Texto: Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Tudo seguia dentro dos conformes na cerimônia de posse dos vereadores da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) ao longo daquela manhã de sábado, em 9 de julho de 1936. Até que um dos eleitos resolveu fazer algo diferente.
A Câmara havia voltado a funcionar após passar seis anos desativada por causa da Revolução de 1930, que fechou todos os Legislativos do País. Como sua antiga sede, o Palacete Prates, na Rua Líbero Badaró, estava totalmente ocupada pelas dependências da Prefeitura, o Legislativo municipal teve de se mudar para um imóvel alugado, o Palácio do Trocadero, na Praça Ramos de Azevedo. Apesar da mudança de local, a sessão inaugural começou seguindo os ritos de sempre.
Por ser o mais votado dos vereadores, o veterano Marrey Junior foi escolhido para ler o texto do compromisso legal dos eleitos. Tinha 50 anos e estava em seu terceiro mandato, sempre pelo Partido Republicano Paulista, o mais tradicional da política de São Paulo, criado mais de 60 anos antes. Diante dos colegas, fez a leitura do juramento, em que prometia “desempenhar, com préstimo e lealdade”, as funções de vereador, respeitando as leis e tudo o mais. Em seguida, cada um dos demais eleitos se levantava e, na sua vez, dizia apenas “assim o prometo”.
“Assim o prometo”, “assim o prometo”, “assim o prometo”… Cada vereador seguiu fazendo o combinado. Mas não todos.
Foi quando se levantou o estreante João Ribeiro de Barros. Um dos pioneiros da aviação no Brasil, conhecido por ter comandado a primeira travessia aérea do Oceano Atlântico sem apoio marítimo, Barros tinha 36 anos e estava em seu primeiro mandato. Havia sido eleito pela Ação Integralista Brasileira, uma força política jovem no cenário brasileiro, formalizada como partido apenas um ano antes. Na sua vez, Barros resolveu fazer o seu próprio juramento: “Em nome de Deus, anauê!”.
Como os Auditórios Online ainda não haviam sido inventados e os registros que restam da sessão são notas taquigráficas, que só transcrevem o que é falado, não é possível ter certeza sobre os gestos que acompanharam a declaração de Ribeiro de Barros. Mas é bem provável que o novato tenha proferido sua frase destoante com o braço direito erguido para o alto, como determinavam as normas do seu partido.
Se para você um gesto como esse lembra uma saudação nazista, saiba que não é uma coincidência. É que aquele vereador pertencia ao integralismo, um movimento político inspirado nos movimentos autoritários que tomavam conta da Europa naquele tempo, como o fascismo italiano e o nazismo alemão.
O gesto rebelde de Barros não passou batido. Depois que o novato soltou seu “anauê!” — saudação em tupi que significa “você é meu parente” e servia para marcar a identidade dos integralistas, mais ou menos como o sieg heil dos nazistas —, o presidente da sessão, o juiz eleitoral Oswaldo Pinto do Amaral, repreendeu Barros e ordenou que fizesse seu juramento igual a todo mundo. Sem querer causar ainda mais confusão em seu primeiro dia na firma, Barros obedeceu: “Assim o prometo.”
Duas semanas depois, Barros renunciou — a história não registrou os seus motivos — e foi substituído pelo primeiro suplente, José Ferreira Alves Cyrillo. Assim como seu antecessor, Cyrillo haveria de destoar dos colegas e causar ao longo da legislatura. É que os integralistas se diferenciavam dos demais políticos não apenas por causa dos gestos estranhos e das saudações curiosas, mas por rejeitar o próprio regime democrático que os havia eleito. Da tribuna do Palácio do Trocadero, Cyrillo atacava a democracia sempre que podia. Uma vez, declarou: “A minha eleição é o suicídio do regime liberal democrata por intermédio do voto universal”.
De um povo heroico, um brado fascista
Para entender o que levou um vereador com esse perfil à Câmara Municipal, vamos dar uma olhada no que estava acontecendo no Brasil e na Europa daqueles tempos, antes de continuar a contar o que ele aprontou como político eleito.
