Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Edição: Sândor Vasconcelos – sandor@saopaulo.sp.leg.br
O Brasil já chamou de revolução muita coisa que não era. Parte dos republicanos que derrubaram a monarquia em 1889 comparava o movimento à Revolução Francesa. Os paulistas até hoje chamam de revolução a revolta contra o governo federal que conduziram em 1932. E os militares e empresários que em 1964 derrubaram um governo eleito e iniciaram uma ditadura, deram nome e sobrenome ao feito: revolução redentora.
Só que, para um acontecimento histórico ser enquadrado como revolucionário, não basta fazer barulho e derrubar governos. Para ser revolução, segundo o Dicionário de Política (de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino) e o dicionário Houaiss, é necessário derrubar as autoridades existentes e provocar mudanças profundas na política, na economia e na sociedade. Momentos dramáticos como esses, capazes de afrontar as classes dirigentes, não combinam muito com o Brasil, país onde até a independência de 1822 manteve no trono um herdeiro da mesma família que havia comandado a colônia. Mas, se houve um momento em que o País se aproximou de ter algo parecido com uma revolução, foi há 90 anos, em 1930.
“Eu não brigo para chamar 1930 de revolução, mas é a que mais se aproxima desse sentido”, reconhece a historiadora Dulce Pandolfi, organizadora do livro Repensando o Estado Novo, em entrevista à Apartes. Por conta das mudanças que provocou, outro historiador, José Murilo de Carvalho, já declarou que “a Revolução de 1930 foi mais importante para o Brasil do que a Proclamação da República”, por marcar “o início do Brasil moderno”.
Em 3 de novembro daquele ano, quando rebeldes vindos do Rio Grande do Sul amarraram os seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, então capital federal, simbolizando a derrubada do presidente Washington Luís e a chegada ao poder de Getúlio Vargas, acabaram colocando um ponto final na Primeira República, também chamada de República Velha, iniciada em 1889. Com isso, iniciaram um processo histórico que, se não chegou a trocar os donos do poder nem alterou as condições de vida da maioria da população, ainda assim viria desembocar, ao longo dos anos seguintes, em diversas mudanças reais: a centralização do poder, o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores urbanos e a criação de eleições mais democráticas, com participação da maior parte da população, inclusive mulheres, alternância de poder e fiscalização por uma Justiça Eleitoral.
O CAFÉ COM LEITE AZEDOU
A Primeira República, período que começa com a derrubada da monarquia, em 1889, e termina em 1930, era “um sistema construído em torno dos interesses da burguesia cafeeira de São Paulo”, segundo o historiador Boris Fausto, em A Revolução de 1930. Os presidentes eram definidos por São Paulo e Minas Gerais, por meio da aliança do “café com leite”, que alternava na maior parte do tempo nomes mineiros ou paulistas. Isso era possível porque o voto era aberto, sujeito a todo tipo de pressão, e as fraudes eleitorais eram a norma, sem uma Justiça independente capaz de garantir eleições limpas.
O mesmo cenário se reproduzia nos Estados e municípios, controlados pelos chefes políticos locais. O poder era descentralizado: não havia partidos políticos de alcance nacional, eram todos estaduais. Embora houvesse brigas de poder nos Estados, eram “quase sempre atritos locais para decidir quem recebe os favores do núcleo dominante, na escala nacional”, segundo Fausto. No jogo do café com leite, também cabiam outras forças regionais, mas sempre num papel subordinado, como explica a historiadora Pandolfi: “Enquanto paulistas e mineiros eram as elites de primeira grandeza, gaúchos, baianos, pernambucanos e fluminenses eram as oligarquias de segunda grandeza”.
Na prática, o período da Primeira República não seria considerado uma democracia aos olhos de hoje, já que não havia possiblidade de alternância de poder. As forças políticas que não faziam parte dos clubes fechados das oligarquias rurais e dos seus apoiadores estavam condenadas a permanecer na oposição, sem qualquer possibilidade real de chegar ao poder. “As elites que estavam no poder se sucediam em todos os níveis. Quem ganhava nas urnas era sempre o mesmo grupo”, aponta Pandolfi.
A aliança do café com leite azedou em 1929, quando o presidente Washington Luís decidiu romper com o rodízio entre mineiros e paulistas no poder e indicar Júlio Prestes, paulista como ele, para disputar as eleições do ano seguinte. Em Minas Gerais, uma dissidência do Partido Republicano Mineiro decidiu se lançar à oposição, juntando-se ao Rio Grande do Sul e à Paraíba na Aliança Liberal, que lançou o gaúcho Getúlio Vargas como candidato a presidente e o paraibano João Pessoa para vice.
