O voo do João de Barros
Vereador por poucos dias, o aviador foi pioneiro na travessia aérea do Oceano Atlântico
Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou Leandro Uliam
Comandante João Ribeiro de Barros é um nome geralmente relacionado à rodovia que liga Jaú a Bauru, no interior do Estado de São Paulo. Pouquíssimo mencionado nos livros de história, o aviador foi, no entanto, um dos pioneiros da aviação no Brasil, com uma trajetória pela política que a própria família pouco conhece. Rico e jovem, aos 27 anos o paulista de Jaú (SP) tornou-se celebridade, na década de 1920, como o primeiro piloto das Américas a comandar uma travessia aérea do Oceano Atlântico sem escalas nem ajuda de navios.
Sem apoio financeiro do governo brasileiro ou de empresas, o comandante vendeu sua parte na herança paterna para comprar a aeronave com que faria a viagem: um hidroavião italiano Savoia-Marchetti modelo S-55, de madeira, com mais de quatro toneladas, em precário estado de conservação e já usado em uma frustrada tentativa de travessia oceânica.
Logo no teste pilotado por Barros, a máquina quase afundou ao pousar em um lago de Sesto Calende, na Itália, já que a parte inferior estava podre. Em 16 de outubro de 1926, depois de uma modificação geral idealizada pelo jauense, o hidroavião, batizado de Jahú, começava oficialmente a travessia a partir de Gênova, na Itália. Além do piloto, faziam parte da equipe o copiloto Arthur Cunha, o navegador Newton Braga e o mecânico Vasco Cinquini.
Um dia antes da partida, o jornal O Estado de S. Paulo registrava a euforia dos brasileiros: referindo-se ao comandante como “arrojado”, publicou os “ardentes votos” da Câmara Italiana de Comércio ao “valoroso aviador” e desejou que o “heroico empreendimento” obtivesse êxito. Mal sabiam que, poucas horas após deixar Gênova, início da jornada (veja o mapa mais abaixo), o piloto e sua equipe enfrentariam o primeiro de vários testes de nervos.
Na altura do Golfo de Valência, na Espanha, os motores começaram a falhar devido a um problema na alimentação automática de gasolina, o que obrigou a tripulação ao extenuante uso das bombas manuais. Os danos no motor e em um dos botes forçaram o grupo a descer em Alicante, no Mediterrâneo espanhol. Sem aviso prévio sobre o pouso, as autoridades locais prenderam todos os tripulantes, que só ganharam a liberdade com a ajuda da Embaixada do Brasil em Madri.
Na escala seguinte (em Gibraltar, também no Mediterrâneo), o Consulado brasileiro local emitiu um laudo técnico confirmando as suspeitas da tripulação de que houve sabotagem ao Jahú. Foram colocados sabão caseiro, terra e água no reservatório de combustível do avião e, por isso, o aparelho teve de ser submetido a um novo conserto. O reparo foi feito em Las Palmas de Gran Canaria, Espanha, antes de seguir para a ilha africana de Santiago, na atual República de Cabo Verde. Na África, Barros contraiu malária, teve de trocar o copiloto (no lugar de Arthur Cunha, entrou João Negrão) e ainda comandar uma reforma completa no motor do hidroavião.
“A equipe foi obrigada a reparar inclusive o bote salva-vidas porque, quando o avião pousou, avariou o casco”, conta o sobrinho Rubens Ribeiro de Barros, de 81 anos. Filho de Osório Ribeiro de Barros, ele conviveu por 13 anos com o tio aviador e dele ouviu muitas histórias. “Comprar equipamento na Europa era algo demorado e essas peças eram da Itália. O processo de compra e conserto demorou meses”, explica Rubens.
TRIUNFO
Na África, Barros recebeu da mãe um telegrama de incentivo, que dizia: “Aviador Barros. Aplaudimos sua atitude. […] Paralisação do reide [façanha aérea] será fracasso. Asas avião representam bandeira brasileira”. Em resposta, o filho escreveu: “A viagem de qualquer maneira será feita”.
Em 28 de abril de 1927, com o avião refeito, o comandante finalmente venceria em 12 horas os 2,4 mil quilômetros que ligam Cabo Verde à ilha de Fernando de Noronha, primeira parada no Brasil. Ao chegar, uma das hélices estava partida. De maio a agosto, o Jahú ainda fez escalas em Natal, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos, antes do pouso final em Santo Amaro (onde hoje fica a Represa Guarapiranga, na cidade de São Paulo), em 1º de agosto.