Surgido em 1932, o integralismo foi um movimento diferente de tudo o que o Brasil havia conhecido. Numa época em que os principais partidos políticos eram representantes de elites estaduais, sem respaldo popular e nem alcance geográfico (São Paulo tinha o Partido Republicano Paulista e o Rio Grande do Sul, o Partido Republicano Rio-Grandense, por exemplo), o movimento teve alcance nacional e se tornou o primeiro movimento de massas brasileiro, capaz de arregimentar milhares de pessoas em todas as regiões do País, além de possuir núcleos organizados em Montevidéu, Buenos Aires, Filadélfia, Genebra, Zurique, Porto, Berlim, Varsóvia e Roma.
O integralismo atraiu personalidades como o jurista Miguel Reale e o escritor Gustavo Barroso, presidente por quatro vezes da Academia Brasileira de Letras, os quais, ao lado de Plínio Salgado, tornaram-se os principais ideólogos do movimento. Também passaram pelo integralismo nomes como os do poeta Vinícius de Moraes, o folclorista Câmara Cascudo, o cineasta Glauber Rocha, o lutador Hélio Gracie e o bispo dom Hélder Câmara — que depois mudaria de lado e se tornaria uma das figuras centrais da esquerda católica e da luta pelos direitos humanos.
Com apenas cinco anos de existência, o movimento se gabava de reunir 1 milhão de filiados, embora os historiadores considerem esse número exagerado e estimem a quantidade real de integralistas entre 200 mil e 500 mil. Mesmo assim, era muita gente para um país com cerca de 40 milhões de habitantes. Estamos falando de centenas de milhares de brasileiros que saíam às ruas marchando em camisas verdes e falando “anauê” uns para os outros, que cultivavam o lema “Deus, pátria e família”, que morriam de medo de uma ameaça comunista que só existia em suas cabeças e que brigavam até a morte nas ruas com seus inimigos. Brasileiros que chegaram a encurralar o presidente da República dentro da residência oficial em uma tentativa de golpe de Estado e que sonhavam em substituir a democracia por um regime forte, liderado por um chefe nacional, o escritor e jornalista Plínio Salgado, por quem prometiam sacrificar a própria vida.
“O integralismo foi o maior movimento fascista fora da Europa, em termos de influência e número de adeptos”, atesta o historiador Renato Alencar Dotta, mestre e doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Elementos verdes: os integralistas na mira do DOPS (1938-1981), baseado em sua tese de doutorado.
Como assim, fascista? Bom, essa é uma palavra que costuma assumir mais de um significado, de xingamentos nas redes sociais a definições em dicionários de ciência política. Sua origem, contudo, é precisa. A palavra fascista foi pronunciada pela primeira vez em março de 1919, na Itália.
O ovo da serpente
O termo fascismo, originalmente, designava o movimento político criado a partir dos Fasci di combattimento, grupos paramilitares, idealizados por Benito Mussolini, que reuniam ativistas nacionalistas e anticomunistas, muitos dos quais haviam lutado nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os fascistas pensavam com frequência no Império Romano, como um passado idealizado de esplendor que sonhavam em retomar para fazer a Itália grande de novo, e por isso adotaram como símbolo o fascio, um feixe usado pelos antigos magistrados romanos, associado à ideia de coesão social: assim como uma vareta pode ser facilmente quebrada, mas muitas varetas unidas em um feixe formam um conjunto indestrutível, uma sociedade forte seria aquela em que todos estivessem unidos, sem espaço para divergências.
Uma coesão social que os fascistas faziam questão de garantir na base da porrada. Vestindo camisas pretas e reunidos em grupos conhecidos como esquadrões, começaram a enfrentar sindicatos de trabalhadores, no campo e na cidade, por meio da expulsão e do assassinato de militantes socialistas e comunistas. Com isso, apesar de propagarem um discurso antissistema, os fascistas acabaram caindo na graça dos latifundiários e da burguesia, que enxergaram na violência dos camisas-pretas o melhor remédio para enfrentar o avanço dos partidos de esquerda e dos sindicatos que falavam em fazer uma revolução como a que havia levado os trabalhadores ao poder na Rússia, em 1917.
