Texto: Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Criador de um método de alfabetização de adultos e autor de mais de 50 livros, o professor Paulo Freire já recebeu dezenas de homenagens de universidades brasileiras e internacionais. Educador, pedagogo e filósofo, é o Patrono da Educação do Brasil e da cidade de São Paulo. Uma das principais premiações da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) recebe seu nome: Prêmio Paulo Freire de Qualidade do Ensino Municipal.
As ideias de Paulo Freire são consideradas revolucionárias. “Ninguém educa ninguém, assim como ninguém se educa a si mesmo sozinho, as pessoas se educam em comunhão, mediadas pelo mundo”, escreveu em Pedagogia do oprimido, seu livro mais famoso. “Sua obra, que enfatiza a cidadania, é um contraponto ao sistema educacional, mais direcionado ao mercado”, afirma à Apartes um de seus biógrafos, Sérgio Haddad. “Foi um pensador da educação”, resume.
Ninguém educa ninguém, assim como ninguém se educa a si mesmo sozinho, as pessoas se educam em comunhão, mediadas pelo mundo Paulo Freire
Paulo Reglus (o professor nunca soube onde o pai arranjou esse nome) Neves Freire nasceu no Recife (PE), em 19 de setembro de 1921. Filho do capitão da Polícia Militar de Pernambuco Joaquim Temístocles Freire e da dona de casa Edeltrudes Neves Freire, mais conhecida como dona Tudinha, levou uma vida de classe média em um subúrbio da capital pernambucana. Morava em uma casa que tinha um quintal com muitas árvores, em cujas sombras aprendeu a ler e a escrever, ensinado pelos pais. “A decifração da palavra fluía naturalmente da ‘leitura’ do mundo particular, fui alfabetizado com palavras do meu mundo, e não do mundo maior de meus pais”, recorda-se no livro A importância do ato de ler. “O chão era o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.”
Quando a situação econômica ficou ruim, a família Freire teve de ser mudar para uma cidade vizinha, Jaboatão dos Guararapes, onde o custo de vida era menor. A morte do capitão Joaquim, quando Freire tinha 13 anos, dificultou ainda mais a vida da viúva e dos quatro filhos. “Foi uma infância difícil, mas gostosa e bonita”, disse o professor numa entrevista em 1982.
Ele explicou que era um “menino conjunção”, uma conexão, pois andava com os moleques que comiam, “mesmo que comesse menos que eles”, mas também participava do “mundo dos meninos que quase não comiam”. Freire concluiu: “Essa intimidade com os meninos operários me ensinou desde a tenra infância um mundo de coisas, me abriu os olhos para as injustiças tremendas de uma sociedade como a nossa”.
Graças ao empenho de dona Tudinha, o filho caçula conseguiu uma bolsa de estudo no Colégio Oswaldo Cruz, no Recife. O proprietário e diretor, Aluízio Pessoa de Araújo, só fez uma exigência: o aluno teria de ter boas notas. O bolsista se esforçou tanto que se tornou professor de português no Oswaldo Cruz. Por toda a vida, Freire foi muito grato a Araújo.
Em paralelo à carreira de educador, começou a cursar Direito. Ainda estudando, casou-se com a professora primária Elza Maia Costa de Oliveira, em 1944. O casal teve cinco filhos e ficou junto até a morte de Elza, em 1986.
Os livros do educador foram traduzidos em muitas línguas
Um dos filhos, Lutgardes Costa Freire, lembra-se de um pai bem carinhoso. “Ele mantinha coerência tanto no que escrevia, como naquilo que vivia em casa. Aproveitava todos os momentos para ensinar alguma coisa e para aprender alguma coisa, seja com os filhos, seja com os seus amigos”, afirmou durante uma homenagem ao professor na Câmara Municipal paulistana, em 2005.
Freire se formou em Direito, mas logo percebeu que não seria um bom advogado, optando pela Educação. Em 1947, assume seu primeiro posto com gestor na área: a Diretoria de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (Sesi) em Pernambuco. No cargo, procurou conhecer o dia a dia dos trabalhadores, a fim de saber como seus filhos poderiam aprender melhor.
