Com a palavra

Evangelina Vormittag

Especialista em poluição fala sobre a perspectiva para o ar da capital, que mata cerca de 5 mil pessoas ao ano
Tempo estimado de leitura: 6 minutos

Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou Renata Oliveira | renata.olliver@live.com

Publicada originalmente em jul-dez/2017 – edição nº25

Conhecida como Doutora Poluição, Evangelina Vormittag é médica, doutora em Patologia e Saúde Ambiental, especialista em Patologia Clínica e Microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Gestão de Sustentabilidade pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e idealizadora e presidenta do Instituto Saúde e Sustentabilidade. Sempre presente nas discussões do Legislativo paulistano, ela prevê que a poluição na cidade vai piorar. E alerta: a maior vítima é a população da periferia.

A cidade tem níveis de poluição seguros para a saúde do paulistano?

São Paulo tem um nível de poluição duas vezes e meia o que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas não importa o grau de concentração de poluentes, nem a exposição a eles, para considerá-los substâncias carcinogênicas: está comprovado que existe uma associação do ar poluído como causa do câncer. Primeiramente, o de pulmão, e também o câncer de bexiga, além de uma provável relação com os cânceres de mama e do tecido sanguíneo (como leucemia e linfoma). O ar tóxico é hoje o líder ambiental como causa de morte e adoecimento, ultrapassando fatores como poluição da água e vetores (mosquitos, principalmente). É, também, um dos fatores da primeira causa geral de mortalidade e adoecimento no mundo: as doenças crônicas não transmissíveis, entre elas arritmia, infarto do coração e derrame cerebral. Morrem, ao ano, em torno de 5 mil pessoas por conta da poluição na cidade. Na região metropolitana de São Paulo, são 8 mil pessoas. No Estado, são mais de 17 mil, uma gravíssima situação de saúde pública.

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Evangelina Vormittag, especialista em poluição
Evangelina Vormittag, especialista em poluição

Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Como a ciência comprova a relação entre essas mortes e a poluição?

A poluição mata mais que aids, câncer de mama, de próstata e mais que acidentes de trânsito, mas não aparece como causa das mortes cardiovasculares – assim como o cigarro não aparece como causa do câncer do pulmão e infarto do coração. Tem gente que tem câncer de pulmão e não fuma, tem muita gente que tem câncer de pulmão e fuma. Como a associação é determinada? Por estimativas estatísticas em estudos epidemiológicos (que analisam a relação entre as causas e efeitos nas questões de saúde pública). Quando fizeram a Olimpíada de Munique, em 1972, e a de Pequim, em 2008, os gestores fecharam o centro das cidades para veículos. Aí perceberam que diminuiu o adoecimento de crianças, a falta escolar e a internação por asma. As doenças cardiovasculares apresentam efeitos no corpo humano a longo prazo, de forma silenciosa, diferentemente das respiratórias, que podem se manifestar imediatamente nas pessoas mais sensíveis. Se a concentração de material particulado (poeira inalável fina, que entra no sistema respiratório e causa inflamação e doença) tiver um aumento de 10 microgramas ou mais por metro cúbico de ar em 24 horas, acima de 50 microgramas pode acarretar um aumento de infartos e derrames na cidade até dois dias depois e agravar doenças respiratórias. A mesma coisa acontece quando o metrô entra em greve e as pessoas utilizam mais o transporte público sobre rodas, como o ônibus a diesel. Já quando o ar melhora, o benefício é imediato. A poluição é um efeito da urbanização que deve ser combatido, mas, infelizmente, há empecilhos que dificultam a sensibilização e o conhecimento dessa situação, tanto pela população como pelos prefeitos.

"Pessoas com nível sócioeconômico menor causam menos poluição e sofrem mais as consequências" Evangelina Vormittag

Quais são esses empecilhos?

Existe uma pressão muito grande no Brasil do poder econômico, veicular e industrial. O nível de alerta de poluição que nós temos pela legislação paulista, de 240 microgramas de material particulado (por metro cúbico de ar em 24 horas), é maior do que o limite máximo de 200 microgramas permitidos para estudo experimental em humanos, em que se coloca uma pessoa respirando ar poluído. Alguém já ouviu que o nível de poluição do ar está em alerta no nosso País? Neste ano, mesmo, houve situações em Paris quando a poluição chegou a 100 microgramas, e o governo local proibiu o tráfego no centro, disponibilizou entrada franca no metrô, suspendeu as aulas naquele dia para as crianças não saírem de casa. No Brasil, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente estabeleceu, em 1990, a concentração limite de 150 microgramas de material particulado por metro cúbico de ar em 24 horas, um padrão nacional três vezes maior que o da Organização Mundial da Saúde, cujo teto é de 50 microgramas. O que pensam os gestores ambientais? Que o brasileiro tem um pulmão três vezes mais resistente? Que podem informar à população que o ar está bom, quando faz mal? Como a população poderá se defender ou fazer valer os seus direitos, se não tem conhecimento do que de fato ocorre? Quem mudaria esse cenário? Os próprios gestores ambientais e os legisladores. Falta vontade, coragem e responsabilidade política.

Como o poder público pode contornar esses obstáculos?

