Saudade da garoa e do batuque
Samba autenticamente paulistano desapareceu nos anos 1970; luta, agora, é pelo resgate de sua memória
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
COMPOSIÇÃO – Rei e rainha eram o casal mais importante dos desfiles de carnaval paulistano, mas foram substituídos em importância pelo mestre-sala e porta-bandeira, ao estilo carioca
Acervo Uesp
“O nosso samba é tão diferente, nos tipos de manifestações da gente, no andamento…”, disse certa vez o sambista paulistano Geraldo Filme sobre o típico batuque da cidade onde nasceu. Até os anos 1970, o ritmo era caracterizado pela rapidez, com destaque para a batida dura e profunda do bumbo e do surdo. Faziam parte do samba de São Paulo, ainda, o toque da viola caipira, os temas locais, a sensualidade africana da dança da umbigada e o improviso nas letras.
Mozart Gomes/CMSP
Essas características originais foram se perdendo com o tempo, e hoje algumas iniciativas buscam resgatar a memória daquela época. Em 2013, o samba da capital paulista tornou-se patrimônio cultural imaterial da cidade, com registro no Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp). A iniciativa visa preservar um som que está mais na história do que em evolução.
O batuque tipicamente paulistano podia ser ouvido nos cordões, grupos populares que saíam às ruas no carnaval: “O pessoal cantava o que viesse à cabeça e chegava, mesmo, a não cantar nada. Era quando já estava todo mundo bêbado, cansado, e só sobrava o bumbo fazendo a marcação”, conta o músico Osvaldinho da Cuíca no livro Batuqueiros da Pauliceia, escrito com André Domingues. Os ritmos mais tocados eram as rápidas marchas-sambadas e, nos anos 1930, com a popularização do rádio, os sambas caipiras paulistas, de Raul Torres, e os cariocas, de Noel Rosa.
O líder negro Dionísio Barbosa trouxe a novidade dos cordões à capital e, com isso, deu o tom do carnaval local por cinco décadas. Compositor, pandeirista e filho de ex-escravo, ele nasceu em 1891, em Itirapina (SP), e chegou ainda menino à Barra Funda, bairro paulistano dos imigrantes europeus e africanos oriundos das fazendas. Passou a adolescência no Rio de Janeiro e se encantou com o carnaval de rua. Aprendeu tudo, adicionou a batida paulista ao repertório e, em 1914, fundou o Grupo Barra Funda, que depois se tornou a escola de samba Camisa Verde e Branco. “Tocava marcha e música popular, tinha marcha nossa! Tenho orgulho de ter sido o fundador disso em São Paulo”, conta Dionísio no documentário Samba à paulista.
Dionísio Barbosa e Geraldo Filme, assim como outros baluartes do samba paulistano, são tão fundamentais quanto esquecidos pela maioria. Em 1939, a falta de reconhecimento e as intrigas derrubaram o ânimo do camisa-verde-e-branco, que decidiu deixar o comando de seu grupo.
SILÊNCIO NO BIXIGA
Com tanto desprezo, não é de se estranhar que o samba autenticamente paulistano, nascido na Barra Funda e no Bixiga, tenha morrido simbolicamente nos anos 1970, quando os investimentos públicos estavam majoritariamente focados no modelo carioca de carnaval. Para Osvaldinho da Cuíca, o marco é 1972, quando os últimos cordões da cidade viraram escolas de samba.
Pioneira entre as carnavalescas paulistanas, a pesquisadora Maria Apparecida Urbano, a dona Cida, conta em Samba à paulista que os bambas, sambistas mais antigos da cidade, tiveram pouco espaço no novo formato. Como convidada, ela assistiu a um dos eventos de inauguração do Sambódromo, em 1991, mas seus companheiros da velha guarda teriam sido ignorados. “Isso me marcou tanto, viu!”, lembra. De Toniquinho Batuqueiro, autor do primeiro samba-enredo da escola Rosas de Ouro, ouviu: “dona Cida, quem sou eu? Ajudei a fazer este samba paulista, mas não tenho a oportunidade de botar meus pés lá dentro do Sambódromo. Eu não tenho dinheiro para isso”.