TI-JO-LO
Treze anos depois, no Movimento de Cultura Popular, ligado à Prefeitura do Recife, o professor passou a utilizar uma forma de alfabetização de adultos que viria a se tornar o método Paulo Freire. Resumidamente, propõe que os alfabetizadores façam uma pesquisa com os alunos que vão aprender a ler e escolham cerca de 20 palavras do dia a dia deles, que serão usadas nas aulas – as palavras geradoras. Por exemplo, no começo da década de 60, em uma comunidade de agricultores no Cabo, cidade da região metropolitana do Recife, as palavras escolhidas foram: tijolo, voto, roçado, abacaxi, cacimba, fome, feira, milho, maniva, planta, lombriga, engenho, guia, barracão, charque, cozinha e sal.
As palavras são divididas em sílabas e a mistura dessas sílabas forma novas palavras. A ideia é que, sempre pelo diálogo, o aluno aprenda a ler a realidade social em que vive e a palavra escrita que representa esse dia a dia.
A experiência no Recife fez tanto sucesso que foi repetida em outras cidades, com a orientação de Freire. Em Angicos, interior do Rio Grande do Norte, o então presidente João Goulart foi dar uma aula de encerramento, em 2 de abril de 1963, e falou aos alunos: “Que Deus nos ajude para que esta alfabetização possa proporcionar não somente o conhecimento mais amplo, mas, acima de tudo, que possa uni-los nas reivindicações dos pobres por um clima de paz, de justiça social e por um Brasil emancipado”.
Mas nem todos nessa formatura estavam gostando da história de ensinar adultos a ler e a escrever. O marechal Humberto Castello Branco, que um ano depois viria a ser o primeiro presidente da ditadura militar, disse a Freire que estava convencido do caráter subversivo do professor por causa de sua defesa de uma “pedagogia sem hierarquia”, conta Sérgio Haddad no livro O educador: um perfil de Paulo Freire.
Com prestígio cada vez maior, no País todo, com os resultados do método, em 1963 Paulo Freire foi convidado a coordenar o Programa Nacional de Alfabetização. Mas o golpe militar, em 31 de março de 1964, mudou tudo.
Acusado de ser “um criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, o professor ficou preso por 72 dias em um quartel do Recife. Solto, achou que seu trabalho ficaria muito difícil se continuasse no Brasil e decidiu sair do País.
EXÍLIO PRODUTIVO
Em setembro de 1964, iniciou seu exílio. Começou na Bolívia, onde só passou alguns meses, pois houve um golpe de Estado e ele achou melhor mudar-se para o Chile. De 1964 a 1969, trabalhou na alfabetização de trabalhadores rurais no Instituto Chileno para a Reforma Agrária (Icira). Passou parte de 1969 na Universidade de Harvard (EUA). Em 1970, estabeleceu-se na Suíça, como consultor educacional do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), uma organização que reúne dezenas de Igrejas cristãs.
Desde a infância, Freire foi ligado à Igreja Católica. Mas dizia que não era religioso. “Sou muito mais um homem de fé do que um religioso”, declarou numa entrevista em 1992. Também dizia que sua militância esquerdista ajudava seu cristianismo. “Nunca neguei a minha camaradagem com Cristo e nunca neguei a contribuição de Marx para melhorar a minha camaradagem com Cristo. Marx me ensinou a compreender melhor os Evangelhos.”
Durante seu período no CMI, além de dar palestras em todos os continentes, o professor participou de um projeto de alfabetização em países africanos que haviam conquistado a independência recentemente, como São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Angola. Sabia que a tarefa era muito difícil. “A educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que este mundo se transforme realmente pra que o anúncio que a educação faz não caia no vazio”, disse numa palestra em 1978, sobre seu trabalho na África. E completou: “Isso exige rigor nos estudos, capacitação de quadros, desenvolvimento econômico e social do país, tudo a um só tempo. Não é fácil”.
