Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Colaboração: Raphaella Magalhães Salomão
Publicada originalmente em jan-jun/2013 – edição nº1
Amável leitor, quisera o autor da presente reportagem, que narra tempos idos e vividos da existência de Murillo Antunes Alves, emular o estilo daquele jornalista, cerimonialista e vereador. Para tal, tornar-se-ia necessário abrir mão da roupagem contemporânea e empregar palavras de sobrecasaca e gravata preta, como as que abrem esta narrativa. Seria a forma ideal de homenagear Murillo, figura que brilhou no firmamento do jornalismo como uma das estrelas dos tempos primevos do rádio e da televisão, e modo seguro de trasladar o leitor de volta ao tempo dos comunicadores bacharéis, que traziam nas mãos gravadores de arame e o português mais castiço na ponta de suas línguas.
Não obstante, falta a este escriba “engenho e arte”, como recomendaria o velho Camões. E, mesmo que os houvesse, o resultado haveria de aparecer como um espetáculo sobremaneira enfadonho aos olhos hodiernos. Destarte, urge abrir mão de todo o preciosismo dos tempos idos, sob o risco de enfastiar o amável leitor a ponto de afastá-lo da leitura. O que seria uma pena, já que vale a pena conhecer Murillo Antunes Alves.
Murillo entrevista o meia Rui Campos, da seleção vice-campeã do mundo em 1950 – Arquivo pessoal
A carreira jornalística de Murillo durou mais de 70 anos e só chegou ao fim com sua morte, em 2010. Ele foi um dos primeiros repórteres do rádio brasileiro e cobriu os principais eventos jornalísticos do século 20. Graças a um fogão quebrado, realizou a última entrevista com Monteiro Lobato. Recebeu tantas vezes o troféu Roquette Pinto, que seus organizadores criaram um limite para as premiações. Na TV Record, foi âncora do programa Record em Notícias, o “Jornal da Tosse” (por causa da idade avançada de seus apresentadores), que atravessou três décadas no ar. Como cerimonialista, atuou na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), na Assembleia Legislativa paulista e em outras instituições, ajudando a profissionalizar o cerimonial público. Foi oficial de gabinete da Presidência da República e acompanhou de perto a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. Três décadas depois, elegeu-se vereador paulistano e criou a lei do cinto de segurança obrigatório.
“A marca de Murillo era a elegância em tudo: na expressão verbal, nas atitudes, na roupa”, lembra o jornalista Pedro Vaz. “Ele falava muito bem, sem repetir termos nem usar palavras parecidas. O texto já saía editado da boca.” Vaz trabalhou com Murillo na TV Record e, em 2002, entrevistou-o para um vídeo sobre a história do rádio. “Murillo estava sempre bem composto, de terno, óculos e cabelo impecáveis”, conta.
“O Murillo fala um português tão castiço que não parece que está dando notícia. Parece que está lendo a carta de Pero Vaz de Caminha!”, escreveu o jornalista José Simão, da Folha de S.Paulo, numa reportagem de 1992 sobre o “Jornal da Tosse”, um programa que, nas palavras de Simão, precisava ser acompanhado “com o Aurélio do lado”.
IRRADIANDO DO TELHADO
Irradiando do telhado Aos dez anos, em escola de Itapetininga
Aos dez anos, em escola de Itapetininga – Arquivo pessoal
Filho de professores, Murillo nasceu em Itapetininga, interior de São Paulo, em 28 de abril de 1919. Com 13 anos, era um escoteiro que fez a boa ação de “auxiliar na distribuição de alimentos e apoio às tropas constitucionais” da Revolução de 1932, “quando transitavam por aquela cidade rumo ao sul”, conforme depoimento registrado na CMSP. Com 14 anos, escrevia na publicação do colégio, O Arauto, da qual chegou ao cargo de editor-chefe, promoção que o jornalzinho divulgou assim: “Murillo Antunes Alves, nosso redator-chefe, passou a usar calças compridas”.
As calças compridas levaram Murillo para os bancos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou em 1943. “Modestamente, tenho de confessar que fui o primeiro da turma. Éramos 216 alunos na formatura”, contou Murillo na entrevista concedida a Pedro Vaz.
