Terra, respeito e outros direitos
Aguerridos por tradição, índios paulistanos se organizam em conselho para lutar por espaço e outras reivindicações
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Ricardo Rocha/CMSP
Quando não está comandando rituais religiosos, o pajé e cacique Elias Onório dos Santos esculpe grandes felinos em miniatura para vender e ajudar na sobrevivência da família. A cena é o reflexo do confinamento e da descaracterização a que estão reduzidos os guaranis das aldeias paulistanas. Os brancos ocuparam “as áreas que já foram nossas, as cachoeiras, os rios e a mata que é própria para as nossas crianças”, lamenta ele, compenetrado, enquanto entalha a madeira. Ao redor, seus familiares preparam um frango para o jantar, cuidam das crianças e criam outras peças de artesanato. Uma rotina muito distante do nhandereko (modo de vida indígena, em guarani).
Adriano Karai Poty (foto maior) e Ricardo Rocha/CMSP (foto menor)
Na comunidade do cacique, os poucos que se adaptam ao mundo dos brancos tentam um emprego por lá, já que o pedacinho de mata que lhes restou impede a caça, a pesca e o plantio sazonal. “Se fosse há 40, 50 anos, essa era época (fevereiro) de caçar e já não plantava mais. Seria só colheita, guardar semente e plantar no futuro. Com essa história de lugar fixo, pela demarcação, houve muita perda”, conta Adriano Karai Poty, que habita com Santos a Terra Indígena Guarani da Barragem, no extremo sul do Município de São Paulo.
Poty refere-se à regularização de suas terras, ocorrida na década de 1980. O processo deu mais segurança aos indígenas, mas por outro lado oficializou a limitação de seu espaço. “Os processos de demarcação anteriores à Constituição Federal de 1988 não tinham aparato legal para levar em conta a continuidade territorial das áreas habitadas pelos guaranis e, por isso, demarcaram pequenos espaços que não garantem a sobrevivência desses indígenas”, explica Adriana Queiroz Testa, doutora em antropologia e integrante do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP).
Guarani da Barragem tem 26,3 hectares e é uma das três terras indígenas regularizadas (registradas em nome da União) na capital, após serem delimitadas, no início da década de 1980, e demarcadas fisicamente em 1987. As outras são Krukutu (com 25,9 hectares) e Jaraguá (com 1,7 hectare). As duas primeiras ficam na região de Parelheiros, na região sul. A terceira, em estado de favelização, fica próxima ao Pico do Jaraguá, na zona norte, e é a menor área indígena reconhecida no País. Equivale a pouco menos de dois quarteirões de medida padrão. Os três territórios pertencem majoritariamente ao povo guarani mbya e abrigam parcialmente os índios da capital. Os demais pertencem a diversas etnias e estão espalhados pela cidade (veja box).
Na busca por mais espaço e outros direitos, os guaranis se organizaram no Conselho Municipal dos Povos Indígenas (Compisp), que oficializou os grupos locais para negociarem com o Executivo local e o federal. O órgão foi criado pela Lei 15.248/2010, aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) e proposta pela vereadora Juliana Cardoso (PT), com o objetivo de dar sugestões e ser consultado pela Prefeitura na elaboração e implementação de políticas públicas para os indígenas paulistanos, bem como acompanhar e avaliar essas medidas. Poty já participa das reuniões e poderá ganhar um assento no Conselho a partir de junho de 2015, por indicação de seu cacique.
RETOMADA
As áreas tradicionais indígenas no Município, às quais os guaranis estão historicamente ligados por hábitos, família e questões religiosas, são realmente bem maiores que a demarcação oficial, segundo estudos publicados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2012 e 2013.
As áreas regularizadas de Guarani da Barragem e Krukutu são apenas 0,033% da área total à qual os guaranis têm direito, segundo a Funai. Esse território maior é chamado de Terra Indígena Tenondé Porã e tem 15.969 hectares. Já a Terra Indígena Jaraguá é, na verdade, trezentas vezes maior, com 532 hectares, de acordo com a Fundação. Essas terras mais amplas são consideradas delimitadas oficialmente, com a publicação no diário oficial. Assim, estão mais próximas da demarcação física e de serem regularizadas. “Enquanto não tiver regularização, a população indígena fica vulnerável: numa hora um juiz é favorável e, noutra, contrário” aos pedidos de reintegração de posse feitos por não-indígenas, diz a vereadora Juliana Cardoso.
Equipe de Eventos/CMSP
O Compisp representa os 13 mil índios de várias etnias que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem no Município de São Paulo, em ambiente rural ou urbano, dentro ou fora das aldeias. Na composição atual do Conselho, estão três guaranis, um fulni-ô, um pankararu, um kariri-xokó e um pakará. Outros sete integrantes são do poder público, incluindo representantes de seis secretarias municipais e do Centro de Referência Social de Pirituba.
