Nº14 – Alimentação

Mais sabor e saúde no prato

Lei introduz alimentos orgânicos na merenda de escolas municipais e estimula a agricultura que faz bem ao planeta

Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br

REFEIÇÃO – Hora da merenda no CEI Wenceslau Guimarães e no CEU São Mateus (no detalhe)

Lilian Borges/Secretaria Municipal da Educação (foto maior) / Neila Gomes/Secretaria Municipal da Educação (foto menor)

O maior tesouro do Sítio Boa Nova, no distrito de Parelheiros (zona sul de São Paulo), fica guardado no coração da propriedade.

Durante a caminhada em direção ao tesouro, a agricultora Valéria Maria Macoratti, 47 anos, aproveita para mostrar outras surpresas da sua plantação de alimentos orgânicos. Junto aos pés de berinjela, ela pega na mão uma das joaninhas que passeiam sobre as flores. “Os animais são meus companheiros”, afirma.

E não só eles. Alguns passos adiante, a agricultora chama atenção para as ervas que dividem espaço com as hortaliças nos canteiros. São do tipo que a agricultura convencional taxaria de daninhas, mas que Valéria prefere chamar de “minhas amigas”. Ela explica que as ervas protegem a terra da erosão e ainda atraem para elas os insetos que poderiam atacar a lavoura, além de ajudar a enriquecer o solo – ou “engordar a terra”, como diz. O mesmo vale para o trato com os animais. Em vez de expulsar as pragas com venenos, Valéria prefere deixá-las a cargo de seus predadores naturais – como as joaninhas, que se alimentam dos pulgões.

Enquanto a agricultura convencional, com agrotóxicos e tratores, considera as plantações espaços isolados e que devem ser defendidos a todo custo do mundo externo, a agricultura orgânica prefere abraçar a natureza e ver seus produtos como parte de um ecossistema. “Eu não tenho que matar nem repelir nada na minha plantação. A própria natureza se controla”, explica Valéria, enquanto crava os dentes, sem medo, numa cenoura que acaba de retirar da terra.

Relíquia e sonho

De surpresa em surpresa, chegamos ao tesouro que Valéria queria nos mostrar. “É ali, ó”, aponta. Está mostrando o fio cristalino de uma nascente, que sai de dentro da terra e vai formar, logo adiante, um lago. Ao redor da nascente, a agricultora plantou uma barreira natural de árvores para protegê-la. “O maior produto que temos aqui não é o alimento. Nós produzimos água para a cidade de São Paulo”, afirma Valéria. Além de não utilizar agrotóxicos, que podem contaminar lençóis freáticos, o plantio orgânico ajuda a preservar a porosidade dos solos que absorvem a chuva.

Valéria era uma assistente administrativa que nem pensava em agricultura quando comprou uma chácara em Parelheiros, em parceria com a companheira, Vânia Maria Ferreira dos Santos, 50 anos. As duas queriam apenas ter um local para abrigar os cachorros feridos que costumam recolher das ruas – hoje, elas alojam 60 cães, além de dois jumentos de estimação.

Após fazer um curso de agricultura orgânica oferecido por um projeto da Prefeitura de São Paulo, em 2009, Valéria passou a plantar no sítio de um amigo e participou da organização da Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Zona Sul de São Paulo, a Cooperapas, que reúne 27 produtores orgânicos. Hoje ela vive da terra, de onde colheu uma vocação. “Agora sei o que quero da vida”, afirma. “Vejo o sol nascer e se pôr enquanto trabalho e vou dormir o sono dos justos, sabendo que vendo um produto saudável.”

PROCESSO – Natalini conta que projeto levou quatro anos para virar lei

Mozart Gomes/CMSP

O sonho de uma agricultura saudável, plantada segundo as regras da própria natureza, pertence a um número cada vez maior de pessoas: a quantidade de agricultores orgânicos no Brasil aumentou a uma taxa de 51,7% em um ano, saltando de 6.719 para 10.194 entre janeiro de 2014 e janeiro deste ano, segundo o Ministério da Agricultura.