A mobilização cresceu tanto que, em outubro de 1922, os esquadrões fascistas resolveram marchar sobre Roma, vindos de várias partes do país, ocupando edifícios públicos e estações ferroviárias. Foi como um 8 de janeiro que tivesse funcionado. O rei Vítor Emanuel III poderia ter resistido, mas preferiu entregar a Mussolini o cargo de primeiro-ministro.
Muitos imaginavam que, uma vez no poder, os fascistas iriam moderar seu comportamento violento e aderir à velha política. Em vez disso, Mussolini investiu na ampliação do seu poder e na destruição da democracia italiana. Fez do seu exército de milicianos uma força de Estado, acabou com a liberdade de imprensa, cassou todos os partidos, com exceção do Partido Nacional Fascista, e instalou uma polícia política e um tribunal especial para vigiar, prender e matar seus opositores. Quem não gostou não poderia nem reclamar com o papa, porque Pio XI havia abençoado Mussolini como um homem “que a Providência nos fez encontrar”, após a Igreja ter recebido uma série de agrados do governo fascista: o reconhecimento da soberania da Igreja Católica sobre o território do Estado do Vaticano, que se mantém até hoje, a instituição do catolicismo como religião oficial da Itália, o ensino religioso obrigatório nas escolas e a abolição do divórcio, entre outros.
Em 1930, Mussolini já governava como chefe supremo da Itália. Seu retrato estava por toda parte, nas ruas, nos escritórios, dentro das casas, nas escolas. Adorado pelos empresários e pela classe média, e com algum apoio também das classes populares, reunia periodicamente multidões para ouvir seus discursos na sacada do Palazzo Venezia, sede do governo italiano — onde a luz do seu escritório passava toda a noite acesa, para passar ao povo a impressão de que Mussolini nunca dormia.
Na tarde de 14 de junho daquele ano, il Duce (o Chefe) abriu espaço na agenda para receber a visita de um admirador do Brasil. Era Plínio Salgado, um homem de 35 anos, tímido, de bigodinho, magro e franzino, que dizia querer implantar em seu país algo parecido com o que o fascismo estava fazendo na Itália.
O início de um sonho…
Por essa época, o veneno de movimentos semelhantes ao criado por Mussolini começava a se espalhar por outras partes do mundo. Na Alemanha, o partido nazista, também criado em 1919, quebrou a cara com uma tentativa fracassada de golpe de Estado em Munique, no ano de 1923, e agora vinha tentando (e conseguindo) chegar ao poder pela via eleitoral. Outros grupos parecidos, grandes e pequenos, surgiram em outros países pelo mundo.
“Pode-se dizer que o fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que, em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo comum no regime de Mussolini”, afirma o escritor italiano Umberto Eco, em O fascismo eterno. Por isso, muitos historiadores e sociólogos ampliaram o sentido original da palavra fascismo para falar não apenas do caso italiano, mas para abranger outros movimentos políticos, de diferentes países, que adotaram ideias e modos de agir semelhantes aos do criado por Benito Mussolini.
Fosse na Itália, na Alemanha, na Romênia ou no Brasil, esses movimentos tinham algumas ideias e comportamentos em comum. Para começar, possuíam os mesmos inimigos: os comunistas, em primeiro lugar, e também a democracia liberal, vista como um regime ineficiente, a ser substituído por um governo autoritário, com um partido único de massas e um líder supremo a ser cultuado e temido. Eram nacionalistas e acreditavam na violência como ferramenta legítima de luta política. Tinham como principal base de apoio as classes médias, mas conseguiam seduzir também as elites econômicas por se mostrarem uma alternativa eficiente para combater a esquerda.
Havia até mesmo nas classes trabalhadoras quem abraçasse o fascismo, por causa do discurso feito para seduzi-las, combinando críticas superficiais ao capitalismo com promessas de melhores condições de vida para os mais pobres. “O discurso fascista em ascensão busca falar com os trabalhadores, porque o movimento quer galvanizar toda a sociedade e tem um discurso para cada segmento. Quando os fascistas chegam ao poder, normalmente há um acordo com os grandes capitalistas e a prática do governo se torna cada vez mais voltada para o grande capital”, aponta Renato Alencar Dotta.
