Nº04 – Barulho

Sem pancadão, mas com opção

Câmara aprova lei que permite multar som alto em carros estacionados e pretende criar alternativas de lazer aos jovens

Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br

PANCADÃO: Jovens promovem festa com bebidas ao redor de carro estacionado

Gute Garbelotto/CMSP

O som pode chegar a 110 decibéis. É comparável ao de uma britadeira e pode levar à surdez instantânea. A vibração dispara alarmes dos carros e faz tremer janelas e portas das casas próximas. Esse barulho potente chega ao quarto de Jacir Fernando, técnico em química aposentado de 61 anos, morador do Jardim São Luiz, zona sul de São Paulo, e o faz “pular” involuntariamente na cama aos finais de semana.

O que provoca tudo isso é um fenômeno urbano bem conhecido dos paulistanos: as festas ao redor de carros estacionados e com música excessivamente alta. “Além de prejudicar os vizinhos, o alto nível sonoro atrapalha o próprio dono do carro. Você para perto dele e estremece. Além de tudo, é um problema de segurança sério, porque aquele fulano não ouve nada, pode passar um caminhão por cima que ele não escuta”, comenta o professor da Universidade de São Paulo (USP) José Fernando Cremonesi, mestre em Ruídos Urbanos e doutor em Ruídos Industriais.

INSTRUMENTO – Vereador Dalton Silvano: “Não havia punição para donos de carros estacionados com som alto”

Equipe de Eventos/CMSP

O aposentado Jacir relata o sofrimento vivido nas noites de sexta para sábado e de sábado para domingo: “Arrebentam a casa da gente; bate vidro, janela, sem hora nem limite para o barulho”. Nos últimos meses, entretanto, ele notou que a situação melhorou muito e supõe que seja efeito da Lei 15.777/2013, que proíbe a emissão de som elevado por automóveis parados, especialmente à noite. Criada em maio de 2013, a Lei do Pancadão foi proposta pelos vereadores da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) Coronel Camilo (PSD), Dalton Silvano (PV) e o atualmente senador Antonio Carlos Rodrigues (PR). “Já tenho conseguido dormir em casa. Se mexer no bolso, o pessoal atende”, diz o aposentado, em referência às multas previstas no texto.

Quem não cumprir a lei pagará multa de R$ 1 mil. Se não baixar o volume, o responsável pelo carro pode ter seu aparelho de som ou o próprio veículo apreendido “até o restabelecimento da ordem pública”. Se a mesma infração ocorrer novamente em menos de 30 dias, a multa sobe para R$ 2 mil. A partir da terceira infração, o valor vai a R$ 4 mil. As regras não atingem veículos usados para publicidade e manifestações sindicais ou populares, além de outros casos previamente autorizados.

Assim como Jacir, mais moradores sentiram que o medo da multa fez diminuir o barulho. É o caso do MC Diih, nome profissional de Diego Pereira da Silva, 23 anos, que mora em Santana, na zona norte, e faz shows desde reggae a funk: “Não trabalho com carro nas minhas apresentações, mas sou do funk na comunidade e a galera fica meio assim, já abaixa o som. Ultimamente, percebo as pessoas falando sobre a multa”.

FUNK – Para o MC Diih, se o jovem for proibido de se divertir de um modo considerado nocivo, buscará uma opção igualmente negativa

Divulgação

Apesar de surtir efeitos, Coronel Camilo lembra que, até o fechamento desta edição, a lei ainda não havia sido regulamentada pelo Executivo, que deve determinar quem fiscalizará e quantos decibéis serão suficientes para considerar um som abusivamente alto, entre outros pontos. O prazo para a regulamentação terminou em 29 de julho. Por isso, o vereador protocolou um pedido à Comissão Permanente de Administração Pública da CMSP para que questione o prefeito Fernando Haddad (PT) sobre o motivo do atraso.