Morando em um quarto alugado de pensão, o jovem Murillo precisava de um emprego para bancar seus gastos. Seguindo o exemplo dos colegas, foi bater na porta das rádios. “A Faculdade de Direito era um verdadeiro celeiro de artistas e radialistas”, conta Reynaldo Tavares, profissional do rádio e autor do livro Histórias que o Rádio não Contou (Paulus, 2014). Entre os universitários que se tornaram pioneiros da área, há Nicolau Tuma, criador da expressão radialista (nascida dos termos rádio e idealista, numa referência aos altos ideais e baixos salários da profissão) e Casimiro Pinto Neto, hoje mais lembrado como criador do sanduíche bauru do que como o primeiro Repórter Esso de São Paulo.
A estreia de Murillo deu-se como locutor – ou speaker, como se falava – da Rádio São Paulo, do grupo Emissoras Unidas, também formado por Record, Bandeirantes e Cosmos (futura Jovem Pan) e pertencente a Paulo Machado de Carvalho. “Em matéria de ordenado, não sonhe muitas coisas. As pessoas são capazes de pagar para trabalhar no rádio”, foi logo dizendo um gerente da São Paulo. Murillo aprendeu a lição e, ao longo da vida profissional, teve trabalhos fora do jornalismo. Durante décadas, atuou como advogado especializado em assuntos esportivos, assessorando clubes e a Federação Paulista de Futebol.
O esporte era uma de suas grandes paixões. A primeira cobertura esportiva foi um jogo do Palestra Itália (antigo nome do Palmeiras). Como a Rádio São Paulo não tinha os direitos de transmissão, Murillo e o locutor Geraldo José de Almeida irradiaram o jogo do telhado de uma casa alugada pela emissora na Rua Turiassu, de onde era possível ver o estádio do Palestra. Como outros radialistas se recusaram a trabalhar naquelas condições, Murillo teve de fazer a função improvisada de comentar a partida. “Passei todo o tempo embaixo das telhas, de cócoras, sem ver o campo, com uma lanterna para ler os anúncios. Não vi nada, mas mesmo assim comentei o jogo”, contava Murillo. O trabalho às cegas foi bem recebido, e ele tornou-se comentarista esportivo da São Paulo.
REPÓRTER PIONEIRO
Em 1942, foi para a Bandeirantes, onde tornou-se o primeiro locutor esportivo da emissora. Na Rádio Cultura, apresentou um programa de perguntas e respostas com universitários. Mesmo no rádio, Murillo vestia uma beca por cima do smoking, já que o programa era visto por uma multidão que lotava o auditório da emissora, na Avenida São João. Depois de passar pela Rádio Gazeta, pelo jornal Gazeta Esportiva e pela Rádio Tupi, voltou para a Bandeirantes, onde trocou a locução esportiva por uma novidade: a reportagem.
De beca, apresenta na rádio Bandeirantes um programa de perguntas e
respostas com universitários, nos anos 40
“Murillo foi um dos primeiros a exercer a reportagem no rádio”, afirma Reynaldo. Depois de 1945, a ditadura do Estado Novo havia chegado ao fim, e com ela as exigências de que todo radialista só poderia ler no ar textos previamente aprovados pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Pela primeira vez, o rádio podia improvisar, narrar eventos ao vivo, entrevistar. Pela primeira vez, o rádio podia reportar.
No início da nova função, Murillo entrevistou o governador de São Paulo, Ademar de Barros, para a Bandeirantes, em 1947. Usou um dos primeiros gravadores do Brasil, equipamento importado dos Estados Unidos, da marca General Electric, que só funcionava ligado a uma tomada. As gravações eram registradas num arame, que às vezes arrebentava e precisava ser emendado com um palito de fósforo. Ademar gostou da entrevista e, no mesmo ano, comprou a Bandeirantes. Sem disposição para trabalhar numa rádio política, Murillo preferiu mudar-se para a Record, onde ficaria até morrer.