“Hoje temos um samba nacional”, diz a carnavalesca, sobre a unificação dos padrões regionais para exibição na TV. Os compositores paulistanos aceleraram os samba-enredos cariocas e a batida “pesada, pesadona” da Pauliceia ficou na história – que dona Cida e outros sambistas querem preservar. Desde 1990, eles lutam pela criação de um museu voltado ao samba na cidade. “Como sou comentarista do carnaval em uma rádio, todos os anos vejo o prefeito no Sambódromo e cobro. Dizem que farão. E nada”, conta.
A criação do Museu do Samba no Município já foi determinada pela Lei 12.380/1997, proposta pelo ex-vereador Vital Nolasco. Até hoje a Prefeitura não implementou a legislação nem publicou como pretende fazer, apesar de o prazo para a regulamentação ter se esgotado em agosto de 1997.
Segundo a lei, o museu deverá ser instalado no Sambódromo, com objetivo de virar um ponto de referência para discussões sobre o samba, promovendo congressos, seminários, simpósios e outros tipos de encontro. Também terá de classificar e catalogar as criações musicais, com destaque à produção das escolas de samba. Deverá, ainda, produzir vídeos com a contribuição dos principais sambistas do País e manter um espaço para expor fantasias, adereços e outros materiais referentes aos desfiles de carnaval. “Imagina chegar o pessoal de fora e ver em qualquer época do ano, até subir [nos carros alegóricos], seria uma atração e tanto”, sonha dona Cida.
LEMBRANÇA – Osvaldinho da Cuíca, autoridade em samba paulistano, acredita que as características locais morreram na década de 1970
Divulgação
O VELHO BATUQUEIRO
Em quase seis décadas de samba profissional, Osvaldinho da Cuíca viu muitos músicos importantes da área morrerem na pobreza, como Álvaro Rosa, o Paulistinha, um dos fundadores e maiores compositores da escola Nenê de Vila Matilde. “Ele foi o primeiro mestre-sala, cantava na rádio, tinha talento e morreu numa miséria”, lembra. Já idoso, Paulistinha foi morar na quadra da escola de samba, como acontece a muitos outros sambistas. “Todo sambista antigo, exceto quem tinha outra profissão, teve vida modesta”, disse à Apartes Osvaldinho, ex-integrante do grupo Demônios da Garoa. Para ele, parte da responsabilidade é da indústria fonográfica, que dá pouco valor à “matéria-prima” do samba: os compositores.
Para dar suporte aos velhos sambistas, proteger a memória do samba e incentivar a produção e difusão do gênero na cidade, tramita na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) o Projeto de Lei (PL) 848/2013, que pretende criar um conjunto de mecanismos denominado Estatuto do Samba Paulistano. O texto é do vereador Ari Friedenbach (PROS) e do suplente Orlando Silva (PCdoB), que no ano passado ocupava a vaga do vereador Netinho de Paula (PCdoB).
Entre outros pontos, o PL menciona a criação, pelo Executivo, do Fundo Especial de Apoio e Amparo ao Sambista (FAS), para auxiliar idosos com trajetória histórica comprovada no mundo do samba paulistano. Na justificativa do projeto, os autores ressaltam a contrapartida dada pelo setor à sociedade: “O samba na cidade de São Paulo extravasou seus limites da produção cultural e artística e, hoje, é fundamental pelos relevantes serviços que presta à comunidade, sejam eles educativos, culturais, de saúde, trabalho e empreendedorismo”. Segundo o documento, “o samba é, sobretudo, escola de cidadania”.
