Texto: Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Em 19 de julho de 1931, um jovem locutor esportivo da Rádio Educadora Paulista (atual Gazeta) se viu diante de um desafio inédito: transmitir uma partida de futebol do começo ao fim. Lance por lance, cada passe, cada gol, as faltas, os cartões: tudo narrado com cadência e emoção para uma audiência que contava apenas com o som do rádio para acompanhar os feitos e os percalços de seu time.
Era uma novidade. Até então, os locutores se limitavam a transmitir breves boletins com os lances principais de uma partida, nunca um jogo completo. Para tornar a tarefa ainda mais complicada, o locutor encarregado da tarefa, Nicolau Tuma, um estudante de Direito de 20 anos, não podia contar com a facilidade dos números nas costas para identificar os jogadores, já que os uniformes da época ainda não carregavam essa sinalização. O jeito que Tuma encontrou foi ir bem antes do jogo até os vestiários do Estádio da Floresta — próximo à Ponte das Bandeiras, no terreno hoje ocupado pelo Centro Esportivo Tietê, na região central da cidade de São Paulo — e observar atentamente os jogadores das seleções de São Paulo e do Paraná, que se enfrentariam naquele dia, para fixar na memória as características físicas e os nomes de cada um antes do jogo começar.
A transmissão do jovem locutor ecoou pelo Vale do Anhangabaú, amplificada pelos alto-falantes da Confeitaria Mimi, e foi um sucesso. Tuma conseguiu descrever o jogo todo e narrou cada um dos dez gols da partida, que terminou em 6 a 4 para os paulistas. E mostrou que era bom nisso. Pela rapidez com que narrava, ganhou o apelido de “speaker (locutor) metralhadora”.
Pioneiro da narração esportiva do Brasil e um dos nomes mais importantes do jornalismo de rádio da primeira metade do século passado, Nicolau Tuma criou a palavra “radialista” para definir os profissionais do meio de comunicação que mais amou em toda a sua vida. Em oposição aos que preferiam “radista”, Tuma emplacou a junção criada por ele das palavras rádio e idealista. Sim, idealista. Porque só por idealismo alguém poderia entrar nessa profissão, na qual “trabalhamos muito e não ganhamos nada”, como costumava dizer.
Podia não dar dinheiro, mas a profissão lhe rendeu fama. Em 1939, após narrar uma corrida internacional de automóveis no Rio de Janeiro, foi reconhecido na praia de Copacabana por Carmen Miranda, uma das cantoras mais famosas da época, que fez questão de abraçá-lo.
Tuma aproveitou o sucesso conquistado no rádio para deslanchar uma bem-sucedida carreira política. Vereador por três mandatos na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), entre 1948 e 1959, foi também deputado federal e ministro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, entre outros cargos. Outros membros da sua família seguiram seu exemplo, dando início a uma dinastia que deixou sua marca na política de São Paulo.
A VOZ DA REVOLUÇÃO
Quando abraçou o desafio de inaugurar as transmissões esportivas do Brasil, Tuma já era um jornalista com três anos de experiência. Nascido em Jundiaí (SP), trazia a comunicação de berço: seu pai, José Tuma Zain, havia sido pioneiro da publicidade em rádio no País. Em 1927, ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou em 1931.
Enquanto fazia faculdade, iniciou na carreira jornalística, em 1928, como repórter e redator de jornais, entre eles o Diário Nacional, ligado ao Partido Democrático, de oposição ao Partido Republicano, que dominava as eleições paulistas. No ano seguinte, sentou pela primeira vez diante dos microfones de uma rádio, após vencer um concurso para locutor da futura Rádio Gazeta.
O ritmo de fala acelerado do “speaker metralhadora”, celebrizado na transmissão esportiva pioneira de 1931, que não dava espaço para momentos de silêncio na locução, casou perfeitamente com as necessidades daqueles tempos iniciais do rádio, quando muitas transmissões não contavam com vinhetas ou comerciais gravados e nem com outros comentaristas: era a voz de um único locutor e mais nada. Se esse locutor parasse de falar, era como se a rádio saísse do ar. Por isso, pausas e silêncios eram inimigos.