GETÚLIO E LOBATO
Foi na Record que Murillo produziu suas principais reportagens. Em maio de 1948, conseguiu uma rara entrevista com o senador Getúlio Vargas, que se mantinha incomunicável em um autoexílio no interior do Rio Grande do Sul. Em um avião fretado pela Record, foi até São Borja em busca de notícias do ex-presidente. Encontrou Gregório Fortunato, mas o chefe da guarda pessoal de Getúlio disse que ele não falaria com a imprensa. De volta ao hotel, durante o jantar o gerente chamou-o de lado: “Aquele senhor jantando é compadre do doutor Getúlio”. Murillo aproximou-se e puxou conversa. Papo vem, uísque vai, perguntou: “O senhor já andou de avião?”. Fascinado com a oportunidade, o compadre aceitou levar o jornalista e sua equipe, em um monomotor alugado, para a fazenda onde estava Getúlio, na cidade vizinha de Itati.
Após aterrissar no pasto, foram recebidos por Vargas, de bombachas e charuto, que os convidou para o almoço – um churrasco que, para o paladar de Murillo, pareceu “duro como sola de sapato”. Como sobremesa, Getúlio aceitou responder a algumas perguntas e, no final, leu uma declaração, endereçada aos “trabalhadores do Brasil”, em que dizia: “Venho, trabalhadores, trazer-vos, com minha voz, a presença do ausente, porque senti em vossos corações a ausência dos presentes”. O encontro ocorreu meses antes da histórica entrevista de Getúlio ao jornalista Samuel Wainer, em fevereiro de 1949, quando anunciou que concorreria à presidência.
Para gravar a entrevista com o ex-presidente, numa fazenda sem energia elétrica, a equipe de Murillo havia levado duas malas gigantescas, equipadas com baterias de caminhão. Isso apenas para fazer o gravador funcionar. As transmissões fora dos estúdios só começariam anos depois, com a importação de novos materiais, também enormes. “Para irradiar um incêndio, utilizamos um equipamento que os americanos haviam usado na guerra. Foram necessárias três pessoas: eu, irradiando num microfone com fio, um técnico com uma bateria e um terceiro com um transmissor”, contou Murillo na entrevista a Pedro Vaz.
Em 6 de julho de 1948, Murillo foi ao encontro de Monteiro Lobato, mas o escritor recusou a entrevista. Muito doente, dizia-se desligado das coisas terrenas, esperando a morte como “um alvará de soltura”. Lobato tinha, contudo, uma preocupação bem terrena com o fogão elétrico do seu apartamento, que estava quebrado. Um técnico da rádio ofereceu-se para tentar consertar. Conseguiu. Em agradecimento, o escritor aceitou falar com o repórter e seu equipamento inusitado. “Eu estou falando e dizem eles que o aparelho está gravando e depois vai repetir ao mundo as minhas bobagens”, afirmou Lobato, estranhando o gravador. Na entrevista – disponível no livro Conferências, Artigos e Crônicas (Globo, 2010) – o criador do Sítio do Picapau Amarelo confessou um arrependimento: queria ter escrito muito mais para crianças. “Eu perdi o tempo escrevendo para gente grande, que é coisa que não vale a pena.”
“Então, agora, a última pergunta, Monteiro Lobato: neste momento, nesta hora, qual seria o seu maior desejo,?”, encerrou Murillo. “Meu maior desejo, neste momento”, respondeu, “seria ver este locutor pelas costas e eu já lá em cima, no meu apartamento, na cama, para descansar desta esfrega que levei hoje”. Dois dias depois, vítima de um acidente vascular cerebral, Monteiro Lobato morreu.
MODO DE PERGUNTAR
“Murillo era o repórter dos repórteres, um profissional primus inter paris (único entre seus pares) do radiojornalismo”, afirma o jornalista Salomão Ésper, veterano do rádio que, como Murillo, formou-se no Largo São Francisco e tem um gosto pelo português vernacular. “Quiseram os fados que eu tivesse esse convívio honroso, mas relativamente passageiro com ele”, recorda Ésper, que trabalhou com Murillo em seu primeiro emprego, na Record, em 1948. “Ser entrevistado por ele era uma glória para qualquer pessoa, pela sua linguagem, pela sua cultura, pelo seu conhecimento”, lembra.
