O que só ele viu
Alegrias, decepções e bastidores da política nas lembranças de um ex-vereador
Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou José D’Amico Bauab
Baixa e rouca, a voz ressoa num cadenciado discreto entre as paredes de um quarto do Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, na tarde de 9 de março. Sentado numa poltrona ao lado da cama, vestido numa camisola branca, com dois tubos ligados ao nariz e pulseirinha de plástico no pulso, Ítalo Fittipaldi cantarola uma marchinha de carnaval que compôs há meio século para criticar a administração do então prefeito Francisco Prestes Maia.
“Os buracos estão aí,
Está tudo avacalhado.
O seu Chico não dá jeito,
O seu Chico está cansado.
Ai, ai, calamidade!
Minha rua está sumindo.
Mas que barbaridade!
O seu Chico está dormindo.”
Gravada pelo comediante Francisco Flaviano de Almeida, o Simplício, a canção Acorda, seu Chico “dominou o Carnaval de 1962”, segundo Fittipaldi. Na época, o autor preferiu não assumir a paternidade do sucesso: nos créditos do disco, o compositor era identificado apenas como Edil (vereador). Mas todo mundo sabia de quem se tratava – inclusive o seu Chico. “O próprio Prestes Maia mandou pedir que eu enviasse a ele um disco autografado”, lembra Ítalo, rindo.
O antigo político está hospitalizado para uma cirurgia de uretra, marcada para o dia seguinte – um procedimento simples, mas com todos os riscos que existem em qualquer operação envolvendo um paciente de 88 anos. “Acho que vai dar tudo certo. E, se não der, eu já vivi bastante”, afirma, tranquilo, diante da reportagem da Apartes, que Ítalo aceitou receber no quarto de hospital, e do poeta Paulo Bonfim, também de 88 anos. Internado no mesmo lugar por conta de uma gripe, o poeta visita o político para compartilhar memórias. “Nós dois somos sobreviventes de um mundo que acabou”, define Bonfim.
É sobre esse mundo extinto que Ítalo conta histórias vividas ao longo de dois mandatos como vereador, entre 1956 e 1963, e quatro como deputado federal, entre 1964 e 1983. Raras vezes ele é protagonista, como na marchinha de seu Chico. Ítalo prefere contar episódios estrelados por outras pessoas, das quais participou como testemunha.
“Rouba, mas faz”
O principal personagem das histórias é Ademar de Barros, um dos mais influentes e folclóricos políticos paulistas do século 20. Tanto em São Paulo como em Brasília, Ítalo foi um ademarista fiel, de uma lealdade que ultrapassou a morte de Ademar, ocorrida em 1969, e se estendeu ao filho dele, Ademar de Barros Filho, que também seguiu a carreira política.
Entre as décadas de 30 e 60, o “doutor Ademar”, como Ítalo gosta de chamá-lo, foi prefeito da capital e duas vezes governador de São Paulo, além de ter disputado duas vezes a Presidência da República, sem sucesso. Foi uma das principais lideranças civis do golpe de 1964, mas, dois anos depois, acabou cassado pela ditadura que havia ajudado a criar, no momento em que se preparava para disputar a eleição presidencial pela terceira vez. “Como homem público, pregava a defesa dos interesses das camadas menos privilegiadas da população e, por meio de ações paternalistas, angariava apoio popular. A fama de administrador ousado e dinâmico cresceu, no entanto, paralelamente às denúncias de corrupção em seus governos”, afirma a historiadora Luiza Cristina Villaméa Cotta, da Universidade de São Paulo, na tese Adhemar de Barros (1901-1969): a origem do “rouba, mas faz”.
Ítalo conta que o próprio Ademar teria criado para si o bordão “rouba, mas faz”, que buscava conciliar a imagem do político fazedor de obras, criador do Hospital das Clínicas e da Rodovia Anchieta, com as frequentes denúncias de corrupção. Logo no primeiro comício ao lado de Ademar, em uma perua Kombi na Vila Maria, zona norte da capital, Ítalo viu um morador receber o político aos gritos de “ladrão”. O ofendido reagiu na hora: “Ladrão é a mamãezinha”.