O vereador Dalton Silvano lembra que, sem a lei, as autoridades não têm base para punir quem abusa do volume em veículos estacionados. Só é possível a punição por crimes isolados e às vezes associados, como perturbação do sossego ou venda ilegal de bebidas alcoólicas, que requerem testemunhas. O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) prevê multa para veículos com som elevado, mas os automóveis devem estar em movimento. A Prefeitura ainda pode atuar sobre o comércio irregular e o uso inadequado do espaço para estacionar, mas a fiscalização pode ser demorada. Já o Programa de Silêncio Urbano (Psiu), do Executivo municipal, atua apenas dentro de estabelecimentos, como bares e boates. “Com a lei em prática, será muito fácil terminar com esse jogo de empurra, porque ela dá poder de sanção financeira forte e permite apreensão do veículo ou som num posto, bar, terreno, área pública, sem a necessidade de testemunha”, diz Coronel Camilo.

Em sua experiência como militar, o parlamentar do PSD notou que os encontros ao redor de carros com som abusivo iniciam 90% do que ele denomina “pancadões”: festas com música alta nas vias públicas, sem autorização e estrutura fornecidas pelas autoridades, que se tornam polo de atração para o uso de bebidas e entorpecentes, violência, corrupção de jovens e “bagunça generalizada”. Ele acredita que o Poder Público peca pela demora na resposta ao cidadão: “O trabalho tem de ser com inteligência, com antecipação, antes de as pessoas se embriagarem, não respeitarem mais ninguém e ter confronto”.

Gastar energia

PRECAUÇÃO – Vereador Coronel Camilo acredita que o Poder Público deve evitar a desordem antes que ela se instale

Gute Garbelotto/CMSP

MC Diih é crítico da informalidade dos bailes. Conta que recebe amigos estrangeiros e tem receio de levá-los às festas de rua por conta da falta de banheiros, por exemplo, e da possibilidade de abordagem policial. Contrariado, leva os visitantes a casas noturnas, mesmo com muita vontade de apresentá-los à comunidade. Diego vê mais vantagens na formalização: os comerciantes podem atuar em parceria com o Estado e ajudar a movimentar a economia.

O músico defende que, se existissem opções culturais, em espaços estruturados pelo governo, não seriam necessárias as abordagens
policiais e a proibição de bailes informais. Ele também teme que, ao serem simplesmente proibidos de exercer um lazer considerado nocivo à sociedade, os jovens procurem alternativas igualmente negativas: “Já não tem educação, não tem uma cultura tão forte, e o que tem o governo cada vez mais tira, tira, entende?”.

Coronel Camilo conversou sobre isso com Juca Ferreira, secretário municipal de Cultura, e com Netinho de Paula, secretário especial de Promoção da Igualdade Racial, e concluiu que a Prefeitura tem
condições de propiciar novos locais para a diversão dos paulistanos. “Há igrejas com área livre para shows, CEUs subutilizados e outros espaços que já podem ser direcionados para o lazer e onde o Poder Público pode pôr um mínimo de regras, para que não haja consumo de drogas”, disse o vereador. Além disso, nas conversas com os secretários o parlamentar ofereceu a possibilidade de apresentar emendas ao Orçamento para gerar áreas de lazer, principalmente, na periferia. “Se não criarmos espaços, a lei não vai resolver, porque o jovem quer se divertir, gastar energia. A ideia é melhorar a vida das pessoas, o que significa termos ordem, mas sem cercear a diversão”, diz Camilo.

Discriminação musical

Assis Ângelo, presidente do Instituto Memória Brasil e estudioso de cultura popular, diz que o som usado nos pancadões não pode ser comparado às valsas e chorinhos das serestas noturnas do século passado, que incomodavam os trabalhadores ansiosos por uma boa noite de sono, levavam os cantores para a prisão, mas, ao mesmo tempo, deixaram um precioso legado musical. “Não tenho medo de ser acusado de discriminação musical, porque não é de cultura musical que se está tratando, mas rigorosamente de barulho, que deve ser cerceado naturalmente, não no sentido pura e simplesmente de proibir, mas de tirar de circulação um objeto que incomoda a população”, afirma.

Para ele, não há condições de a expressão musical ser de boa qualidade nos eventos ao redor de automóveis, inclusive por conta do volume excessivo.

 

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