Murillo era elegante até para perguntar se um político era ladrão. Um dia, um grupo de colegas, jogando conversa fora na sala de imprensa da Assembleia Legislativa, desafiou o jornalista a perguntar para o governador Ademar de Barros sobre a famigerada “caixinha” que, dizia-se, o político embolsava em todas as obras públicas. Aceito o desafio, aproximou o microfone de Ademar e fez a pergunta: “Vossa Excelência sabe perfeitamente, melhor do que ninguém, que todo homem público está sujeito a uma série de ataques e inventivas. O senhor é constantemente acusado pelos seus adversários de ter uma caixinha. Como Vossa Excelência recebe isso? Existe a caixinha?”. Diante da formulação da pergunta, o governador não se alterou e respondeu calmamente, com as negativas de praxe. “Você pode perguntar o que quiser. O importante é o modo de perguntar”, arrematava Murillo.
Como radiojornalista e, mais tarde, também como repórter e apresentador da TV Record, Murillo cobriu alguns dos principais eventos jornalísticos do século 20, como as eleições da Itália em 1948 e dos EUA em 1952, a inauguração de Brasília, em 1955, a chegada do homem à Lua, em 1969, o casamento da princesa Diana, em 1981, e a morte de Tancredo Neves, em 1985. Entre as centenas de pessoas que entrevistou, há também nomes como Eva Perón, Catherine Deneuve, Nat King Cole, Roberto Carlos e Vittorio De Sica. Dos presidentes, ainda passaram pelo seu microfone Washington Luís, Júlio Prestes, Getúlio Vargas, Jânio Quadros, João Goulart, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, João Figueiredo e José Sarney.
Recebeu sete troféus Roquette Pinto, o Oscar do rádio e da TV brasileiros, o que levou os organizadores a mudar as regras do evento, estabelecendo um limite de seis premiações por pessoa. A decisão não impediu que, anos depois, Murillo levasse para casa o seu oitavo Roquette Pinto, como homenagem por sua carreira.
Em 1953, casou-se com a professora Erika Menguer. Natural de Kulmbach, na Alemanha, e naturalizada brasileira, Erika era filha do dono de uma pensão onde Murillo havia morado, no bairro de Santa Cecília, e lecionou durante muitos anos no Centro Cultural Brasil-Estados Unidos de São Paulo. O casal viveu junto até a morte de Erika, em 2001. Eles tiveram um filho, Roberto Murillo Antunes Alves, oito netos e um bisneto. “Meu pai foi um amigo que me deu conselhos sempre que precisei. Apesar de ficar pouco tempo em casa, por causa do trabalho, nada me faltou em termos de apoio”, conta Roberto.
TROCADILHOS E SOVINICES
Trocadilhos e sovinices
Como vereador, concedeu Título de Cidadão Paulistano a Alexandre Jose Barbosa Lima Sobrinho – Ângelo Dantas/CMSP
A formalidade de Murillo, que utilizava a norma culta em todas as conversas e fazia do terno a roupa de todos os dias, era uma de suas marcas. “Eu só via o meu sogro de paletó. Fui saber como eram os braços dele no final da vida, quando ficou doente”, conta Sílvia Regina Abdelnur Antunes Alves, esposa de Roberto. Mas a estampa sisuda escondia um sujeito bem humorado. Gostava de jogar aviõezinhos de papel pela janela durante o trabalho e, em cada conversa, fazia questão de soltar trocadilhos. “Você veio para ver a alegria ou vereador?”, costumava perguntar em seus tempos de Câmara Municipal. Salomão Ésper não esquece o episódio em que Murillo foi interpelado por um colega enquanto colava estampilhas numa sobrecarta: “Fala um aí, grande trocadilhista”. Sem pestanejar, respondeu: “Não sou trocadilhista, mas posso fazer um sem sê-lo”, e colou o selo na carta.
Tão famosa quanto a capacidade verbal de Murillo era a sua pão-durice. O jornalista e museólogo Luiz Ernesto Machado Kawall conta que Murillo ameaçava não ir às festas do Roquette Pinto, lamentando com Paulo Machado de Carvalho que não tinha roupas adequadas. E tanto falava que convencia o proprietário da Record a comprar roupas para ele e sua esposa. Motoristas que trabalharam com o jornalista contam que ele não saía de um evento sem antes forrar os bolsos do paletó com os salgadinhos do bufê.