Tão ou mais importante do que as ideias era a estética. “O fascismo italiano foi o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se — conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace”, nota Umberto Eco. Os fascismos criaram uniformes e instituíram símbolos, rituais, cumprimentos e eventos, com o objetivo de gerar uma sensação de unidade no grupo e, uma vez no poder, entre toda a nação. Uma organização fascista passa boa parte do tempo movimentando as massas para afirmar sua identidade e força, reunindo multidões em marchas, celebrações, motociatas. Os livros, os filmes, a escola, tudo deve estar a serviço do projeto. Eco conta que, aos dez anos de idade, em pleno governo fascista, venceu um concurso de redação com o tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da Itália?”. Ele respondeu afirmativamente à pergunta, pois “era um garoto esperto”.
No ambiente carregado de ódio e medo da época, que enfrentava os prejuízos sociais e econômicos deixados pela Primeira Guerra e pelo crash da Bolsa de 1929, e quando a possibilidade de uma revolução comunista tirava o sono de muita gente, os fascismos começaram a se espalhar como pandemia. Diversos países tiveram movimentos para chamarem de seu, embora fora do continente europeu a maioria tenha se mostrado minúscula e pouco influente. A exceção foi o Brasil.
“O integralismo foi o maior movimento fascista fora da Europa, em termos de influência e número de adeptos” historiador Renato Alencar Dotta
Um dos primeiros capítulos da história do pujante movimento do fascismo à brasileira foi escrito naquela tarde de 14 de junho de 1930, quando Plínio Salgado se encontrou com Benito Mussolini no Palazzo Venezia. Passeando pela Europa, Plínio pôde conhecer de perto a primavera fascista no Velho Mundo e estava gostando do que via. “Estou convencido de que o Brasil não pode continuar a viver na comédia democrática”, escreveu a um amigo no Brasil. Agora, diante do homem que dera início a tudo, falou de seus planos para mudar o ambiente político no Brasil. O ditador italiano deve ter guardado uma boa impressão daquele aspirante a Mussolini brasileiro, já que, anos depois, o governo da Itália passaria a financiar regularmente o movimento fundado por Plínio.
Já Plínio gostou especialmente de um conselho dado por Mussolini: antes de montar um partido, deveria criar “um movimento de ideias”. Até então, o brasileiro havia se dado melhor justamente como homem de ideias do que como político. Nascido em 1895 na cidade de São Bento do Sapucaí, interior de São Paulo, elegeu-se deputado estadual em 1928, pelo velho Partido Republicano Paulista, mas se decepcionou com o ambiente político estagnado da Primeira República, tanto que largou o mandato para passear pela Europa — bancado por um amigo e admirador, o banqueiro Alfredo Egídio de Sousa Aranha, fundador do Banco Central de Crédito, antecessor do atual Itaú.
Como intelectual, Salgado foi além do baixo clero. Havia participado da Semana de Arte Moderna de 1922 e da criação de duas vanguardas estéticas, das muitas que surgiram naqueles anos iniciais do modernismo: o grupo Verde-Amarelo e depois o Anta, que pregavam a criação de uma arte autenticamente brasileira. Em 1927, publicou seu primeiro romance, O estrangeiro, sucesso de crítica e público.
O modernismo teve um forte impacto na sua visão política. Assim como os modernistas combinavam o fascínio pelas vanguardas europeias com a busca por uma arte genuinamente brasileira, Plínio resolveu criar um movimento político inspirado nos fascismos europeus, mas adaptado à realidade brasileira. Um fascismo com o nosso jeitinho de ser.
Buuu: é o fantasma do comunismo
De volta ao Brasil, Plínio Salgado encontrou um país em mudança. Um desentendimento entre as oligarquias rurais dos Estados havia posto fim à “política do café com leite”, arranjo político que dominou a República ao longo de quatro décadas, pelo qual os estados de São Paulo e Minas Gerais se alternavam na escolha do presidente da República.