“Eu criei a radiação esportiva rápida porque o tempo do rádio é muito valioso. O ouvinte não pode perder um segundo de irradiação. Se ele liga o receptor num determinado momento e há um vazio, um branco, a falta de uma palavra, ele muda de estação. O que o locutor fazia antigamente no rádio, como havia somente a voz, era falar, falar, falar e mais falar para não deixar um segundo de desatenção do ouvinte”, explicou Nicolau Tuma, 60 anos depois, numa entrevista ao Programa Terceiro Tempo, na Rádio Bandeirantes, com Milton Neves.
Na mesma entrevista, lembrou como a estrutura das transmissões daquele tempo era precária, praticamente artesanal: “Não tinha nada, eu era tudo. Eu era comentarista, eu mesmo carregava o microfone e ia de bonde para transmitir, porque naquele tempo se ganhava muito pouco e ao mesmo tempo não tínhamos uma organização de sustentação das irradiações. Era uma coisa toda improvisada, um artesanato do rádio”.
“Não tinha nada, eu era tudo. Eu era comentarista, eu mesmo carregava o microfone e ia de bonde para transmitir, porque naquele tempo se ganhava muito pouco e ao mesmo tempo não tínhamos uma organização de sustentação das irradiações. Era uma coisa toda improvisada, um artesanato do rádio” Nicolau Tuma
Alguns pesquisadores, como Reinaldo C. Tavares, autor de Histórias que o rádio não contou, relativizam o ineditismo da narração de Tuma no Estádio da Floresta, apontando a existência de outros pioneiros, como Abílio Castro e Armando Pamplona, que, no mesmo ano de 1931, também realizaram transmissões esportivas. Apesar disso, há unanimidade sobre a importância de Nicolau Tuma para a história do rádio no Brasil.
Em 1932, um ano após firmar seu nome como pioneiro das transmissões esportivas, Tuma voltou a ter um encontro com a história. Em 9 de julho daquele ano — uma data que haveria de virar nome de rua em praticamente todos os municípios do Estado —, os paulistas deflagraram a Revolução Constitucionalista, um movimento armado contra o governo provisório do presidente Getúlio Vargas, que havia chegado ao poder com a Revolução de 30 e reduzido a influência da oligarquia paulista no poder federal. No dia seguinte, a população foi informada sobre o início do conflito por meio de uma nota lida na Rádio Record por Nicolau Tuma.
Por três meses, os paulistas se engajaram em uma guerra civil contra o governo central. No rádio, Tuma se tornou uma das principais vozes do movimento, ao lado dos locutores César Ladeira e Renato Macedo. Alguns dos “comunicados do front” que o trio lia no ar tinham um redator ilustre: o escritor Alcântara Machado, importante nome da primeira fase do modernismo brasileiro, autor de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). O movimento acabou derrotado, mas influenciou o governo a adotar uma de suas principais bandeiras: a criação de uma Constituição, que foi sancionada em 1934. A Carta acabaria suspensa três anos depois, quando Vargas lançou um golpe de Estado que deu início à ditadura do Estado Novo, que se estendeu até 1945.
Enquanto isso, Tuma enfrentou uma tragédia pessoal: sua esposa, Julieta Dabus Tuma, com quem tinha uma filha, morreu em 1942. No mesmo ano, deixou a transmissão esportiva. Anos depois, casou-se com Lúcia de Barros Tuma, com quem viveria por mais de 40 anos, até o final da vida.
Tornou-se diretor da Rede de Emissoras Associadas do Brasil , do megaempresário da comunicação Assis Chateaubriand, e da Rádio Tamoio, onde foi o primeiro jornalista do Brasil a anunciar o desembarque dos Aliados na praia da Normandia em 6 de junho de 1944, o Dia D, um feito que, junto com a derrota imposta pelos russos aos alemães no front oriental, marcou o início do fim da Segunda Guerra Mundial. No mesmo ano, participou da fundação da Associação Brasileira de Rádio, da qual foi vice-presidente. Foi ali, ao elaborar os estatutos da associação, que criou a palavra radialista, usada até hoje para denominar os profissionais da área.