A recepção aos heróis foi descrita por José Ribeiro de Barros, irmão do aviador, no livro História heroica da aviação. Segundo ele, a população estava “convulsionada de espírito cívico” pelo “instante que passaria à história do século”. No livro João Ribeiro de Barros, o historiador José Raphael Toscano narra detalhes: “o povo brasileiro soube premiar seu herói, oferecendo-lhe mais de cem medalhas de ouro e platina, adornadas de pedras preciosas, dezenas de cartões de ouro e troféus, tudo em comemoração ao patriótico empreendimento que se tornou justo motivo de expansão do orgulho nacional”.
Na capa do Estado de S. Paulo de 7 de agosto de 1927, o registro de um dia de celebridades vivido pelos tripulantes na véspera: foram recebidos na Força Pública e homenageados com apresentações de esquadrilha aérea e das equipes de equitação e ginástica, “sempre ovacionados pela grande multidão que estacionava na avenida [Tiradentes]”. Mais tarde, compareceram a uma sessão solene na Câmara Italiana de Comércio, onde o cônsul da Itália e o presidente da entidade os esperavam.
Ao sobrinho Rubens, Barros contava os detalhes e dificuldades da viagem intercontinental. Um deles é que a travessia havia sido feita apenas com ajuda de bússola, para determinar direções horizontais; altímetro, para medir a altitude; e bomba de fumaça, para calcular a velocidade: “eles a lançavam e marcavam em quanto tempo atingia a água”, explica o sobrinho.
POUSO BREVE
No dia 3 de janeiro de 1927, quando a travessia oceânica era apenas um plano, o aviador já era tema de lei aprovada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), que o imortalizou como nome de uma via (ainda hoje denominada Ribeiro de Barros, na zona oeste da capital). “Esse moço que, no ‘raid’ admirável que vem fazendo, tem patenteado, aos olhos do mundo, o quanto podem a bravura, o civismo, a abnegação e, sobretudo, a persistência de nossa gente”, disse em Plenário o vereador Diógenes de Lima, proponente do projeto de lei sobre a denominação da via. Segundo o parlamentar, a proposta era legitimada por um abaixo-assinado de proprietários e moradores da rua que receberia o nome do piloto.
Nove anos mais tarde, o comandante foi o único eleito pela Ação Integralista Brasileira (AIB) para a CMSP, com 1.426 votos. “Os chefes integralistas recomendaram aos seus eleitores que descarreguem seus sufrágios no candidato João Ribeiro de Barros”, escreveu a Folha da Manhã de 5 de julho de 1936.
Como candidato, o slogan de campanha do piloto foi “Contra o aumento dos impostos”, usado também pelos demais concorrentes integralistas naquele ano. Assumiu no dia 9 de julho, vestido com o uniforme verde do partido, e, antes de fazer o juramento devido, de respeito às leis e às Constituições Federal e Estadual, bradou “em nome de Deus, anauê!”. A saudação, de origem tupi, foi adotada primeiro pelos escoteiros e depois pelos integralistas.
Sem documentar os motivos, Barros renunciou em 25 de julho de 1936. Se continuasse na Câmara, seu mandato terminaria em 19 de novembro do ano seguinte, com o fechamento do Legislativo pelo Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas.
A Ação Integralista Brasileira era composta, principalmente, por estreantes na política, como o aviador, e por membros da classe média, “intencionada a romper com os grupos chefiados por coronéis, latifundiários, cafeicultores ou que agiam a mando dessas pessoas”, como explica o historiador Renato Alencar Dotta, que pesquisa o integralismo brasileiro como doutorando na Universidade de São Paulo (USP).
O movimento cultural e político era de extrema direita e fazia oposição autoritária, inspirada no nazismo e no fascismo. Segundo Dotta, a história pode explicar o que teria atraído Barros e outros aviadores à organização: “alguns heróis da modernidade tinham inclinação política pelo que havia mais à direita, como o fascismo, dada a sua veneração pelos super-homens”. Na época, completa o historiador, “o grande lance eram as acrobacias e os voos solo, que eram muito comentados e transformavam os pilotos em heróis”.
A AIB, que virou partido em 1935, foi fundada em 1932 pelo jornalista e escritor Plínio Salgado, dois anos depois de uma viagem à Itália, onde se impressionou com o fascismo. O líder defendia o Estado com plenos poderes e combatia a lógica materialista do capitalismo e do comunismo. Esses temas apareceram com frequência no Plenário da Câmara, durante a legislatura da qual Barros participou. A manifestação desse ponto de vista vinha do suplente que assumiu sua vaga, José Ferreira Alves Cyrillo.
