Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Edição: Sândor Vasconcelos – sandor@saopaulo.sp.leg.br
Erguida sobre o Rio da Mooca, um dos tantos rios de São Paulo que a expansão urbana ocultou debaixo de asfalto e concreto, a Avenida Professor Luiz Ignácio Anhaia Mello estende-se ao longo de dez quilômetros como uma das principais vias da zona leste da capital paulista. Recebe cerca de 100 mil veículos todos os dias, enquanto guarda uma história e alguma dose de ironia.
A história que a avenida carrega em seu nome diz respeito a um homem que, embora tenha sido vereador e duas vezes prefeito, acabou ficando mais conhecido como professor, como o nome da avenida comprova. E foi na qualidade de professor que Anhaia Mello buscou ensinar os paulistanos a como construir uma cidade mais humana, menos desigual e com mais qualidade de vida. Para alcançá-la, defendia que era necessário combater a especulação imobiliária e impor limites ao crescimento desenfreado. Fosse para cima, com a verticalização, fosse para os lados, com a expansão incessante da mancha urbana.
E não deixa de ser irônico que o professor que defendia essas ideias tenha sido homenageado, um ano após sua morte, virando nome de uma avenida que começa a 11 quilômetros do marco zero da cidade de São Paulo, quase sem árvores e cercada por edifícios com mais de 20 andares.
Trata-se de uma ironia que tem relação com o fato de que, de um modo geral, a São Paulo que conhecemos hoje tem menos a ver com as ideias de Anhaia Mello do que com a de seu principal opositor no campo urbanístico, Francisco Prestes Maia. Assim como Mello, Maia se formou pela Escola Politécnica e foi prefeito de São Paulo duas vezes, mas as diferenças são maiores que as semelhanças.
Enquanto Anhaia Mello foi um prefeito interino e nomeado entre 1930 e 1931, que passou ao todo oito meses no cargo, numa posição atribulada e sem força, Maia foi eleito e influente, que governou por dois mandatos completos, entre 1938 e 1945 e de 1961 a 1965. Conseguiu, assim, levar para o concreto as suas ideias de como São Paulo deveria ser, baseadas em um plano de avenidas perimetrais e radiais, que privilegiava o transporte por automóvel e a expansão sem limites da cidade — um plano que influenciou vários outros prefeitos, de Faria Lima (1965-1969) a Paulo Maluf (1969-1971 e 1993-1996).
Embora não tenha visto muitas de suas ideias virarem realidade nas ruas, Anhaia Mello nunca deixou de lutar por elas. Via o urbanismo como uma “arte social, que tem o homem por objetivo”. Pensar sobre a cidade era a sua paixão. “A religião do Anhaia Mello era o urbanismo; escrevia sobre urbanismo, falava sobre urbanismo, tinha uma noção completa e perfeita do urbanismo”, nas palavras do engenheiro Archimedes de Barros Pimentel. Já o arquiteto João Batista Vilanova Artigas completa dizendo que “dentro da cultura invulgar que o velho mestre possuía, seus ensinamentos tiveram a maior repercussão, pois a sua própria maneira de viver já era, por si só, uma obra de arte”.
FAZENDO CASAS E POLÍTICA
O caminho da engenharia e da arquitetura, atividades que no começo do século 20 se misturavam, foi natural para Luiz Ignácio Romeiro de Anhaia Mello. Nascido em 23 de agosto de 1891, era filho de Luiz de Anhaia Mello, vereador entre 1890 e 1891, fundador da Escola Politécnica de São Paulo e pioneiro da indústria têxtil paulista. Seu nome está nas placas da Rua Anhaia, no Bom Retiro, em homenagem a uma fábrica de tecidos de algodão construída por ele no bairro.
Luiz, o pai, era amigo de Ramos de Azevedo, que criou o escritório de arquitetura mais duradouro do Brasil, responsável por obras como o Theatro Municipal e o Mercado Municipal. Após se formar como engenheiro-arquiteto pela Poli, em 1913, Luiz Ignácio foi trabalhar com o amigo do pai, como administrador nas empresas de Ramos de Azevedo. Na época, chegou a projetar algumas obras, que ainda hoje fazem parte da paisagem paulistana, como a Igreja São Luís do Gonzaga, na Avenida Paulista, e a Igreja Divino Espírito Santo, próxima dali, na Rua Frei Caneca. Foi morar com a esposa, Melania Novaes, em uma das casas que projetou, na Alameda Ministro Rocha Azevedo, que não sobreviveu até os dias de hoje. Com ela teve quatro filhos: José, Antonio, Maria da Conceição e Ana Virgínia.
A longa carreira como professor, em torno da qual construiu sua vida, teve início em 1918, quando passou a dar aulas na Escola Politécnica. Em 1930, já era diretor da instituição.