O clima de insatisfação com o governo aumentou ainda mais após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 24 de outubro de 1929, que do dia para a noite lançou a economia mundial em uma recessão profunda, da qual nem o café escapou. Outros estados passaram a acusar São Paulo de impor ao Brasil o custo de seus fracassos econômicos. “De modo que só os benefícios são particulares de São Paulo e os malefícios são gerais, do resto do País”, esbravejou o deputado federal mineiro Adolfo Bergamini, numa sessão do Congresso em novembro de 1929, num bate-boca com um colega paulista. Era o sinal de que o clima entre as elites já não era dos melhores.
“De modo que só os benefícios são particulares de São Paulo e os malefícios são gerais, do resto do País” Adolfo Bergamini
Surfando o tsunami das insatisfações, a Aliança Nacional se organizou, reunindo desde membros dissidentes das oligarquias, como as elites de outros estados que buscavam uma divisão menos desigual do poder com os paulistas, até egressos do tenentismo, um movimento de jovens oficiais das Forças Armadas que, desde 1922, havia realizado uma série de revoltas armadas, das quais a mais conhecida foi a Coluna Prestes, que percorreu 25 mil quilômetros ao longo de três anos, buscando derrubar o governo e criar uma nova República. Em São Paulo, a Aliança Nacional tinha o apoio do Partido Democrático, força permanente de oposição ao Partido Republicano Paulista, eternamente no poder.
Antes de terminar como nenhum outro, 1930 começou como todos os anos eleitorais. Apurados os votos das urnas, Júlio Prestes foi declarado vencedor. Como vinha acontecendo sem parar há 40 anos, a oposição havia sido derrotada.
UM PONTO FORA DA CURVA DA HISTÓRIA
Na ressaca da derrota, parte dos apoiadores da Aliança Nacional passou a falar em pegar em armas para derrubar Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes. A conspiração passou a se perder em intermináveis discussões entre os diferentes grupos. O tempo foi passando, ninguém se mexia e o fervor revolucionário caminhava para um possível abrandamento. Só que, como diz a historiadora Pandolfi, “a história às vezes tem pontos fora da curva que facilitam determinadas consequências”.
O ponto fora da curva assumiu a forma de um revólver que, em 26 de julho, disparou contra o governador da Paraíba, João Pessoa, que três meses antes havia disputado como vice de Getúlio Vargas na eleição presidencial. A violência não tinha qualquer relação direta com a disputa nacional. O autor dos disparos era um adversário político do governador, João Dantas, que tivera a casa invadida pela polícia, por ordem de Pessoa. Na operação, os policiais apreenderam e divulgaram cartas íntimas trocadas entre Dantas e sua namorada, a professora, poeta e feminista Anayde Beiriz. “Tais notas não podem ser publicadas porque ofendem ao decoro comum. Mas quem quiser vê-las o pode fazer na delegacia”, anunciou um jornal da época, ligado ao governador. Enfurecido, Dantas viajou até o Recife, onde o governador visitava um amigo, e o matou, dentro da confeitaria Glória, ajudando a mudar a história.
A informação de que João Pessoa teria sido morto por se opor ao governo federal, algo que hoje poderia ser chamado de fake news, dominou a narrativa sobre seu assassinato e transformou o governador num mártir. O corpo foi levado para ser enterrado no Rio de Janeiro e seu funeral se transformou num evento político. A capital paraibana, que até então se chamava Cidade da Paraíba, foi rebatizada com o nome do governador assassinado. Até uma nova bandeira estadual foi criada para fazer referência ao episódio, contendo duas cores, o preto do luto pela morte de Pessoa e o vermelho em homenagem à Aliança Liberal, e a palavra NEGO, marcando o compromisso em negar a posse a Júlio Prestes.
“SACRIFICAR A PRÓPRIA VIDA”
À medida que as conspirações para derrubar Washington Luís se espalhavam pelo País, o assunto chegou às sessões da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). Em 11 de outubro, a sessão ordinária, com a presença de 12 dos 16 vereadores da época, foi quase toda ela dedicada a defender o governo e atacar os revolucionários. Embora a revolução contasse com o apoio, em São Paulo, do Partido Democrático, não havia uma voz que ousasse defendê-la na tribuna do Palacete Prates, na Rua Líbero Badaró, sede da CMSP na época.