A responsabilidade sobre a má qualidade do ar nas cidades se deve muito mais à mobilidade urbana do que às indústrias, que saíram das cidades, e a solução vai muito além de só plantar árvores. É importante combater a emissão de poluentes a partir do diesel do transporte público, substituindo por combustíveis mais limpos e renováveis. Há, também, uma série de leis que precisariam ser cumpridas, como o artigo 104 do Código de Trânsito Brasileiro, vigente desde 1997, que determina a inspeção veicular pelos Estados, mas só o Rio de Janeiro cumpre. Outra legislação, a da Política de Mudança do Clima no Município (lei 14.933/2009), tem um artigo que não será cumprido. Segundo esse artigo, até 2018 o transporte público sobre rodas deveria ter 100% de combustíveis limpos, em substituição ao diesel. O assunto é objeto de embate na Câmara Municipal de São Paulo. O Instituto Saúde e Sustentabilidade acabou de realizar, em parceria com o Greenpeace, uma pesquisa segundo a qual a substituição do diesel por uma composição de matriz energética limpa (elétrica, biodiesel ou híbrido com as duas alternativas) salvaria 13 mil vidas até 2050 e evitaria a perda de R$ 3,8 bilhões à cidade de São Paulo. Com os níveis atuais de poluição de ar, se nada mudar até 2050 serão ocasionadas 178 mil mortes, a um custo de R$ 54 bilhões. A decisão de protelar medidas como essas ocorre à custa de sofrimento humano e perdas precoces de vidas.

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Evangelina Vormittag, médica e fundadora do Instituto Saúde e Sustentabilidade

Foto: Ricardo Rocha/CMSP

A sustentabilidade é vista como artigo de luxo?

Antes se falava em modismo, mas isso já mudou: hoje as pessoas têm mais atitude e consciência sobre a importância da sustentabilidade. Muitos já têm a noção de que existe o problema, de que qualquer pessoa é uma emissora de poluente. Apenas com esse conhecimento é que se consegue buscar a solução, mudar de atitude. Outra coisa é abordar a questão sob o ponto de vista do consumo: é difícil uma pessoa com baixo nível socioeconômico conseguir consumir um detergente que não polui o meio ambiente, ou um saco de lixo biodegradável. Nesse sentido é possível se referir à questão como um artigo de luxo, ao qual nem todo mundo tem acesso. Sou extremamente a favor de haver um incentivo mercadológico para todos os produtos que possam trazem um benefício ao meio ambiente e um retorno para a sociedade. Esses produtos devem ser identificados e valorizados.

Como a poluição tem evoluído na cidade?

O pior momento de poluição do ar foi no final dos anos 1980. Na época, foi tomada uma série de iniciativas, como retirar da cidade as indústrias, que passaram a formar polos industriais no interior. Naquela ocasião também foi criado o programa federal de controle de emissões veiculares. Há pouco tempo, a Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) veio dizer que houve uma redução drástica de poluentes na cidade. Mas uma pesquisa realizada recentemente pelo Instituto de Ciências Atmosféricas, da USP, apontou o contrário: há aumento. Acho que o quadro na cidade vai piorar, pois as políticas atuais não são suficientes para manter ou diminuir o nível de poluição, e as leis ou iniciativas que poderiam melhorar o quadro a curto prazo não foram ou não serão cumpridas.

"O ar tóxico se tornou líder ambiental em morte e adoecimento" Evangelina Vormittag

Há locais com situação melhor?

Entre 2006 e 2011, uma pesquisa feita pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade em 29 cidades paulistas que possuem monitoramento de qualidade do ar mostrou que todas, sem exceção, tinham níveis acima do que é preconizado pela OMS. Entre elas, 11 tinham níveis acima dos existentes na cidade de São Paulo, mostrando que já não é mais verdade que a poluição está concentrada na metrópole. Porque, hoje, grande parte da poluição do ar é veicular, vem da mobilidade urbana, e todas as cidades têm um tráfego intenso.

Qual a importância de ampliar as áreas verdes na capital?

Além de as áreas verdes melhorarem a paisagem e o conforto, têm um papel muito significativo na limpeza do ar. Nos troncos, podem ser verificadas as concentrações de poluentes ao longo do tempo em que a árvore foi crescendo, sendo que árvores no interior de um parque têm marcadores em menor quantidade do que as que estão próximas das vias públicas. Os locais arborizados ainda trazem maior amenidade da temperatura e umidade, o que diminui o efeito da poluição na saúde. Quem mora perto das regiões arborizadas tem maior proteção contra o desenvolvimento de doenças crônicas cardiovasculares e respiratórias. O equilíbrio do microclima local também evita tempestades e alagamentos. Geralmente, as periferias não têm áreas verdes e, além dessa pior condição de adaptação externa ao ar, o interior dos domicílios tem maior insalubridade. Por exemplo, em uma casa com ar-condicionado, você fecha tudo e não tem que respirar o ar externo. A população com nível socioeconômico menor tem também menos acesso à assistência de saúde, a medicamentos, a uma alimentação adequada, à educação. Aí entra a questão da justiça ambiental: em todas as cidades, esse grupo da população é o que menos causa a poluição e o que mais sofre as consequências.

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