Marcas de Anhaia Mello em São Paulo Igreja São Luís do Gonzaga
Ao mesmo tempo em que fazia casas e dava aulas, Mello abraçou uma breve carreira política. Disputou as eleições pelo Partido Democrata, de oposição ao governista Partido Republicano Paulista, e conseguiu se eleger com 6.263 votos. Como vereador, entre 1920 e 1923, se destacou por sua preocupação em organizar a cidade. Um dos projetos que apresentou, em 1920, buscava retomar a obrigação de os empreendedores pagarem por metade dos custos dos calçamentos. “O calçamento de uma rua, senhor presidente, é a valorização imediata do terreno”, argumentou. O projeto deu origem à Lei 2.611, de 1923, que proibia a abertura de vias de comunicação sem licença da Prefeitura, mas o vereador não gostou do texto final, por tornar “antipático e combatido desde o início” um sistema que funcionava bem e dar origem a uma daquelas leis que não pegam.
Veio, então, a Revolução de 30, que depôs o presidente Washington Luís e colocou em seu lugar Getúlio Vargas, encerrando quatro décadas de hegemonia da oligarquia cafeeira paulista na política nacional. Como membro do partido de oposição, Anhaia Mello estava do lado dos vitoriosos. Assim, acabou nomeado prefeito, em 6 de dezembro de 1931, pelo interventor João Alberto Lins de Barros, imposto por Vargas ao Estado de São Paulo.
Por essa época, já era diretor da Politécnica. Por causa da sua nomeação a prefeito, teve de enfrentar protestos dos estudantes. Não gostaram de ver o diretor da escola se aliando a um governo que viam como inimigo dos paulistas.
Marcas de Anhaia Mello em São Paulo Catedral da Sé
Como político urbanista, mostrava uma tendência a tentar conter a especulação imobiliária “à canetada”, como afirma Rodrigo Alberto Toledo, doutor em Ciências Sociais e especialista em gestão pública e gerência de cidades pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em um artigo sobre o arquiteto. O Ato 58, baixado pelo prefeito Anhaia Mello em 15 de janeiro de 1931, previa a criação de uma política de “censura estética dos edifícios”, a cargo da Diretoria de Obras, a quem caberia aprovar os planos dos prédios, considerando que “é necessário tornar mais atraente nosso centro urbano” e que “um edifício de má aparência e cor inadequada deprecia a vizinhança e ofende o senso estético da população”.
Era um período conturbado, de hostilidades crescentes entre o governo federal e o Estado de São Paulo, que em breve culminariam em um conflito armado, com a chamada Revolução de 1932. Como os demais prefeitos daqueles anos, a gestão de Anhaia Mello foi entrecortada e atribulada. Oito meses após sua nomeação, com a troca do interventor por Vargas, teve de deixar a Prefeitura, em 25 de julho de 1931. Acabou voltando ao cargo em 14 de novembro, para sair um mês depois.
Na sua passagem rápida e acidentada pela Prefeitura, buscou implantar normas que impedissem a expansão desordenada da cidade, como a determinação de recuos mínimos entre edificações e de limites de suas alturas, tentando controlar o adensamento em determinadas regiões. Também buscou criar regras de zoneamento, que na época ainda atendiam pelo nome de zoning.
Voltou à atuação política somente dez anos depois, em 1941, como titular da Secretaria de Viação e Obras Públicas do Estado de São Paulo, cargo em que se destacou na implantação de um novo plano rodoviário para a cidade de São Paulo. Não ficou nem dois anos. Em novembro de 1943, uma manifestação de estudantes contra a ditadura do Estado Novo de Vargas sofreu uma violenta repressão pela polícia, diante do Largo São Francisco. Em protesto contra a violência, Anhaia Mello renunciou.
Foi sua última passagem por um cargo público. A partir de então, dedicou-se a fazer política por outros meios, com conferências, aulas, publicação de artigos e mobilizações com que buscava influenciar os rumos da cidade. Passou a ser conhecido como “o velho Anhaia”, mesmo entre os que tinham a mesma idade, pois era visto como um mestre.
EMBATES
Anhaia Mello seguiu dando aulas, estudando e escrevendo sem parar, publicando inúmeros artigos sobre urbanismo. Além da universidade, uma de suas trincheiras era a Sociedade Amigos da Cidade de São Paulo, que ajudou a criar, em 1935, com o objetivo de propor melhores soluções urbanísticas para a capital — aparentemente, já não confiava que “canetadas” de cima para baixo seriam suficientes e buscava envolver a população na discussão urbanística. Outro fundador da associação, ao lado de Anhaia Mello, era um nome com quem ele haveria de travar diversos embates: Prestes Maia.
A atuação da Sociedade Amigos da Cidade de São Paulo levou a Prefeitura a criar uma Comissão Orientadora para construir um plano diretor. Nessa comissão, em 1954, Anhaia Mello e Prestes Maia se colocaram em campos opostos.