O PL ainda prevê que as escolas públicas municipais tenham uma disciplina optativa sobre samba na grade extracurricular. Os sambistas teriam participação assegurada em conselhos e órgãos de deliberação coletiva da administração pública municipal direta e indireta. Outra ferramenta prevista no projeto é o Cadastro Municipal do Samba, que agregaria informações sobre os músicos locais, suas comunidades e entidades representativas. Sua função é subsidiar a implementação de políticas públicas que fortaleçam o samba paulistano.
“Quando o governo cria programas e normas e leis específicas, reconhece o peso cultural e econômico do samba para o País”, diz Kaxitu Campos, presidente da União das Escolas de Samba Paulistanas (Uesp), ouvido durante a elaboração do PL 848. Ele lembra que, até os anos 1990, o carnaval paulistano era uma produção amadora, feita pela população pobre. Os sambistas não tinham, e ainda não têm, profissão regulamentada por lei – o que Kaxitu considera injusto, já que “carnaval é atividade econômica muito grande e meio de vida para muita gente”. Para o presidente da Uesp, a indústria do samba se insere no conceito de economia criativa, que gera riquezas e empregos ao combinar cultura, tradição, tecnologia, inovação e criatividade.
O conceito ganhou espaço no Plano Diretor Estratégico (PDE), aprovado pela CMSP em 2014, com objetivos a serem alcançados pela administração municipal até 2029. A ideia será testada inicialmente em um Polo de Economia Criativa nos bairros Sé e República, mas pode ser estendida a outras subprefeituras com essa vocação.
TREM DAS ONZE
O samba é celebrado no Município em 2 de dezembro (o dia nacional desse gênero musical), conforme prevê lei proposta em 1998 pelo vereador Goulart (PSD). Mas o samba paulistano também tem seu dia: 6 de julho, em homenagem ao sambista João Rubinato, um descendente de italianos mais conhecido pelo pseudônimo Adoniran Barbosa, que nasceu nessa data, em 1910, na cidade de Valinhos (SP). O dia foi criado em 2010, por iniciativa do ex-vereador Zelão.
Adoniran mudou-se para São Paulo aos 22 anos. A partir da década de 1950, criou composições que o consagraram e que, na interpretação dos Demônios da Garoa, imitavam a batucada dos engraxates do centro da cidade e os sotaques caipira e italiano.
Gute Garbelotto/CMSP
Em 1965, Trem das onze, de Adoniran, imortalizaria as cenas da vida paulistana em pleno Rio de Janeiro, ao ganhar o concurso de músicas carnavalescas do IV centenário carioca. Adoniran dizia que São Paulo é difícil de encaixar em samba, mas gostava tanto dessa terra que acabava dando um jeito. Aproveitava tudo o que a cidade oferecia: “gíria, ruas, bairros, muita coisa do cotidiano”. “Foi por isso que fiquei conhecido”, costumava justificar.
Apesar do sucesso, o compositor gravou o primeiro LP individual somente em 1973. Em sua voz rouca, os sambas perdiam o tom de galhofa dado pelos Demônios da Garoa e ganhavam ares sentimentais e críticos. Morreu aos 72 anos, em 23 de novembro de 1982. Na justificativa do projeto que originou a Lei 15.288, o ex-vereador Zelão diz que Adoniran Barbosa é “unanimidade como um dos que mais contribuíram do ponto de vista cultural e social para o reconhecimento do samba paulistano”.
Poeta da vida cotidiana da cidade, no fim da vida Adoniran já não reconhecia mais a São Paulo que musicou: “Me mandaram achar São Paulo e não achei. Me mandaram achar o Bixiga e não existia mais, a não ser alguma coisinha ali pela 13 de Maio, Rua Fortaleza. O Brás é quem te viu e quem te vê. Mas já não sofro mais, estou calejado”, disse o sambista em entrevista concedida em 1981 ao Jornal da Tarde e publicada no livro Adoniran Barbosa: O poeta da cidade.