Até 1930, os partidos de oposição, a classe média e os trabalhadores não tinham qualquer espaço nessa democracia de fachada, em que os “coronéis” da política local, mancomunados com os governadores dos estados, aproveitavam-se de um sistema eleitoral fajuto, com voto aberto e sem fiscalização, para botar no poder quem bem entendessem.
Esse sistema político, que mantivera em pé a Primeira República, ruiu quando a Revolução de 30 depôs o presidente Washington Luís, impediu a posse do seu sucessor, Júlio Prestes (ambos indicados pela oligarquia paulista), e colocou no lugar Getúlio Vargas, em 24 de outubro de 1930. Feita a revolução, os vitoriosos passaram a debater qual era o Brasil que eles queriam e que rumo o novo governo deveria seguir: aprimorar os fundamentos democráticos liberais, em direção a um regime republicano digno do nome, ou abandonar de vez essas frescuras de democracia e abraçar o autoritarismo, como alguns países na Europa vinham fazendo com aparente sucesso.
Entre os que defendiam um Brasil autoritário, boa parte começou a se reunir em torno da Sociedade de Estudos Políticos (SEP), o “movimento de ideias” criado por Plínio Salgado que acabou agregando em si diversos pequenos grupos simpatizantes do nazismo e do fascismo que haviam surgido no País a partir de 1923, muitos entre imigrantes alemães e italianos.
A SEP deu origem à Ação Integralista Brasileira (AIB), oficialmente apresentada ao público em 7 de outubro de 1932, com um manifesto lido por Plínio Salgado no Theatro Municipal de São Paulo.
O novo movimento político adotava o lema “Deus, pátria e família”, deixando claro não só o nacionalismo e o conservadorismo, como também o caráter cristão do movimento — uma característica marcante do fascismo à brasileira. A religiosidade acrescentava um ar de batalha espiritual à luta contra o comunismo. Para Plínio Salgado, o grande inimigo era o materialismo, presente tanto no comunismo como no capitalismo internacional, que deveriam ser superados para darem lugar a um Estado integral, que faria a mediação da luta de classes e garantiria o bem-estar para todos. Nesse embate sagrado contra o materialismo, porém, é importante notar que os integralistas se mostravam muito mais anticomunistas do que propriamente antiliberais — e muito menos anticapitalistas, pois defendiam a propriedade privada e contavam com o apoio de empresários.
O anticomunismo se mostrou a maior força impulsionadora do integralismo, indicado como motivo de adesão ao movimento por dois terços dos militantes, segundo uma pesquisa feita pelo cientista político Hélgio Trindade no final dos anos 60 e apresentada no livro O integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30.
Apesar de gerar tanto medo, o comunismo era pouco mais do que um fantasma para a realidade brasileira. Ao contrário do que ocorria na Europa, as forças de esquerda estavam praticamente ausentes dos Parlamentos e enfrentavam muita dificuldade para ganhar espaço nas ruas, por causa da intensa repressão policial, tanto na forma da perseguição pelos agentes de polícia política do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), como pelas patas da cavalaria da Força Pública (antecessora da atual Polícia Militar), usada para reprimir greves e protestos.
Criado em março de 1922, o Partido Comunista do Brasil foi proibido apenas três meses depois pelo governo federal e, com exceção de um breve período de legalidade entre 1945 e 1947, permaneceria clandestino até os anos 80. Num dos raríssimos casos em que os comunistas conseguiram um pequeno sucesso eleitoral, com a eleição, em 1927, de dois vereadores no Rio de Janeiro pelo Bloco Operário e Camponês (BOC), ligado ao PCB, a reação foi tão negativa que o Diário Oficial foi proibido de registrar as falas da dupla durante as sessões, inclusive os apartes.
Para tornar o fantasma do comunismo mais convincente e assustador, os integralistas recorriam a armações dignas dos vilões do Scooby-Doo. “Segundo o testemunho de um dirigente integralista de São Paulo, para estimular os homens de negócios hesitantes em darem dinheiro para a AIB, os milicianos, durante a noite, escreviam slogans ou desenhavam símbolos comunistas sobre os muros de suas casas”, narra Hélgio Trindade em seu livro.