Para estar em acordo com a regulamentação da Lei 15.248, seria necessário dar assento aos pankararé, xukuru, kaingang, krenak e terena, entre outras adequações. Na prática, entretanto, não há membros atuantes dessas etnias no grupo, segundo a Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial, à qual o Compisp está ligado.
Até o fim do ano, o Conselho revisará seu regimento para dar mais publicidade e organização aos trabalhos. “O ideal seria o máximo de indígenas participarem da eleição ou saber que ela existirá”, diz Marcos Aguiar, coordenador do Programa Índios na Cidade, da organização Opção Brasil. Hoje, os integrantes do Compisp são escolhidos por indicação de sua comunidade. Para ser aceito em assembleia geral, na prática o indicado só precisa ser participante ativo das reuniões. Aguiar sonha que o próximo regimento contemple assento ao menos para as principais etnias indígenas residentes em São Paulo, desde que elas tenham um representante ativo no órgão.
JURUAS
O Compisp tem a função de ajudar a promover políticas para os indígenas relacionadas a cultura, habitação, segurança alimentar, meio ambiente, terras e proteção ao patrimônio material. Outra atribuição é diagnosticar e encaminhar denúncias de violação de direitos, além de buscar recursos públicos e privados para aplicar em ações voltadas aos índios.
Ricardo Rocha/CMSP
Em 2013, o Compisp organizou um mutirão na Terra Indígena Jaraguá para tirar a documentação de moradores. No início deste ano, tratou com o Executivo sobre a paralisação de atividades do Centro de Educação e Cultura Indígena de Guarani da Barragem, devido a problema no contrato com a Opção Brasil, organização não-governamental (ONG) que contrata os professores. Também planeja divulgar mais o artesanato de seu povo, em eventos na capital.
“Quando passamos por problemas, procuramos e podemos chamar os secretários municipais para conversar (em nome do Conselho), o que era mais difícil por conta própria, sem uma organização”, diz Adriano Poty. O cacique Elias dos Santos sente-se feliz por falar com as autoridades de um modo mais genuíno: “Hoje precisa muito de apoio do Município, do Estado, desse contato, parcerias, mas as pessoas que ficam fora, os juruas, já trazem prontos muitos projetos voltados à comunidade ou em nome dela, dizem que temos que fazer isso, aquilo… Não aceitamos porque não entraram em contato com a gente, com as nossas lideranças”, explica. “Tudo o que acontece aqui é passado aos líderes locais do Conselho e eles vão encaminhar em parceria”, afirma.
Fotos: Ricardo Rocha/CMSP
Segundo Juliana Cardoso, os indígenas têm uma forte tradição combativa. “Eles são guerreiros e muito organizados. Cada um atua em uma área e faz sua tarefa pelo grupo”, diz. Seu próprio pai, antes de se mudar para São Paulo, foi líder para questões de saúde de uma aldeia terena em Nioaque, no Mato Grosso do Sul, e inspirou a parlamentar a apresentar o projeto de criação do Conselho Municipal dos Povos Indígenas.
Essa história de combate, nas palavras do cacique Elias, continuará viva: “Meus bisavós lutaram e morreram. A luta sempre vai continuar, com meus filhos, meus netos, eles vão chegar como estou hoje. Isso nunca vai terminar”. Muitas vezes invisível ao olhar do paulistano, o índio da metrópole mantém o espírito aguerrido. Adriano Poty conta que se motiva para o combate por uma causa trabalhosa e singela. Ele quer que os indígenas de São Paulo e das grandes cidades brasileiras sejam reconhecidos como tal, com todos os seus direitos. “Essa parte de reconhecimento, mesmo. E respeito”, sonha.
Principais etnias residentes no MunicípioAtikun (zona norte) Fonte: Trabalho de conclusão de curso Os desafios da moradia indígena no contexto urbano de São Paulo, apresentado em 2015 à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo por Amaro Cosmo de Mesquita e Bruno Tserebutuwe Tserenhimi´rãmi. |
PDE indígenaSegundo o Plano Diretor Estratégico (PDE) aprovado pela CMSP em 2014 e que norteará a administração municipal até 2029, a ocupação das terras indígenas por outras pessoas deve ser coibida na capital paulista, desde a delimitação até o momento anterior à regularização. Para a legislação, essas áreas são “imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao bem-estar e à reprodução física e cultural desses povos, segundo seus usos e costumes”. |
Saiba mais
Livros
Índios na cidade de São Paulo. Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2005.
Aldeias guarani mbya na cidade de São Paulo. Studio RG e Associação Guarani Tenonde Porã, 2006.
Site
Funai. http://goo.gl/qmg9zF
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