Apesar da fama do antigo líder, Ítalo defende que ele não embolsava o dinheiro das negociatas em que se envolvia. “Eu penso que o doutor Ademar, para ele, não pegava nada. O doutor Rui é que amealhava tudo”, afirma. “Doutor Rui” era um código usado nos meios políticos para se referir à amante de Ademar, Ana Capriglione. Ela chegou a manter um cofre com o equivalente a US$ 2,4 milhões em sua casa no Rio de Janeiro. O tal cofre acabaria roubado, em 1969, por guerrilheiros da VAR-Palmares – grupo de combate à ditadura que reunia, entre seus membros, a atual presidenta Dilma Rousseff. Ana jamais denunciou o roubo à polícia.
Para Ítalo, os ladrões do seu tempo eram melhores. “Eram corruptos temerosos, que tinham medo das repercussões negativas. O corrupto de hoje é um despudorado”, compara. Temores e pudores à parte, não faltam malas carregadas de dinheiro vivo nas histórias que conta sobre o velho Ademar. Uma dessas malas teria ido parar no caixa 2 de um dos principais inimigos do ademarismo, Jânio Quadros, durante a disputa pela Prefeitura paulistana de 1953. O dinheiro era um oferecimento do próprio Ademar, no intuito de prejudicar Francisco Antônio Cardoso, rival de Jânio na disputa, em uma típica operação de fogo amigo. É que, embora fizesse parte do Partido Social Progressista (PSP), mesma legenda de Ademar, Cardoso tinha como padrinho político o então governador Lucas Nogueira Garcez, que havia rompido com o cacique do partido.
Segundo Ítalo, Ademar confiou a mala ao seu correligionário Cantídio Sampaio, que a fez chegar às mãos do janista Anselmo Farabulini Júnior. “A campanha de Jânio recebeu uma grande contribuição, de 800 mil cruzeiros em espécie, do doutor Ademar”, diz. Curiosamente, Jânio venceria a disputa daquele ano usando como trunfo a suposta pobreza da sua candidatura, alimentada por discursos em cima de caixote e sanduíches de mortadela mastigados sobre o meio-fio.
Ítalo conta que chegou a ver o governador Ademar retirar maços de dinheiro de uma mala velha mantida embaixo da mesa do seu gabinete e entregá-los para uma freira que pedia recursos para obras sociais. “Ele fazia das tripas coração pelo povo”, afirma. Com todos os senões, a descrição que Ítalo faz do seu antigo líder é respeitosa. Segundo ele, Ademar de Barros “era um latifundiário que desceu do palanque, pôs o paletó no braço e se misturou com o povo”.
Deus, pátria e família
Ítalo Fittipaldi (parente distante dos renomados pilotos de automobilismo) entrou para a política a convite do amigo Hilário Torloni, que anos depois tornou-se vice-governador de São Paulo. “Extremamente contra as esquerdas comunistas”, filiou-se ao Partido de Representação Popular (PRP), fundado por Plínio Salgado, ideólogo do movimento integralista, de inspiração fascista. “Os princípios do partido eram Deus, Pátria e família”, lembra.
Deixou o PRP em 1957, quando o partido integralista apoiou a candidatura de Prestes Maia para a Prefeitura. Ítalo preferiu apoiar Ademar de Barros, que “não tinha nenhum ranço de esquerda”. Foi quando entrou para o PSP, iniciando sua longa trajetória como ademarista. Mais tarde, como deputado federal, passaria pela Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de apoio ao governo militar, e pelo Partido Democrático Social (PDS).
Uma das histórias que Ítalo gosta que contar é a da eleição da Mesa Diretora da 2ª Legislatura da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), em 1952, quando era presidente do diretório municipal de seu partido. O candidato favorito era João Sampaio, do PR, uma “vetusta figura” ornada de barbas brancas, herdeiro das velhas tradições do antigo Partido Republicano Paulista (também PRP), legenda que dominou o ambiente político da República Velha. Correndo por fora, estava “um rapaz anódino”, chamado William Salem, do PSP, que aparecia pouco, mas vinha fazendo um bom trabalho de negociação nos bastidores. Quando os votos foram contados, os vereadores tomaram um susto: a eleição entre os 45 edis havia terminado empatada, 22 a 22. Descobriram que o aristocrático Sampaio havia votado em branco, por achar “repugnante” para um cavalheiro de sua estirpe votar em si mesmo.