Mas é um sonho que ainda esbarra no desafio econômico. “O gargalo é a comercialização. Perdemos muita coisa porque não temos como escoar a produção”, lamenta Valéria.

Lei para a merenda

Diante de tantas dificuldades, a agricultora comemorou a aprovação da Lei 16.140/2015, que obriga as escolas municipais de São Paulo a incluir alimentos orgânicos na merenda. Nascida de um projeto dos vereadores Gilberto Natalini (PV), Ricardo Young (PPS), Dalton Silvano (PV), Toninho Vespoli (PSOL), do vereador licenciado Nabil Bonduki (PT), atual secretário municipal da Cultura, e do ex-vereador e atual deputado federal Goulart, a lei foi promulgada pelo prefeito Fernando Haddad (PT) em 17 de março deste ano. “Os agricultores orgânicos, que vinham segurando a produção por medo de não conseguir vender, agora vão ter que encarar o desafio de plantar muito mais para atender à Prefeitura”, afirma Valéria. E faz uma previsão. “Ainda somos poucos, mas se conseguirmos mostrar que plantar sem envenenar os alimentos pode dar certo, muitos vão nos seguir e vai ser um divisor de águas.”

PRODUTOR – Fernando Ataliba vende seus produtos na feira de orgânicos da Água Branca

Mozart Gomes/CMSP

“Veneno” é uma palavra que produtores de orgânicos gostam de usar para se referir aos alimentos produzidos pela agricultura convencional. E não é para menos, ainda mais no Brasil, terra do samba, do futebol e dos agrotóxicos. Um relatório divulgado neste ano pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca), órgão do Ministério da Saúde, afirma que, desde 2009, o Brasil é o maior consumidor mundial de veneno agrícola. Os brasileiros consomem todo ano 1 milhão de toneladas de agrotóxicos, o equivalente a 5,2 quilos para cada habitante. Amostras de alimentos ingeridos pela população, segundo o relatório, apontaram restos de agrotóxicos em quantidades acima do permitido por lei, incluindo produtos em processo de banimento ou que nunca tiveram registro no Brasil.

Chamado de “alarmista” pela Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), que representa os fabricantes de agrotóxicos, o relatório do Inca retrata os agrotóxicos como um mal pior do que qualquer das pragas que pretendem combater. “O modelo de cultivo com o intensivo uso de agrotóxicos gera grandes malefícios, como poluição ambiental e intoxicação de trabalhadores e da população em geral”, afirma o documento feito pelo Instituto. Para tirar o veneno da mesa, a receita do Inca é uma só: trocar o modelo atual de plantio pela produção orgânica, que, “além de ser uma alternativa para a produção de alimentos livres de agrotóxicos, tem como base o equilíbrio ecológico, a eficiência econômica e a justiça social, fortalecendo agricultores e protegendo o meio ambiente e a sociedade”.

SEM VENENO – Valéria, que descobriu a agricultura com os orgânicos, no Sítio Boa Nova

Mozart Gomes/CMSP

Esforço

Além da ausência de agrotóxicos, os orgânicos têm outra vantagem: a presença de fitoquímicos, substâncias que ajudam na prevenção de várias doenças. Segundo a nutricionista Alessandra Luglio, os fitoquímicos são produzidos pelos vegetais orgânicos para se defender de inimigos externos, como pragas e fungos. “Os alimentos da agricultura convencional não desenvolvem essas substâncias, porque já estão protegidos de tudo pelos agrotóxicos”, explica.

PARCEIRA – Joaninha, um dos insetos “companheiros” no cultivo de orgânicos (destaque)

Mozart Gomes/CMSP

Para Alessandra, a introdução dos alimentos orgânicos na merenda escolar, prevista na Lei 16.140, deve beneficiar as crianças com uma dieta mais saudável e, de quebra, ajudar a mudar os hábitos alimentares da população. “É uma medida benéfica em várias frentes, tanto para as pessoas como para o planeta”, afirma.