Parece que o Deus de quem os integralistas tanto falavam não se importava com mentiras: táticas de desinformação e o que hoje se chamaria de fake news também foram usados pelo vereador integralista José Cyrillo na Câmara Municipal de São Paulo.
Em 22 de agosto de 1936, Cyrillo solicitou à Mesa Diretora a criação de uma comissão de vereadores para participar das homenagens ao bispo de Campinas, Francisco de Campos Barreto. Seis anos antes, em 24 de outubro, data em que o presidente Washington Luís fora deposto, o bispo tivera que deixar às pressas o palácio onde morava para não virar alvo de um grupo de apoiadores da Revolução de 30, que invadiu e depredou o lugar, em protesto contra as posições políticas do religioso, tido como próximo do presidente deposto. Embora os comunistas não tivessem participado da Revolução de 30 — por entenderem que não passava de uma treta entre setores das oligarquias rurais que não iria ajudar em nada a melhorar a vida do povo —, o vereador integralista declarou na tribuna, seis anos depois, que o bispo havia sido “uma das primeiras vítimas do comunismo no Brasil” e que a figura de Barreto “ergue a barreira intransponível de protesto contra os atos de crueldade dos crentes no credo horripilante de Lenine [Lênin]”.
A chegada dos “galinhas verdes”
Como todo fascista que se preze adora brincar de fantasia, o integralismo oferecia um pacote completo de uniformes, simbologias e rituais inspirados diretamente na última moda europeia. Enquanto os fascistas italianos tinham o fascio e os nazistas, a suástica, os integralistas adotaram a letra grega sigma, numas de passar uma ideia de somatório. Se as camisas dos fascistas eram pretas e as dos nazistas marrons, o integralismo não fez por menos e adotou como uniforme oficial as camisas verdes, acompanhadas de um sigma no braço direito, gravata preta e calça preta ou branca. A bandeira deles jamais seria vermelha, por isso desfilavam com um estandarte azul juntamente com a boa e velha verde-e-amarela. Tinham seus próprios hinos e cumprimentavam entre si com a saudação tupi “anauê”.
As constantes referências aos povos indígenas feitas pelo integralismo, contudo, diziam respeito a um indígena imaginário, que cumpria no integralismo o mesmo papel que o Império Romano no fascismo e as tradições pagãs no nazismo: os indígenas eram ancestrais gloriosos, que haviam cumprido seu papel ao participarem da miscigenação que formou a grande raça brasileira, mas pertenciam ao passado, não ao presente do Brasil.
O integralismo desenvolveu rituais e instituições para acompanhar o militante em cada passo da sua vida. Um bebê integralista teria direito a um batizado integralista, encerrado com as palavras “Ao futuro pliniano, o seu primeiro anauê!” e, anos depois, poderia entrar para os Plinianos, grupo de jovens e crianças integralistas, num misto de escoteiros com Juventude Hitlerista — crianças de 6 anos já faziam juramentos de fidelidade ao chefe nacional, prometendo ser “soldadinho de Deus, da Pátria e da Família”.
Havia os casamentos integralistas, em que o noivo deveria obrigatoriamente usar a onipresente camisa verde, assim como a noiva (nesse caso, apenas na cerimônia civil). Sim, as mulheres também tinham o seu espaço: chamadas de blusas-verdes, de saias pretas ou brancas, correspondiam a aproximadamente um quinto da militância e eram ensinadas a se comportar como esposas e mães recatadas e do lar, para não deixarem a ameaça comunista se infiltrar em suas famílias.
Integralistas se informavam por jornais, revistas e programas de rádio integralistas, festejavam datas comemorativas integralistas e consumiam produtos que buscavam associar suas marcas ao integralismo para conseguir mais consumidores, da pomada Minancora às massas Aymoré. No Natal, quem entrava pelas chaminés integralistas não era o Papai Noel, essa criação ianque do capitalismo internacional materialista, mas um brasileiríssimo Vovô Índio. O integralismo acompanhava seu militante até a morte e além: os militantes eram enterrados em caixões cobertos com uma bandeira do sigma e, nos sepultamentos, os camisas-verdes e as blusas-verdes saudavam o companheiro que acabava de ser “transferido para a milícia do além”.