Em um dos encontros da Academia Paulista de Jornalismo, no Terraço Itália, o presidente da entidade, Israel Dias Novaes, ao discursar sobre seus dias de jovem interiorano, lembrou que costumava dividir o trem com Murillo, que dava um jeito de se esconder quando o chefe do trem aparecia para recolher os bilhetes. Presente ao evento, Murillo levantou-se e aproveitou para encaixar um de seus trocadilhos: “Você está provando que sempre fui impagável”.
Se era impagável, não era por falta de dinheiro. Na declaração de bens (seus e de Erika) que tornou pública em 1992, para o cargo de vereador, constavam, entre outros itens, dois apartamentos, 20 casas, seis terrenos, duas chácaras, quatro tapetes persas, três carros, um trator e 170 cabeças de gado.
“JORNAL DA TOSSE”
Murillo era oficial de gabinete da Presidência da República, em 1961, quando Jânio Quadros renunciou. No dia 25 de agosto, estava feliz, pois havia terminado de levar todos os seus móveis de São Paulo. “Hoje é um grande dia, presidente. Estou recebendo minha mudança e poderei me fixar definitivamente em Brasília”, teria dito Murillo, conforme relato ouvido por Kawall. Jânio ouviu sem dizer nada. Ainda pela manhã, após uma reunião com quatro ministros, o presidente deixou o Planalto e disse para Murillo apenas “muito obrigado e até logo”. Quarenta minutos depois, o jornalista soube, pelo chefe do Gabinete Militar, que o presidente não mais voltaria. “Destruímos os documentos e, como souvenir, guardei a agenda do último encontro”, declarou Murillo para a repórter Marisa Raja Gabaglia, do Diário Popular (atual Diário de S.Paulo).
A fama e a elegância renderam a Murillo a oportunidade de atuar como mestre-de-cerimônias em diversos eventos e como cerimonialista em órgãos públicos. Em 1953, foi nomeado chefe do cerimonial da Assembleia Legislativa paulistana, casa onde atuou como servidor até se aposentar, em 1985. Também foi chefe do cerimonial no governo do Estado, na Prefeitura, onde voltou a trabalhar com Jânio, e no Tribunal de Justiça, todos de São Paulo.
No cerimonial, teve um papel tão destacado que, ao vê-lo cobrindo, como repórter, o casamento da princesa Diana, em 1981, o jornalista Mino Carta ironizou na Folha de S.Paulo: “Os ingleses devem ter sido informados da chegada de Murillo Antunes Alves quando já era tarde demais, porque se soubessem com alguma antecedência, não perderiam a oportunidade de consultá-lo sobre a programação da festa. Um mestre-de-cerimônias como o Murillo não aparece todos os dias, não dá sopa tão facilmente”.
As atividades no Poder Público não impediram Murillo de continuar à frente dos programas da TV Record. O mais duradouro foi o Record em Notícias, criado em 1976 pelo jornalista Hélio Ansaldo. Lembrava um programa de rádio e o estilo, tão antigo quanto seus apresentadores, gerava críticas e piadas, como o apelido “Jornal da Tosse”, que ficou mais conhecido que o nome oficial. “É hilário ver Murillo Antunes Alves iniciar suas falas com citações em latim num país em que grande parte das pessoas mal domina a língua materna”, apontava o jornalista Fernando Barros e Silva na Folha de S.Paulo, em 1990. Os jornalistas aceitavam as críticas com bom humor, chegando a assumir informalmente o apelido de “Jornal da Tosse”. Só nunca aceitaram o patrocínio do xarope Melagrião, que Helio Ansaldo achou demais.
LEI DO CINTO
O “Jornal da Tosse” tinha seus fãs. Prova disso, além da longevidade do telejornal, foi que vários dos seus apresentadores fizeram carreira política, como José Serra, Arnaldo Faria de Sá e João Mellão Neto. O próprio Murillo também se lançou candidato, em 1992, elegendo-se vereador com 13.609 votos, pelo PMDB.
O feito mais conhecido do vereador Murillo foi a criação da lei que tornou obrigatório o uso do cinto de segurança. Alguns juristas levantaram que o projeto seria inconstitucional, pois apenas a União poderia legislar sobre trânsito. Vencendo as resistências, o projeto foi aprovado pela Câmara e sancionado então pelo prefeito Paulo Maluf, que assumiu a nova lei com entusiasmo.