Assim, mesmo ausente dos debates, João Ribeiro de Barros abriu caminho para a presença do integralismo na Câmara. Isso deu regularidade à polarização entre os temas integralistas e os da liberal-democracia, que à época se repetia em todos os meios políticos do Brasil, segundo o consultor de história da CMSP, Ubirajara Prestes Filho, e a historiadora Marilia Gabriela Buonavita, em artigo para o livro Paulistânia eleitoral. De acordo com eles, um ponto em comum nos dois polos de discussão era o anticomunismo.
Na sessão de 22 de agosto de 1936, por exemplo, o suplente Cyrillo acusou a liberal-democracia de transformar o Brasil em “uma colônia de banqueiros, esquecendo, muitas vezes, os interesses do povo, e só percebendo agora, com esse movimento comunista, que o Brasil está na agonia”. Com 405 votos, Cyrillo cumpriu o mandato até o fechamento do Legislativo pelo Estado Novo. Depois, foi eleito para a primeira legislatura da CMSP após a abertura democrática, de 1948 a 1951, pelo Partido Social Democrático, que reunia empresários e membros da classe média.
ATAQUES
A ata da posse na CMSP, em 1936, revela que João Ribeiro de Barros se candidatou a todos os cargos da Mesa Diretora da Casa. Para a Presidência, recebeu apenas 1 voto, enquanto o candidato mais votado teve 11. O Legislativo paulistano tinha, naquele ano, 20 vereadores, de três partidos. Barros também tentou se eleger vice-presidente, primeiro-secretário e segundo-secretário. Em todas as tentativas, recebeu apenas 1 voto, provavelmente o dele próprio.
Essas não foram as primeiras derrotas trazidas pela política à vida de Barros. Em 1930, foi impedido pelo governo Vargas de atravessar novamente o Atlântico, no sentido inverso. No dia 13 de agosto daquele ano, o jornal Correio Paulistano noticiou que, há meses, o “intrépido aviador comandante João Ribeiro de Barros” planejava voar de Santos, litoral de São Paulo, ao continente europeu. Segundo o periódico, as peças do “possante aparelho” já tinham sido compradas na Europa e a montagem havia sido feita no litoral santista. “O aparelho, que já se acha pronto, recebeu o nome de Margarida, em homenagem à memória da progenitora do herói”, dizia a reportagem.
Às vésperas de voar, no entanto, o avião Margarida foi confiscado a mando de Getúlio Vargas, que havia acabado de instalar provisoriamente a Presidência da República. Decepcionado, João comprou um bilhete para viajar o mundo pelo mar e retornou em 1932, para apoiar a Revolução Constitucionalista. Doou para a causa todas as honrarias em ouro que recebera pela travessia do Atlântico.
Os ataques de Vargas ao comandante não pararam. Durante o Estado Novo, vivendo na fazenda da família, em Jaú, foi abordado pela polícia sob acusação de publicar um jornal clandestino contra o governo federal. Foi levado à prisão em São Paulo, conta José Raphael Toscano em João Ribeiro de Barros, e solto após vasculharem sua casa na capital paulista sem encontrar nada.
A adesão ao integralismo pesou na conta do aviador. As relações entre sua legenda e o Estado Novo pioraram muito com a Intentona Integralista, que em 1938 arquitetou sem sucesso a invasão da residência presidencial, para depor Vargas. Todos os ataques, que se estenderam a outras cidades, fracassaram. Uma das causas do levante foi o fechamento, pelo governo brasileiro, de todos os partidos em 1937, ano anterior àquele em que ocorreriam as eleições presidenciais nas quais Plínio Salgado sairia candidato.
A conspiração deixou marcas também no irmão José Ribeiro de Barros, que participou do movimento e, por isso, teve de dar explicações ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo. De janeiro a abril de 1938, José foi gerente do jornal integralista Acção, publicado entre outubro de 1936 e abril de 1938. Representante da ideologia da AIB e dirigido por Miguel Reale, o diário paulista “tinha como seus adversários o judaísmo, o liberalismo, o capitalismo internacional, o socialismo e a maçonaria”, explicam Maria Luiza Carneiro e Boris Kossoy no livro A imprensa confiscada pelo Deops.
Sob a gerência de José, em 22 de março de 1938 o jornal publica o artigo O judaísmo ao lado da Espanha comunista, exemplo da associação, sempre usada pelo jornal, do termo “judeu” aos conceitos de capitalismo ou socialismo, de forma depreciativa. O Acção pertencia à rede Sigma Jornais Reunidos, cujos impressos “caracterizavam a ascensão das ideias autoritárias de direita no Brasil identificadas com o discurso nazifascista em voga na Itália e na Alemanha”, segundo Carneiro e Kossoy.
