Gisele Machado | gisele@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou Leandro Uliam | uliam@saopaulo.sp.leg.br
Publicada originalmente em jul/2015 – edição nº 15
No fim do século 19, a acanhada capital paulista não era nem sombra da metrópole em que se transformou. “Durante a transição do Império para o regime republicano, São Paulo era provinciana, caipira, uma cidade baixa, de taipa, muito aquém das cidades portuárias e que, de repente, enriquece e passa a exercer protagonismo”, conta a historiadora e artista plástica Beatriz Piccolotto Bueno, que leciona História da Urbanização na Universidade de São Paulo (USP).
Em quatro décadas, até 1930, brotaram no Centro edifícios que até hoje simbolizam a cidade, como o Theatro Municipal, Palácio da Justiça, Mercadão e Pinacoteca do Estado. Esses marcos paulistanos têm em comum o fato de levarem a assinatura do lendário Escritório Ramos de Azevedo, aberto em 1886 pelo engenheiro e arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo.
À exceção da Catedral da Sé, o escritório foi responsável por todos os grandes projetos institucionais de São Paulo até 1928, ano da morte de seu fundador. Um dos grandes destaques é o Theatro Municipal, cuja construção foi autorizada pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) por meio da Lei 643, de 25 de abril de 1903. “Fica o prefeito autorizado a construir, no terreno cedido pelo governo do Estado, o Theatro Municipal, e aprovadas as plantas e orçamento apresentados pelos engenheiros Francisco de Paula Ramos de Azevedo, Domiziano Rossi e Claudio Rossi”, diz o texto. A cessão do terreno também foi viabilizada graças a uma iniciativa do Legislativo municipal, que propôs lei para promover uma permuta do espaço com o governo do Estado.
A demanda por atrações teatrais e musicais já era forte na capital. Mas as grandes companhias e atrizes internacionais, como Eleonora Duse e Sarah Bernhardt, não tinham um palco à altura. Muitas vezes, os grupos artísticos partiam direto para Buenos Aires após a temporada no Rio de Janeiro, sem passar por São Paulo. Para resolver esse problema, a CMSP aprovou, de 1895 a 1903, cinco importantes leis de incentivo ao setor.
Uma dessas leis, a 336 de 1898, previa isenção de impostos, pelo período de 50 anos, a teatros construídos mediante concorrência pública. A intenção era suprir a falta do Teatro São José, que ficava no Centro e pegou fogo naquele ano. Um acordo entre empreendedores chegou a ser firmado, mas caducou e ninguém aproveitou o benefício.
Em 1903, com a aprovação da Câmara, o escritório estava automaticamente designado para erguer o tão sonhado Theatro Municipal. A obra, planejada para ser um ícone de modernidade, abrangeria não só o teatro, mas também a escadaria lateral e a fonte, que fariam a transição entre a obra e o Parque do Anhangabaú. Os croquis mostram todos os detalhes internos, indicando até mesmo as banquetas de veludo e os espelhos nos banheiros femininos. As ferragens e o mobiliário foram depois executados pelo Liceu de Artes e Ofícios, do qual Azevedo foi professor e diretor. “Cada profissional, de diferentes áreas, que olhasse o mesmo desenho já teria todas as informações necessárias”, observa o engenheiro Paulo Villares, bisneto de Ramos de Azevedo.
Iniciada em junho de 1903, a construção do Theatro durou oito anos e consumiu 4,5 milhões de tijolos e 750 toneladas de ferro. Enquanto duraram os trabalhos, Ramos de Azevedo despachou diariamente em um gabinete montado no canteiro de obras, para acompanhar tudo de perto.
Dedicar-se pessoalmente a um projeto era algo raro para o arquiteto, que, além da atuação em sua empresa e no Liceu, também trabalhou de 1900 a 1921 na Escola Politécnica de São Paulo, onde foi um dedicado professor e diretor. Ainda assim, a engrenagem montada permitiu que o escritório entregasse 4 mil obras completas (do projeto à execução) até 1980, quando encerrou suas atividades. Vários trabalhos eram executados simultaneamente e os prazos eram respeitados. O prédio dos Correios e Telégrafos, no Vale do Anhangabaú, por exemplo, levou apenas dois anos para ser finalizado, do projeto à construção. “Ramos não se tornou uma grande grife por acaso”, diz Beatriz Bueno.