Apesar das dificuldades, Freire gostou dos projetos africanos. Visitou os países algumas vezes e, quando não podia ir, enviava fitas cassetes com orientações. “Estávamos num círculo de cultura das Forças Armadas Revolucionárias do Povo, em Bissau, mas em certo sentido era como se estivéssemos no Brasil de anos passados, aprendendo com os alfabetizandos e não apenas a eles ensinando”, disse numa carta ao comissário de Educação de Guiné-Bissau, Mario Cabral. Suas atividades na África foram contadas no livro Cartas à Guine-Bissau: registros de uma experiência em processo.
Uma cultura não destrói os seus cerimoniais sem punição, o que é preciso é saber viver os cerimoniais, é preciso ser sujeito deles e não objeto Paulo Freire
Após 16 anos no exílio, Paulo Freire volta a morar no Brasil em 1980 (um ano antes, tinha vindo fazer uma visita). Passa a viver em São Paulo e se torna professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Retorna orgulhoso de não ter perdido as raízes. “Voltei inteiro, inclusive mantendo meu sotaque nordestino, apesar de todas as interferências linguísticas que sofri”, declarou à revista Teoria e Debate, em 1992. Ele costumava dizer que falava inglês e francês com sotaque pernambucano.
NO PODER
Em 19 de agosto de 1986, o educador recebeu o Título de Cidadão Paulistano, proposto pela vereadora Luiza Erundina, que justificou a homenagem afirmando que era um dos mais importantes educadores do mundo. “Sua obra educacional se reveste de profundo humanismo, fruto do seu amor pelo ser humano e de sua confiança no povo”, declarou Erundina na sessão solene.
No discurso de agradecimento, Freire ressaltou a importância das cerimônias: “Uma cultura não destrói os seus cerimoniais sem punição, o que é preciso é saber viver os cerimoniais, é preciso ser sujeito deles e não objeto”.
Em 1988, o educador se casou com Ana Maria de Albuquerque Araújo Harsch, a Nita. Eles se conheciam desde que ela era criança, pois era filha de Aluízio Pessoa de Araújo, o diretor do colégio que lhe concedera a bolsa de estudo na juventude. Freire deu aulas de português para Nita no Recife e, em 1980, foi seu professor em um curso de pós-graduação, em São Paulo.
Ainda em 88, Erundina elege-se prefeita de São Paulo (primeira mulher a chegar ao cargo) e o primeiro membro do secretariado a ser escolhido foi Paulo Freire, para a pasta da Educação. O professor procurou democratizar o ensino, aumentando a autonomia escolar. “Duas vezes por semana, saía em visitas às escolas conversando com merendeiras, porteiros, alunos, pais e membros da comunidade, além, claro, dos educadores”, conta o professor e ex-secretário da Educação (gestão Marta Suplicy) Fernando José de Almeida, no livro Folha explica Paulo Freire.
Freire também instalou espaço para aulas em salões de sindicatos e igrejas, além de ter mudado o nome das delegacias de ensino para núcleos de ação educativa, pois achava que o nome delegacia remetia à polícia.
Sua gestão, entretanto, recebeu críticas até dos apoiadores de Erundina. Foi acusado de apresentar poucos resultados, de montar uma equipe sem experiência no serviço público e de praticar um populismo pedagógico, entre outras queixas. Dois anos e meio após ter assumido, Paulo Freire deixa a Secretaria da Educação, em maio de 1991. Alegou que preferia voltar a dar palestras e a escrever livros.
Sérgio Haddad considera a gestão “marcante, por ser progressista, democrática, descentralizada, que escutava a comunidade”. O biógrafo lamenta que Freire tenha passado tão pouco tempo na pasta. “Mas houve muitos avanços”, afirma.
Em 2 de maio de 1997, o mestre morre de infarto, aos 75 anos. O corpo foi velado na PUC de São Paulo. Sua morte foi lamentada até por adversários ideológicos. O então senador Jarbas Passarinho, coronel do Exército que havia sido ministro da Educação durante o governo do presidente Emílio Médici (1969-1974), comparou Paulo Freire ao suíço Jean Piaget, um dos principais educadores do século 20.