Sem votos contrários, a Câmara aprovou uma moção de apoio ao presidente e seu sucessor eleito, proposta pelo vereador Nestor de Macedo, que atacava “o atual movimento subversivo contra a ordem pública e tranquilidade da família brasileira”. Para fazer a moção viralizar, como se diria hoje, também aprovaram imprimir o texto e distribuir cópias por toda a cidade, afixando-as nas ruas, praças, estações de trem “e em todos os outros lugares em que o público possa lê-lo”.
Os vereadores que pediram a palavra chamaram os revoltosos de “criminosos”, “ambiciosos e desonestos”, “grupo torvo dos salteadores”, animados por uma “inspiração sinistra”, que tinham “a alma soturna dos decaídos e dos inconscientes”, que faziam “uma monstruosa investida contra a honra do País”. Sob aplausos, Goffredo Telles amaldiçoou até suas famílias: “recairão sobre as suas cabeças e as de seus filhos as consequências do crime sem precedente”. Ainda mais exaltado, Diógenes de Lima conclamou todos “os homens válidos de São Paulo” a se unirem na defesa do governo e “EMPUNHAR UMA ARMA, SACRIFICAR A PRÓPRIA VIDA” (assim mesmo, em maiúsculas, como foi registrado nas atas).
A sessão seguinte, em 18 de outubro, foi bem menos animada: por falta do número mínimo de participantes, os vereadores se limitaram a ler os telegramas de agradecimento que haviam recebido de Washington Luís e Júlio Prestes. No mês seguinte, ambos estariam fora do poder e nem mesmo a Câmara continuaria a existir.
VIVA A REVOLUÇÃO
Quando a revolução enfim deslanchou, ninguém seguiu o conselho de Diógenes de Lima para empunhar armas e sacrificar a própria vida pelo governo. Nem o próprio vereador. O movimento revolucionário começou em 3 de outubro, por meio de ações simultâneas no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. No dia seguinte, os revolucionários passaram a tomar o Nordeste, começando pela Paraíba. Avançando a partir do Sul, revoltosos comandados por Góes Monteiro e Getúlio Vargas se preparavam para um ataque às forças militares leais a Washington Luís na cidade paulista de Itararé. A “batalha de Itararé”, porém, entrou para a história como a grande batalha que não houve. Pois, antes desse confronto, em 24 de outubro, um grupo de generais do Exército, no Rio de Janeiro, destituiu Washington Luís e instalou um governo provisório. Em todo o País, as câmaras municipais e assembleias legislativas fecharam as portas, derrubadas junto com o governo. A Revolução de 30 estava consumada.
Era o começo de uma relação ruim que só viria a piorar nos anos seguintes, até chegar a 1932, quando o povo paulista tentou tirar Vargas do poder. O movimento terminou derrotado, mas influenciou na decisão do governo de adotar uma Constituição e convocar novas eleições, em 1934. Três anos depois, porém, inventando uma ameaça de um plano comunista para derrubar o governo, Vargas deu um golpe de Estado, fechando novamente todos os Legislativos. “A revolução de 30 era um ‘saco de gatos’ que reunia várias posições políticas em disputa e 37 foi a vitória de uma dessas posições”, analisa Pandolfi. O golpe de Vargas deu início ao Estado Novo, uma das mais brutais ditaduras da história do Brasil, que se estendeu por oito anos.
Com o fim do Estado Novo, em 1945, a democracia brasileira renasce e se mostra bem mais efetiva do que a da República Velha, com voto secreto, inclusão das mulheres, Justiça Eleitoral, partidos nacionais e possibilidade real de alternância no poder (com exceção dos comunistas, que continuaram a ser perseguidos). Em vários sentidos, um País muito diferente do que existia quando um grupo de gaúchos amarrou seus cavalos no obelisco da Rio Branco.
SAIBA MAIS
Livros
A revolução de 30: seminário internacional. Ed. Universidade de Brasília, 1982
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. UnB, 1998
BORGES, Vavy Pacheco; COHEN, Ilka Stern. em “A Cidade como palco: os movimentos armados de 1924, 1930 e 1932”. In: Porta, Paula (org.). A história da cidade de São Paulo, v.3: a cidade na primeira metade do século XX. Paz e Terra, 2004
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. Companhia das Letras, 1997
PANDOLFI, Dulce (org). Repensando o Estado Novo. Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1999