Enquanto os vereadores preparavam nova eleição e apoiadores de Sampaio tentavam convencê-lo a aceitar a indignidade de votar em si mesmo, Salem ganhou tempo para mudar a cabeça de alguns parlamentares que não estavam tão seguros de seus votos. Resultado: no segundo pleito, o azarão venceu. “O acordo era para uma eleição, não duas”, justificaram os vereadores que mudaram de lado. Graças à conquista da presidência da CMSP, Salem assumiu o cargo de prefeito de São Paulo em 1955, com a saída de Jânio Quadros e do vice-prefeito, Porfírio da Paz, eleitos governador e vice-governador paulistas.
Memória vem, história vai, a tarde vai chegando ao fim e eu me despeço de Ítalo. Risonho, ele promete contar mais histórias se sobreviver à cirurgia do dia seguinte. Se o pior acontecer, diz que mandará lembranças a São Pedro.
O blefe e o general
O ex-vereador sobreviveu, mas precisou de algumas semanas e de sessões de fisioterapia para encarar uma nova entrevista. Nossa segunda conversa acontece em 13 de abril, na casa onde ele vive com a filha e os dois netos, em Bertioga, litoral norte paulista. Mudaram para lá após a morte da esposa, Yolanda, há 13 anos. É um sobrado simples, numa rua de terra. Claramente, o ademarista que convivia com malas de dinheiro não enriqueceu com a política.
Hoje Ítalo é quem nos recebe como uma “vetusta figura”, em camisa de mangas compridas, apoiado numa bengala. Mostra com carinho o quadro de um pássaro, que conta ter ganhado do artista pernambucano Francisco Brennand, quando visitou seu ateliê. A obra era uma encomenda para o embaixador americano Lincoln Gordon, mas Ítalo se mostrou tão encantado com a imagem que Brennand resolveu dá-la de presente ao político. “Depois eu digo para o gringo que o quadro sumiu numa enxurrada”, teria dito Brennand.
Aproveito para perguntar o que Ítalo achou dos pequenos grupos que, no dia anterior, haviam protestado na Avenida Paulista pedindo intervenção militar. Ele rejeita a ideia. “A primeira intervenção, em 1964, fracassou, com todas as honras, porque Castelo Branco não conseguiu fazer a devolução do poder aos civis”, afirma, referindo-se ao primeiro presidente do governo militar.
Em 64, Ítalo estava ao lado de Ademar de Barros quando o então governador assumiu papel de liderança no golpe de Estado que derrubou o presidente João Goulart, o Jango, e instituiu uma ditadura militar que só acabaria após 21 anos e 434 mortos e desaparecidos, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade. Até hoje, ainda defende a ação daqueles dias. “A nação não estava aceitando bem o que se passava. A palavra de ordem das autoridades era muito desrespeitada e havia um entrelaçamento muito grande com o comunismo”, diz.
HONRARIA – Com Yolanda, recebe do vereador Antonio Carlos Rodrigues o Título de Cidadão Paulistano, concedido em 1981
Equipe de Eventos/CMSP
Na noite de 31 de março, viu Ademar convocar uma cadeia estadual de rádio e televisão para contar que a revolta militar acabava de receber o apoio do general Amauri Kruel, comandante do 2º Exército, sediado em São Paulo. Pouco depois, Ítalo descobriu que o anúncio do apoio de Kruel, considerado fundamental para o sucesso do golpe, não passava de um blefe. Acompanhando o governador numa visita em comitiva à casa de Kruel, no bairro paulistano Jardim Paulista, ouviu Ademar avisar ao seu secretário de Segurança, general Aldévio Barbosa de Lemos, antes de entrar sozinho na residência: “Se passarem 15 minutos e eu não me manifestar, você entra e dá voz de prisão para o general”. Nem foi preciso. Dali a pouco, Ademar acenava da janela para o restante da comitiva entrar. O general mostrou-se satisfeito com o anúncio feito pelo governador, mesmo que à sua revelia. “Ademar, você salvou a minha tranquilidade. O Jango vai pensar que é coisa sua, como de fato é, mas você me salvou junto a meus colegas. Eles viriam aqui me prender e eu teria que reagir”, teria dito Kruel.
