela ditadura militar para enterrar indigentes e opositores do regime. As outras comissões temporárias são as de representação, que servem para representar a Câmara em atos externos, e as de estudos, para analisar problemas municipais e que podem dar origem a CPIs. A Câmara também pode criar comissões que não caibam em nenhum dos casos descritos pelo Regimento Interno. É o caso da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, instalada em abril de 2012 para apurar as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar, a qual retomou o trabalho da CPI de Perus e foi além. Esse grupo, ao investigar a história recente, vem ele próprio fazendo história. |
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