Em todos os rituais integralistas, do nascimento à morte, o nome e a figura do chefe nacional, Plínio Salgado, eram lembrados e reverenciados, como o líder supremo de quem todo poder emana e em seu nome deve ser exercido. Plínio era o único a quem os integralistas deveriam dirigir não um, mas três anauês, enquanto Deus era saudado com quatro, e apenas pelo próprio chefe nacional. Na prática, Salgado dividia o comando e a construção ideológica da AIB com Miguel Reale e Gustavo Barroso. Cada um dos três representava uma ala do integralismo. Plínio cuidava do lado mais carola, focada no conservadorismo católico, Reale pensava a organização do futuro Estado integralista e Barroso disseminava o antissemitismo.
Nem todos os integralistas concordavam com o ódio aos judeus, mas também não há notícia de que alguém tenha deixado o movimento por causa disso. Barroso, uma figura importante da cena cultural brasileira, foi o principal nome do antissemitismo no Brasil, tendo traduzido Os protocolos dos sábios de Sião, provavelmente a fake news mais duradoura da história, sobre um acordo secreto entre maçons e judeus pelo controle do planeta, e que, publicado no início do século XX, forneceu o template de todas as teorias da conspiração criadas nos anos seguintes, dos reptilianos ao Q-Anon. O próprio Barroso se valeu dessas ideias para escrever uma série de livros contando como os judeus secretamente comandavam a história do mundo e eram responsáveis por tudo de ruim que existia.
Os estudiosos costumam dizer que o antissemitismo de Barroso seria diferente daquele dos nazistas, já que o brasileiro nunca defendeu uma “solução final” para os judeus, mas, como os próprios seguidores de Hitler também não costumavam falar publicamente sobre exterminar os judeus em campos de concentração, é difícil saber o que poderia de fato ter acontecido com a comunidade judaica brasileira em um universo alternativo no qual os integralistas tivessem conseguido tomar o poder. Seja como for, é certo que ideias como as defendidas por Barroso ajudaram a criar o ambiente de ódio que acabaria desembocando no Holocausto.
Apesar do antissemitismo, nenhum dos ideólogos integralistas se mostrava explicitamente racista, já que no Brasil não seria possível criar um movimento de massas restrito aos brancos, como na Alemanha. Em vez disso, defendiam a miscigenação para a criação de uma “raça brasileira” e aceitavam militantes negros, “uma posição excepcional que separa a ideologia integralista da maioria dos fascismos europeus”, escreve João Fábio Bertonha em Integralismo: problemas, perspectivas e questões historiográficas. Entre os negros que fizeram parte ou manifestaram simpatia pelo integralismo, estão o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e o artista Abdias do Nascimento, que após abandonar a camisa verde se tornaria uma importante voz da militância antirracista de esquerda.
“Nos anos 20 e 30 já estava espalhada pelo País a ideia de que a identidade brasileira era uma mistura das três raças e o integralismo incorporou isso. Tem uma incorporação das pessoas dos negros, mas não da cultura afro. Vi jornais integralistas que atacavam as religiões africanas”, aponta Renato Alencar Dotta. Mais uma vez, era o nosso jeitinho brasileiro de ser fascista.
Na AIB, Gustavo Barroso comandava a Milícia Integralista, braço paramilitar do integralismo, que buscava usar a violência como arma de luta política, na linha dos esquadrões fascistas e das SA e SS nazistas, que, segundo documentos do próprio movimento, tinha “estrutura militarizada e muito bem organizada, com tropas de choque, um serviço de inteligência e treinamento paramilitar, incluindo uso de explosivos e luta corpo a corpo”, escreve Bertonha.
Grupos anarquistas e comunistas combatiam nas ruas a violência dos integralistas, a quem chamavam de “galinhas verdes”, em grupos como a Frente Única Antifascista e a Aliança Nacional Libertadora (ANL). Vários desses embates resultaram em mortes.