Amparada por um esquema maciço de divulgação e fiscalização, a norma entrou em vigor em novembro de 1994 e mudou os hábitos do paulistano. Ao final de um ano de vigência, a adesão à lei entre os motoristas ultrapassou 90% e o número de mortes caiu de 2.401 casos para 2.278, mesmo com o aumento no número de acidentes. “Mesmo que uma só pessoa tivesse sido salva ou não se ferido gravemente, a lei já teria alcançado seu objetivo fundamental: preservar vidas”, comemorou o vereador.
Em 2005, uma decisão do Supremo Tribunal Federal confirmaria que a Lei do Cinto era, de fato, inconstitucional. Àquela altura, contudo, a revogação da lei em nada mudou a vida dos paulistanos: desde 1997, o Código Brasileiro de Trânsito obriga o uso do cinto em todo o território nacional.
Murillo não conseguiu ir além do primeiro mandato. Saiu derrotado das eleições de 1996, mesmo ano em que a Record decretou o último pigarro do “Jornal da Tosse”. Uma derrota que não parece ter abatido o político, que encarava as campanhas por votos como “uma agrura não muito distante dos sofrimentos de Sísifo ou, se preferirem, das angústias das Danaides”. Das mãos do então presidente da Câmara, Nelo Rodolfo, Murillo ganhou a chefia do cerimonial da CMSP, cargo que exerceu de 14 de janeiro de 1997 a 10 de janeiro de 2001.
AS MENINAS DO MURILLO
“Quando era vereador, Murillo vivia dando sugestões para melhorar o cerimonial, um serviço que estava começando na Câmara”, conta Rodolfo. O novo chefe, segundo Rodolfo, mudou a cara do serviço. “Ele trouxe muito respeito para o cerimonial. Passou a ter um caráter oficial de solenidade, a respeitar os protocolos, e hoje é um dos mais efetivos e corretos que conheço”, recorda o ex-presidente.
“Com Murillo, o cerimonial se institucionalizou. Ele trouxe o peso do cerimonial técnico”, conta a atual chefe do setor, Cecília de Arruda, sobre quando trabalhou com o jornalista e outras cerimonialistas, que ficaram conhecidas como “as meninas do Murillo”. Todas aprenderam muito com ele, começando com a ordem de precedência para a apresentação das autoridades, questão bastante sensível para os cerimonialistas, que são antes de tudo gestores de egos. Aprenderam a remover as cadeiras dos auditórios em dias com muitos eventos, para evitar que os convidados se acomodassem e esticassem as cerimônias além do tempo estipulado. E se encantaram com a cultura de Murillo, capaz de saudar na língua de origem o convidado de um país de idioma francês ou de saber como agir num evento para seguidores do Islã. “Hoje, a gente tem o Google. Na época, tinha o Murillo”, recorda Odete Recioli Ferreira da Rocha, outra das “meninas do Murillo”.
Além de aprender com o mestre em cerimônias e ouvir suas tantas histórias, as meninas cuidavam de Murillo, já um velhinho. Todos os dias, depois do almoço, ele ia para casa, onde tomava uma sesta e voltava descansado ao Palácio Anchieta. “Sempre andando rápido, esticadinho, magro, com mocassins italianos e ternos do arco da velha, que ele usava até o osso”, descreve a servidora da CMSP Maria Regina Macedo Novo Leonetti.
As meninas também aprenderam a lidar com o conservadorismo de Murillo, que não admitia determinadas atitudes, como a homenagem de um vereador à cultura africana que terminou em um bailado de jovens com os seios de fora. O chefe do Cerimonial ficou indignado com a cena, mas já não havia o que pudesse fazer. “Nós não contamos para ele o que ia acontecer, porque sabíamos que seria contra”, diverte-se Maria Regina.
PONTO FINAL
Até seus últimos dias, o jornalista ia à redação da Record para conversar com os colegas. Não se aposentou: ao morrer, em fevereiro de 2010, era o funcionário mais antigo da empresa. O jornalista Luiz Kawall, que recebera de Murillo sementes de café de sua fazenda em Alambari (SP), fez questão de plantá-las na Praça Benedito Calixto, onde mora. “Foi minha homenagem ao Murillo.” A planta permanece lá até hoje, lembrando um mestre no ofício de transformar a vida em narrativa.
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