Antes de virar lei, a norma passou por um longo caminho de debates e reviravoltas, que durou quatro anos. Começou com o Projeto de Pei (PL) 447/2011, proposto por Natalini. O vereador conta que a proposta surgiu a partir das contribuições enviadas por vários grupos ligados ao tema, em dois seminários sobre alimentação orgânica, realizados na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), com a presença de mais de mil pessoas.

PRODUÇÃO – Ricardo Young afirma que lei fará aumentar plantio de orgânicos

Mozart Gomes/CMSP

Aprovado no Plenário da Câmara em 2013, o projeto acabou vetado pelo prefeito Fernando Haddad. O Executivo alegou que seria impossível encontrar produtos na quantidade exigida pelo PL, que obrigava o poder público municipal a gastar em orgânicos 30% de toda a verba destinada à alimentação na rede pública de ensino. “É sabido que os produtos orgânicos (…) ainda são cultivados em baixa escala, representando, segundo informes da Associação Brasileira de Orgânicos, menos de 2% de toda a produção nacional”, justificou o texto do veto.

Natalini, então, retomou a ideia com um novo projeto de lei, o 451/2013, com a participação de mais vereadores e novas negociações com a Prefeitura. Aprovado neste ano, o PL, que deu origem à Lei 16.140, já não menciona porcentagens para a entrada de orgânicos na merenda. Em vez disso, prevê a criação de um plano progressivo de introdução desses alimentos. “O plantio de orgânicos ainda é incipiente e os produtores não têm condições de ampliar a produção porque falta uma demanda firme”, analisa Ricardo Young, um dos propositores da lei. Ele acredita que a própria legislação fará aumentar a produção orgânica, ao garantir uma demanda constante para os produtores.

SAUDÁVEL – Luciane vende (e ensina a fazer) suco de frutas e verduras orgânicas

Mozart Gomes/CMSP

Ana Flávia Borges Badue, do Instituto Kairós, que trabalha com consumo responsável, participou das discussões para a elaboração da norma e concorda com o vereador. E vai além: “Essa lei vai mobilizar a produção de orgânicos em todo o País”.

Volta às origens

Pensando nos números que alimentam os alunos da rede pública municipal, a afirmação de Ana Flávia não parece um exagero. Todos os dias, são 2 milhões de refeições servidas em 2.800 unidades escolares, segundo a diretora do Departamento de Alimentação Escolar (DAE) da capital, Erika Fischer. “Costumamos dizer que aqui é o maior restaurante do mundo”, afirma.

Justamente porque a alimentação dos alunos paulistanos envolve números tão grandes, é difícil recorrer a pequenos produtores na hora de garantir o fornecimento de tantas toneladas de comida – e 75% da produção de orgânicos vêm de agricultores familiares. Além de escoar um imenso volume de produtos, os agricultores também precisam enfrentar a dificuldade de distribuir esses alimentos. “Não é só ter o produto, tem que fazer chegar às escolas. No caso de alimentos in natura, é ainda mais complicado, porque a entrega tem que ser feita pelo fornecedor”, explica Erika.

Ao mesmo tempo em que cria desafios, a Lei 16.140 também deu à Prefeitura um novo instrumento para facilitar a compra de alimentos mais saudáveis. “Agora, podemos fazer uma chamada pública de compra pedindo apenas alimentos orgânicos para determinado produto, o que antes não seria possível”, diz a diretora.

FAMÍLIA – Os educadores Juarez Ferreira e Beatriz Zulueta com a filha, na feira de orgânicos da Água Branca

Mozart Gomes/CMSP

Erika afirma que a lei aprovada pela CMSP foi ao encontro de uma ação que o Município já vinha fazendo, de adotar uma alimentação mais saudável, reduzindo o açúcar, o sal e a gordura dos alimentos. Até um cardápio vegetariano, em que a carne é trocada por proteína de soja, passou a ser servido para 684 mil alunos a cada 15 dias, e para outros 228 mil uma vez por mês.