Gute Garbelotto/CMSP
VIVENDO O AGORA
O músico e vereador Netinho de Paula considera que o samba paulistano tenha ficado à margem das agendas públicas apenas por algum tempo, “mas morrer, não”. Para ele, o crescimento “rápido e desigual” da cidade fez o gênero migrar do centro para as áreas “além do Rio Tietê”, como Casa Verde, Freguesia do Ó, Santana e Vila Maria. O cenário foi comentado pela urbanista Raquel Rolnik no documentário Samba à paulista: “Houve a destruição física dos cortiços, de espaços da comunidade negra, e a expulsão dos pretos pobres para o que era, naquele momento, a periferia da cidade”.
Nessas regiões periféricas, no final da década de 1990 o samba teria se revitalizado e buscado suas raízes. “Os grupos resistiram e se reorganizaram e nós, que estamos no Poder Público, precisamos fortalecer o patrimônio cultural da cidade”, disse Netinho à Apartes. Um desses grupos é o Samba da Laje, na Vila Santa Catarina, zona sul. Para incentivá-lo e homenageá-lo, o parlamentar inseriu no calendário oficial do Município, com a Lei 15.172/2010, o Samba da Laje, a ser comemorado no último domingo de cada mês.
Mozart Gomes/CMSP
Outra data, proposta pela ex-vereadora Claudete Alves, é o dia 15 de fevereiro, dedicado à mulher do samba paulistano (Lei 14.849/2008), para lembrar lideranças como Deolinda Madre. Conhecida como Madrinha Eunice, em 1937 ela fundou, na Rua da Glória, 961 (bairro Liberdade), a escola de samba há mais tempo ativa na capital paulista, a Lavapés.
A área de fundação da escola transformou-se no Marco Zero do Samba Paulistano, pela Lei 15.204/2010, projeto do ex-vereador Jamil Murad. A Lavapés, conta Murad, “foi a primeira em São Paulo a defender o samba como legítima manifestação cultural, num tempo em que os sambistas eram vítimas de intolerância e truculência policial, marcados pela discriminação e pelo perfil preconceituoso de arruaceiros e desocupados”. Enquanto o museu desejado por dona Cida não sai do papel, essas iniciativas, mesmo isoladas, buscam não deixar no esquecimento momentos tão importantes da história da capital.
*O título desta reportagem é inspirado na canção Saudade da garoa, de Osvaldinho da Cuíca, sobre as origens e os baluartes do samba paulistano. Os intertítulos lembram outras canções: O velho batuqueiro, de Osvaldinho; Silêncio no Bixiga, de Geraldo Filme; Trem das onze, de Adoniran Barbosa; e Vivendo o agora, de Paulistinha.
Saiba mais
Livros
Batuqueiros da Pauliceia: Enredo do samba de São Paulo. Osvaldinho da Cuíca e André Domingues. Editora Barcarolla, 2009.
Adoniran Barbosa: O poeta da cidade. Francisco Rocha. Ateliê Editorial, 2002.
Quem é quem no samba paulista. Maria Apparecida Urbano. Clube do Bem-Estar, 2014.
Um batuque memorável no samba paulistano. Carlos Antonio Moreira Gomes. Centro Cultural de São Paulo, 2010.
Teses acadêmicas
Samba Paulista, do centro cafeeiro à periferia do centro: estudo sobre o Samba de Bumbo ou Samba Rural Paulista. Marcelo Simon Manzatti. Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. Disponível online.
Uma leitura do samba rural ao samba urbano na cidade de São Paulo. Márcio Michalczuk Marcelino. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2007. Disponível na internet.
Quem é quem no samba paulista. Maria Apparecida Urbano. Clube do Bem-Estar, 2014.
Documentário
Samba à paulista – Fragmentos de uma história esquecida. Direção de Gustavo Mello. Produção de Varal Produções e TV Cultura, com apoio da Pró Reitoria de Cultura e Extensão da USP, 2007. Disponível online.
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