Outro veículo da Sigma, o jornal A Offensiva publicou, em agosto de 1935, a primeira fotografia de João Ribeiro de Barros como integralista, mostrando o aviador em meio a autoridades do movimento após prestar juramento à AIB.
DESTINO FINAL
Segundo Genésio Pereira Filho, 95 anos, sobrinho e ex-assistente de Plínio Salgado, seu tio e o piloto de Jaú tinham uma relação próxima, de reuniões frequentes e de amizade. “Conheci João Ribeiro de Barros pessoalmente porque ele foi integralista, muito amigo do meu tio Plínio e, além disso, um belo papo, muita cultura”, lembra.
Histórias como essa são desconhecidas para familiares, estudiosos do integralismo e da cidade de Jaú procurados pela Apartes. Vários sequer tinham ouvido falar sobre a passagem do aviador pela Câmara Municipal de São Paulo ou pela AIB. Para piorar, em 1936 nenhuma edição do diário Comércio do Jahú noticiou a campanha ou a eleição do aviador. “O que me contaram é que ele não era integralista. Talvez tenha havido preconceito da família”, afirma o sobrinho Rubens Ribeiro de Barros.
A família de João, tradicional no ramo agropecuário, era formada pelo pai, Sebastião Ribeiro de Barros, pela mãe, Margarida de Oliveira Barros, e pelos filhos Osório, Thereza, João, José, Ismael, Marta e Celina. Católica, Margarida foi também pioneira ao abrir uma creche em Jaú para receber os filhos dos negros, enquanto estes trabalhavam.
Nascido nesse ambiente rural, João Ribeiro de Barros mudou-se para a capital paulista, onde estudou direito. Ingressou na faculdade do Largo de São Francisco (hoje pertencente à USP) em 1918. No ano seguinte, abandonou o curso para aprender navegação aérea e mecânica de aviões nos Estados Unidos. Voltou ao Brasil em 1921 e dois anos depois, aos 23, graduou-se como piloto na Liga Internacional dos Aviadores francesa. Nos três anos seguintes, antes de iniciar a travessia atlântica, comandou várias viagens aéreas pelo País e costumava se apresentar em espetáculos de acrobacia aérea.
Recluso em Jaú no fim da vida, o aviador passava bastante tempo ao lado da família, narrando às crianças as histórias sobre suas aventuras. “Ele se reunia comigo e meus amiguinhos na escada, pagava sorvete ou pastel e ficávamos ouvindo extasiados enquanto ele falava sobre a travessia”, lembra o sobrinho Rubens.
Em 1947, com 47 anos, o comandante morreu na mesma fazenda em que nasceu. Não se casou e nem teve filhos. “Ele tinha amigos, era simples, próximo da família e se dava com todos”, conta Rubens. “Após a prisão, ele ficou muito triste, se isolou no campo”, recorda. Segundo os médicos disseram à família, as possíveis causas da morte foram um rompimento no baço ou as consequências da malária.
“João não teve tempo nem de fazer a revisão sobre sua participação no integralismo”, diz o historiador Renato Dotta. Para ele, as ações nazistas e fascistas da Segunda Guerra Mundial levaram muitos integralistas a fazerem suas renúncias públicas ao movimento. “Ser integralista após a Segunda Guerra ficou incômodo para muita gente”, explica Dotta.
Uma música feita para homenagear Barros e sua equipe, quando voltaram da travessia, previa que o Brasil os recolheria “ao seio da história”. Mas a realidade é que, exceto homenagens isoladas, como um mausoléu construído em frente à igreja matriz de Jaú, o comandante e seu feito não têm o devido reconhecimento dos brasileiros. Em fevereiro, o Museu TAM Asas de um Sonho, em São Carlos (SP), que abriga o Jahú, suspendeu as atividades e a aeronave ficará inacessível ao público por tempo indeterminado. Segundo o professor da USP Fernando Catalano, doutor em engenharia aeronáutica, os motores do avião são os dois últimos remanescentes no mundo.
Uma das poucas iniciativas de perpetuar a conquista brasileira na memória popular é a lei estadual 9.933/1998, que transformou o 28 de abril no dia de “comemoração e divulgação da travessia do Oceano Atlântico sem escalas”.
SAIBA MAIS
Livro
História heroica da aviação: reide Gênova-Santo Amaro. José Ribeiro de Barros. Museu de Aeronáutica. Disponível para consulta na Biblioteca da CMSP