A entrevista é interrompida pela filha de Ítalo, Ana Maria, 44 anos, ao passar pela sala de estar carregando os pratos e tambores de uma bateria. Ao lado dela vão os filhos, Lucas, de 15 anos, e Henrique, de 3, netos de Ítalo. O antigo político conservador, quem diria, tem uma filha roqueira com os braços cobertos por tatuagens, que trabalha agenciando shows para bandas de rock em bares do litoral. “Ela nunca me pediu autorização para nenhuma tatuagem. Eu não gosto”, reclama. Ana conta mais: “A primeira tatoo eu fiz com 14 anos. Pedi dinheiro dizendo que era temporária. Ele acreditou e está aí até hoje”. Pai e filha riem juntos.
A maior decepção
Na conversa em Bertioga, Ítalo reconta alguns dos episódios narrados um mês antes, em São Paulo. Pensa que, se uma história é boa, não carece de ineditismo. “Essa eu já contei? Pois vou repetir”, diz. Uma delas é a da tentativa fracassada de articulação entre Jânio Quadros, então no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com o filho de seu arquinimigo político, Ademar de Barros Filho, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), em 1985. Na disputa pela Prefeitura de São Paulo, Jânio procurou Ítalo para sugerir que Ademarzinho entrasse como vice em sua chapa. Em troca, receberia de Jânio apoio para se lançar candidato a governador.
Realizar a união entre janistas e ademaristas teria sido um feito histórico, quem sabe um fecho de ouro para a carreira política de Ítalo, bem do jeito que ele gostava de atuar: nos bastidores, fazendo as histórias dos protagonistas acontecerem. Após ouvir a proposta de Jânio, recebeu sinal verde de Ademarzinho para viajar ao Rio de Janeiro e ouvir Leonel Brizola, líder do PDT. Brizola aceitou a aliança e ainda disse para Doutel de Andrade, um de seus aliados, que sentia urticárias só de ouvir o nome Jânio: “Tchê, política se faz com a cabeça, não com a epiderme”.
“Ademarzinho tinha tudo em frente. Era só embarcar no carro, que eu já havia aberto a porta para ele.” Mas uma reunião na casa de Ademarzinho mudou tudo. Lá, outros aliados, contemporâneos do velho Ademar, recomendaram rejeitar a proposta de acordo. Argumentaram que os ataques desferidos por Jânio, duas décadas antes, não podiam ser esquecidos. “As lágrimas que Jânio provocou em dona Leonor ainda não secaram”, disse um deles, mencionando o nome da mãe de Ademarzinho. O filho de Ademar de Barros desistiu da aliança.
“Foi uma das maiores decepções da minha vida”, desabafa Ítalo. Para ele, Ademarzinho se deixou levar por colegas que queriam apenas impedir a sua ascensão política. “Ele foi vítima da inveja dos próprios companheiros.” Pouco depois, Ítalo Fittipaldi abandonou a vida pública.
Antes de encerrar a entrevista, Ítalo fala, brincando, de outro acordo, que, este sim, conseguiu costurar. Conta que, no mês anterior, durante a cirurgia, tudo ficou escuro e ele se viu, de repente, numa nuvem, ao lado de um senhor barbudo, com um chaveiro na mão. “Usando a lábia típica de um político, consegui que ele me deixasse ficar ali mesmo, trabalhando como auxiliar de portaria. Quando se distraíram, voltei e acordei no hospital”, diz. “Agora, pode ser que eu chegue aos cem anos.”
Saiba mais
Adhemar de Barros (1901-1969): a origem do ‘rouba, mas faz’. Luiza Cristina Villaméa Cotta. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH-USP. 2008.
Comente sobre essa matéria: |
Envie críticas ou sugestões:Email: apartes@saopaulo.sp.leg.br |