NOTAS ALTAS E BAIXAS
Anos após a morte, suas ideias continuam sendo estudadas em muitas universidades do mundo. Seus livros, principalmente Pedagogia do oprimido, são muito citados por pesquisadores. Em 2012, Freire foi declarado Patrono da Educação Nacional, após a aprovação de um projeto da deputada federal Luiza Erundina (Psol-SP). Ele defendia uma pedagogia da libertação contra uma pedagogia da opressão, justificou a parlamentar.
Os ataques a Freire, entretanto, também não param. No Congresso Nacional, houve tentativas de retirar de Freire o título de Patrono da Educação Brasileira. Em 2019, uma petição com 23.588 assinaturas foi enviada ao Senado, solicitando que Freire não fosse mais o patrono, pois “seu método se baseia na luta de classes, é a materialização do marxismo cultural e os resultados são catastróficos”. A proposta foi arquivada.
Nunca neguei a minha camaradagem com Cristo e nunca neguei a contribuição de Marx para melhorar a minha camaradagem com Cristo Paulo Freire
No mesmo ano, na Câmara dos Deputados, o deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) apresentou o projeto de lei 1930/19 para tirar o título de Freire. Alega que a homenagem ao professor representa a eliminação do pensamento plural nas escolas e no meio acadêmico. “O modelo freiriano de educação é celebrado pela reversão, pela indisciplina, pela insubordinação do aluno perante o professor”, criticou o parlamentar. Até o fechamento desta matéria, a proposta estava em análise.
Segundo Haddad, Paulo Freire ainda é tão atacado porque nunca separou a educação da política. “Os conservadores querem uma educação neutra, só técnica, mas isso não existe, é impossível”, explica. O biógrafo ressalta que o professor gostava de ouvir críticas, desde que fundamentadas e ditas com educação. “Às vezes, até incorporava algumas sugestões dos críticos.”
IDEIAS PREMIADAS
A Câmara Municipal de São Paulo prestou diversas homenagens a Paulo Freire. Em 2018, tornou o professor patrono da Educação Paulistana e realizou, no mesmo ano, uma sessão solene para celebrar os 50 anos da publicação do livro Pedagogia do oprimido.
Em 2021, para celebrar o centenário do educador, a CMSP organizou uma exposição online de desenhos feitos por alunos, de qualquer nível escolar, de escolas públicas e privadas de São Paulo.
Uma das homenagens de maior abrangência é o Prêmio Paulo Freire de Qualidade do Ensino Municipal, concedido anualmente a projetos que representem um aprimoramento da qualidade de ensino na escola pública, desenvolvidos por educadores nas unidades da cidade. Uma comissão formada por representantes da CMSP e de entidades envolvidas com a educação decide qual projeto vai ganhar a Salva de Prata.
O prêmio tem o objetivo de estimular e valorizar as iniciativas que, com criatividade, estejam alinhadas a uma política comprometida com a melhoria do processo de ensino-aprendizagem. Os projetos premiados, que tratam de geografia, história, artes, feminismo, ecologia, entre outros temas, mostram que as ideias de Paulo Freire continuam vivas. Tão vivas quanto estavam na década de 60, quando Thiago de Mello escreveu um poema para homenagear o professor e seus ensinamentos, Canção da alegria, cujos versos finais dizem:
“Peço licença para terminar
soletrando a canção de rebeldia
que existe nos fonemas da alegria:
canção de amor geral que eu vi crescer
nos olhos do homem que aprendeu a ler”.
Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br
SAIBA MAIS
Livros
HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. Todavia. 2019.
COHN, Sergio (org). Encontros: Paulo Freire. Azougue. 2012.
ALMEIDA, Fernando José de. Folha explica Paulo Freire. 2009.
Sites
Instituto Paulo Freire https://www.paulofreire.org
Cátedra Paulo Freire PUC-SP https://www.pucsp.br/paulofreire
Reportagem
Reportagem TV Câmara. Conheça o Prêmio Paulo Freire