Mesmo antes de se tornar obrigatório, as escolas municipais já contavam com um produto orgânico em seu cardápio: um arroz vindo do Rio Grande do Sul. “Esse arroz foi nossa pré-estreia nos orgânicos”, brinca Erika. Ela acredita que a chegada dos orgânicos às merendas terá efeitos duradouros: “Essa lei vai repercutir diretamente na formação de uma cultura alimentar mais saudável e permanente, mesmo porque, nessa fase, a criança assume hábitos que ficam para o resto da vida”.

A introdução dos orgânicos nas merendas também foi saudada na feira de orgânicos que ocorre às terças, sábados e domingos, das 7h às 12h, no Parque da Água Branca (zona oeste de São Paulo). “É um grande avanço para a sociedade brasileira. Vamos fornecer às crianças das classes populares um alimento mais nutritivo e educar o paladar delas para reconhecer um alimento mais saudável”, elogia o agricultor Fernando Ataliba, 51 anos, que vai toda semana à feira vender as hortaliças que produz no Sítio Catavento, em Indaiatuba (SP).

“Não existe razão para não ser orgânico. A gente produz mais, o produto tem melhor qualidade e nós, que plantamos, não precisamos ter contato com produtos tóxicos”, afirma Ataliba, com a experiência de quem trabalha com orgânicos há 20 anos. Ele conta que não teve dificuldade para aprender a cultivar sem o uso de venenos: quando criança, era desse jeito que via sua família trabalhar na roça. “Com esse passado, foi muito fácil para mim, anos depois, entender a agricultura orgânica”, diz.

Afinal, a novidade dos orgânicos não fez nada além de retomar as antigas técnicas que eram usadas antes da modernização do campo. “O plantio de orgânicos usa um conhecimento tradicional, que não é ensinado nas universidades. É um saber que se perdeu quando a população rural foi para a cidade”, lembra o produtor.

Terminada a entrevista, Fernando vai beber um suco verde, feito de frutas e hortaliças, na barraca ao lado. O produto é vendido pela psicóloga Luciane Briotto, 48 anos, que corta, mistura e coa os ingredientes diante dos fregueses, explicando cada passo da produção. “Minha proposta é educativa. Quero ensinar às pessoas como fazer esse suco em casa, usando os orgânicos. São alimentos preparados com amor”, explica.

Uma das freguesas de Fernando e Luciane, a educadora Beatriz Zulueta, 31 anos, mãe de três filhos, ficou feliz ao saber que suas crianças poderão ter acesso, na escola, aos mesmos produtos orgânicos que costumam comer em casa. “O natural tem mais sabor e é mais saudável”, afirma, segurando no colo a filha mais nova, de dez meses – nascida em casa, de parto natural.

Mais propostas para a merenda

Da luta contra a obesidade à merenda nas férias, a qualidade da alimentação escolar é tema de vários projetos de lei (PL) em tramitação na CMSP. “Instituir diretrizes para uma ação pública de educação alimentar escolar com enfoque na diminuição da obesidade na primeira infância e entre crianças e adolescentes” é o objetivo do PL 602/2013, assinado pelos vereadores Gilson Barreto (PSDB), Aurélio Nomura (PSDB), Rubens Calvo (PMDB), Mário Covas Neto (PSDB) e pelo ex-vereador Floriano Pesaro.

Outro programa de combate à obesidade, proposto por Laércio Benko (PHS) no PL 491/2013, prevê “uma equipe multidisciplinar de médicos, nutricionistas e preparadores físicos” para acompanhar “cada aluno que apresente sobrepeso”. Já os alunos diabéticos e hipertensos terão direito a uma alimentação diferenciada, caso vire lei o PL 328/2013, de Eduardo Tuma (PSDB).

Merenda nas Férias é o nome do programa sugerido pelo PL 542/2012, de David Soares (PSD), que pretende abrir as escolas nos meses de dezembro, janeiro e julho para fornecer refeições no almoço e à tarde.

O vereador Jair Tatto (PT) assina dois projetos sobre o tema: o PL 423/2013 institui o atendimento com nutricionistas nas escolas e o 369/2013 torna obrigatória a suplementação de zinco na merenda.

Saiba mais

Endereços de feiras orgânicas no Brasil: http://feirasorganicas.idec.org.br

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