“As obras de Ramos no Centro começaram a ser feitas nos últimos anos do Império e deram a cara de São Paulo nas três primeiras décadas do século seguinte”, diz o guia de turismo Laercio Cardoso de Carvalho (veja no final da página o roteiro pelos edifícios assinados por Ramos de Azevedo, no Centro). Para Beatriz, “os projetos possuem estilo eclético; conectados às tendências mundiais de arquitetura da época, têm muita qualidade e são pensados tridimensionalmente, para serem vistos de longe, criando grandes perspectivas”. Além dos prédios públicos, foram vários trabalhos privados: dos 50 palacetes erguidos no período áureo da Avenida Paulista, 11 foram assinados pelo grupo de Azevedo, entre eles a sobrevivente Casa das Rosas.
DA TAIPA À METRÓPOLE
Nascido na capital paulista em 8 de dezembro de 1851, Ramos de Azevedo mudou-se para a Bélgica para estudar engenharia e arquitetura na Universidade de Gante. Voltou ao Brasil em 1878 e trabalhou em Campinas (SP) por alguns anos. Casou-se em 1880 com Eugênia Lacaze, com quem teve Francisco, Lúcia e Laura (avó de Paulo Villares). Seis anos depois, criou em São Paulo o primeiro entre os modernos e o mais duradouro escritório de arquitetura que a capital já teve.
A historiadora Beatriz Bueno, também curadora de uma exposição sobre o escritório, conta que Azevedo foi mais um grande empreendedor do que um notável desenhista: “O melhor dele era o gerenciamento, a visão”. Para garantir a qualidade e a agilidade, o empresário contratou grandes talentos da arquitetura e engenharia. Os funcionários, que chegaram a 500 em 1890, trabalhavam em pequenas equipes, organizadas de acordo com a especialidade e em plena sincronia. “Ramos de Azevedo imprime um padrão taylorista, uma cadeia produtiva impecável, com chefe de seção, de turma, do cálculo, de obras, hierarquias muito claras e as chefias respondendo pela qualidade do trabalho entregue”, explica Beatriz. “Ao final da tarde, os trabalhadores da obra e o pessoal de desenho conversavam sobre o resultado do dia e planejavam a jornada seguinte, numa escala industrial”, completa a professora.
Para segurar a clientela, além de qualidade, às vezes era oferecido também o financiamento das obras, com ressarcimento posterior. Prova disso é o parecer favorável da Comissão de Obras da Câmara Municipal, em 17 de junho 1893, ao “pagamento da terceira e última prestação devida ao engenheiro Ramos de Azevedo pelo contrato celebrado com a intendência para reforço do prédio nº 19, à Rua 15 de Novembro”.
Carismático, sociável e comunicativo, o arquiteto “era muito respeitado pela burocracia”, segundo Beatriz. Mais do que respeito, Azevedo desenvolveu interesse pela carreira política. Numa sessão especial, em 22 de junho de 1904, a CMSP anunciou sua eleição como “senador do Congresso estadual”, com 28.265 votos. Exerceu a função por um ano e meio. Em 1917, filiou-se à Liga Nacional de São Paulo, formada por membros da elite paulistana que lutavam pelo voto secreto obrigatório, entre outros aperfeiçoamentos do sistema político. “Ele estabeleceu redes de sociabilidade muito importantes mas, na verdade, sua credibilidade tinha menos a ver com as relações que ele possuía do que com a seriedade que ele imprimia ao escritório”, explica a especialista da USP.
Francisco Ramos de Azevedo morreu em 12 de junho de 1928, no refinado Grand Hôtel La Plage, no Guarujá (SP), outro projeto com a assinatura de sua empresa. Foi enterrado no primeiro cemitério público municipal, o da Consolação, onde também está eternizada a marca de seu escritório, que projetou o portal de entrada do local.
“Em meio século de atividade, ligou o seu nome de modo imperecível à cidade de São Paulo”, disse na CMSP o vereador Alexandre Albuquerque, em sessão após a morte do arquiteto. No mesmo discurso, o parlamentar registrou que “em todos os grandes monumentos da nossa terra”, estava gravado, à época, o nome de Azevedo. “Poucas, muito poucas, serão as ruas de São Paulo em que não encontrem edifícios criados e erigidos por este grande arquiteto”, ressaltou. Lembrou, por fim, que graças a Azevedo a cidade rústica havia se transformado num lugar de modernos edifícios, feitos com ferro e concreto: “Foi o obreiro que, com suas próprias mãos, demoliu uma aldeia e construiu uma metrópole”.
SAIBA MAIS
Livro
Theatro Municipal de São Paulo – 100 anos. Márcia Camargo. Dado Macedo Edições. 2011.