Após o fim da ditadura do Estado Novo, quando o País voltou a ter eleições, Tuma participou da primeira em âmbito municipal daquela retomada democrática, em 1947, e foi eleito vereador pelo partido conservador União Democrática Nacional (UDN). Permaneceu na CMSP por três mandatos, até 1959.
Como vereador, Nicolau Tuma atuou nas Comissões de Justiça, de Urbanismo, Obras e Serviços Públicos, de Serviços de Utilidade Pública e de Redação. Foi autor de 22 projetos que viraram leis. Algumas delas mostram que Tuma se manteve ligado às suas origens no esporte e no jornalismo, como a lei 5043, de 1956, que concedeu “ampla anistia fiscal” a todas as agremiações esportivas que tivessem atividades amadoras, e a lei 4782, de 1955, com a qual concedeu um auxílio de 200 mil cruzeiros para o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo realizar o VI Congresso Nacional de Jornalistas.
Outras leis originadas de seus projetos obrigavam comércio e indústria a testar na Prefeitura os pesos, balanças e medidas que utilizavam, instituíram a prática de informar os distritos logo abaixo dos nomes das vias nas placas de rua e determinavam a instalação de postos de fiscalização da Prefeitura em cada uma das feiras livres da cidade.
Também foi um dos responsáveis por uma lei que definia o conceito de livro para fins legais (“toda edição comercial de obra literária, científica, artística musical, técnica e pedagógica, excluídas tão somente as que tiverem finalidade publicitária de interesse comercial, assim como os volumes em branco ou simplesmente pautados e riscados para escriturações de qualquer natureza”) e de uma norma que soa curiosa aos olhos de hoje, quando as divisões de atribuições e orçamentos entre Estado e municípios se tornaram bem delimitadas: o envio de 100 mil cruzeiros para a cidade de Americana. Localizada a 126 quilômetros de São Paulo, a cidade havia sido atingida por inundações.
Em 1958, elegeu-se deputado federal, sempre pela UDN. Em 1960, foi um dos primeiros parlamentares a se transferir para a nova capital federal, Brasília. No mesmo ano, na inauguração do primeiro campo de futebol, deu o pontapé inicial e relembrou os tempos de “speaker metralhadora”, irradiando o primeiro jogo da cidade recém-criada.
No seu primeiro mandato na Câmara dos Deputados, foi relator do Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, que criou a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel). Após o golpe militar de 1964, filiou-se à Aliança Renovador Nacional (Arena), partido de apoio à ditadura.
Deixou a Câmara dos Deputados em 1968, ao ser nomeado ministro (cargo hoje equivalente ao de conselheiro) do Tribunal de Contas paulista, onde se aposentou em 1981. Morreu em 11 de fevereiro de 2006, aos 95 anos, deixando uma filha e quatro netos. Seu corpo foi velado no Hall Monumental da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
Nessa altura, o sobrenome Tuma já fazia parte da história da política em São Paulo, visto que vários de seus parentes foram pelo mesmo caminho. Primo de Nicolau, Romeu Tuma foi senador por dois mandatos, de 1995 a 2010. Dois filhos de Romeu seguiram a mesma trilha: Robson Tuma tornou-se vereador paulistano e deputado federal ao longo de cinco mandatos, de 1991 a 2011, enquanto Romeu Tuma Júnior encarou apenas um mandato de deputado federal (2003-2007). Outro Tuma a fazer política foi Eduardo, sobrinho de Romeu, vereador de 2012 a 2020 (chegou a presidir a Câmara Municipal de São Paulo) e hoje conselheiro do Tribunal de Contas do Município (TCM). Todos seguindo a trilha aberta pelo pioneiro.
Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br
SAIBA MAIS
Livro
TAVARES, Reynaldo C. Histórias que o rádio não contou: do galena ao digital, desvendando a radiodifusão no Brasil e no mundo. Paulus, 2014.