Marcas de Anhaia Mello em São Paulo Igreja Divino Espírito Santo
Mello reuniu suas ideias no documento Elementos Básicos para o Planejamento Regional de São Paulo, que ficou conhecido como Esquema Anhaia. Ali, propunha controlar a especulação imobiliária por meio do zoneamento e gerenciar o crescimento da cidade, inclusive por meio da limitação da instalação de indústrias. O Estado deveria impedir que os interesses de empresas particulares, como a Companhia Light, responsável por grandes empreendimentos imobiliários como o Jardim América, moldassem a cidade sem restrições. “Ele se esforçava na criação de um tipo de urbanismo independente, de caráter local e descolonizador, do ponto de vista da tomada de decisões necessárias para se produzir soluções urbanas adequadas”, afirma Toledo.
Já Maia não acreditava que cabia ao Estado limitar o crescimento da cidade, mas dar suporte ao desenvolvimento urbano conduzido por companhias incorporadoras, garantindo a infraestrutura para adensar a população em determinadas regiões. Para os partidários do Esquema Anhaia, a cidade precisava de um crescimento planejado e as intervenções pontuais feitas por Maia não passavam de “remendos”. Já os defensores do urbanismo de Maia diziam que as “intervenções drásticas” de Mello pretendiam “ananicar nossa cidade por meio da forma”.
Ainda que o desenvolvimento de São Paulo tenha seguido muito mais de perto a concepção de Maia, as ideias de Anhaia Mello também obtiveram vitórias. Em 1957, um anteprojeto da Comissão Orientadora, influenciada pelo Esquema Anhaia e que desagradava a Maia, foi promulgada pelo prefeito Adhemar de Barros como a Lei 5.621. Tornou-se a primeira legislação urbanística de São Paulo a limitar as taxas de ocupação do solo e determinar o zoneamento da cidade.
CIDADE SEM JEITO
Anhaia Mello continuou a atuar como professor e foi um dos principais responsáveis pela articulação com o governo estadual que levou à criação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), em 1948. A faculdade abriu uma nova frente do pensamento arquitetônico no Brasil, com a formação de arquitetos-urbanistas, diferente da Escola Politécnica, que formava engenheiros-arquitetos.
Marcas de Anhaia Mello em São Paulo Cidade Universitária
O professor tinha um olhar aberto e livre de preconceitos, mais do que muitos ao seu redor. Em 1951, convidou um jovem arquiteto para dar aulas na FAU. A reitoria, porém, vetou a contratação. Não queria saber de um professor comunista na faculdade. O comunista chamava-se Oscar Niemeyer, que em poucos anos tornou-se um dos maiores nomes da arquitetura mundial.
Ainda na USP, Anhaia Mello comandou os trabalhos que levaram à construção da Cidade Universitária e foi o principal articulador de seu projeto arquitetônico, aprovado em 1949 e distribuído entre vários arquitetos. A família Mesquita, dona do jornal O Estado de S. Paulo, pressionava por uma construção em estilo neocolonial, como a do Largo São Francisco, na Sé, mas a influência de Anhaia Mello levou o projeto a seguir uma inspiração moderna.
Na última década de vida, o “velho Anhaia” se recusava a falar sobre São Paulo, mesmo com os amigos, por considerá-la uma causa perdida. “Esse problema não me interessa mais. Prefiro falar de São José dos Campos, que ainda pode tomar jeito”, dizia, conforme relato do jornalista Isaac Jardanovski na Folha de S.Paulo. Para ele, cidades com mais de 100 mil habitantes impossibilitavam a qualidade de vida.
Pela Escola Politécnica, recebeu o título de doutor honoris causa, em 1961, quando se aposentou. Morreu em 16 de janeiro de 1974. Nos obituários dos jornais, amigos e admiradores foram unânimes: São Paulo teria se tornado uma cidade muito melhor para viver caso as ideias de Anhaia houvessem sido aplicadas. “Precursor consciente dos processos de defesa ecológica, das campanhas antipoluição, dos sistemas de qualificação da vida urbana, Anhaia Mello deve ter morrido descontente com a sua cidade”, escreveu Jordanovski.
Um dia após sua morte, virou nome de avenida, por ato do prefeito Miguel Colasuonno. Uma homenagem que o “velho Anhaia” talvez não visse com entusiasmo. É mais provável que ele ficasse mais satisfeito ao saber que daria nome a uma sala na FAU, que até hoje abriga também uma escultura em homenagem ao arquiteto que a idealizou.
SAIBA MAIS
Livros
FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profissão em São Paulo. São Paulo: Fapesp: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
TOLEDO, Rodrigo Alberto. “O Urbanismo Paulista da primeira metade do século XX: utopias e realidades”. Revista Sociedade e Território, UFRN, 2017.