O mais violento desses confrontos ocorreu em 7 de outubro de 1934, na Praça da Sé, no centro de São Paulo, quando um desfile de integralistas se deparou com um grupo de antifascistas, que avançaram gritando “Anauê! Anauê! Prepare as pernas pra correr!”. Após quatro horas de confrontos e tiroteios, o embate terminou com seis mortos e mais de 50 feridos. Os antifascistas chamaram o acontecimento de “revoada dos galinhas verdes” e o Jornal do Povo, editado pelo jornalista e humorista Aparício Torelly, o Barão de Itararé, estampou na manchete do dia seguinte: “Um integralista não corre: voa”.
Para deixar o clima mais tenso, em novembro de 1935 os comunistas da ANL fizeram levantes em Natal, Recife e Rio de Janeiro para tentar tomar o poder. O episódio ficou conhecido como “intentona”, por só ter ficado na intenção. A Intentona Comunista nunca chegou perto de ameaçar o governo Getúlio, mas ajudou a alimentar a paranoia anticomunista e deu ao governo federal o pretexto para aprovar um estado de guerra, em abril de 1936, que deu mais poder ao presidente.
Os integralistas resolveram fazer diferente, aproveitando a brecha aberta pelo governo com a promessa de fazer eleições limpas, nas quais forças de oposição finalmente teriam chance de vencer. Isso fazia parte dos caminhos contraditórios que o País vinha adotando após a Revolução de 30, numa salada de medidas liberalizantes e autoritárias.
Por um lado, o governo instituiu em 1932 um Código Eleitoral que previa o voto secreto, o direito de voto às mulheres e uma Justiça Eleitoral independente. Uma Assembleia Constituinte aprovou a nova Constituição Federal, de caráter liberal, em 1934, e confirmou Getúlio na presidência da República, limitando seu mandato até 1938, quando ocorreriam eleições diretas para presidente. Por outro lado, o povo mal teve tempo de exercer os direitos e as garantias individuais previstos na nova Constituição, porque em 1935 o governo aprovou a Lei de Segurança Nacional, que não ficou conhecida como Lei Monstro à toa: a norma criou a censura a rádios, jornais e todo tipo de publicações e implantou várias restrições ao direito de associação, entre outras regras autoritárias.
Seja como for, a promessa de eleições era uma oportunidade que os integralistas não pretendiam deixar passar. Seguindo os exemplos dos seus parças de fascismo da Europa, que haviam chegado ao poder por meio do voto, os integralistas foram pelo mesmo caminho, tentando se aproveitar dos métodos democráticos para acabar com a própria democracia. Foi assim que, em 1935, a AIB se tornou um partido político e fez um rebranding da sua marca para tentar demonstrar que atuaria dentro das quatro linhas da Constituição. Entre outras medidas cosméticas, transformou a Milícia Integralista em Secretaria da Educação, mas sem mexer na natureza paramilitar do grupo.
Fosse pela revolução ou pelo voto, porém, os integralistas só pensavam em uma coisa. “Havia no integralismo correntes revolucionárias que defendiam o uso da força e outras que defendiam a via democrática, mas, uma vez no poder, a ideia era subverter e extinguir a democracia liberal”, explica Alexandre de Almeida, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador associado do Observatório da Extrema Direita e do Laboratório de História Política e Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
A estratégia eleitoral deu tão certo que 1936 ficou conhecido como “Ano Verde”, escreve Marilena Chauí em Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira: “Nas eleições municipais, os integralistas conseguiram 250 mil votos, elegendo 500 vereadores e 24 prefeitos”. Um desses vereadores era José Ferreira Alves Cyrillo, que, com apenas 470 votos, assumiu uma cadeira na Câmara paulistana, após a renúncia de João Ribeiro de Barros. Ele bem que haveria de ironizar, numa sessão em 3 de abril de 1937, o fato de alguém com uma proposta autoritária como ele ter chegado ao poder pelas vias democráticas: “Vossas Excelências são tão inábeis que fazem uma eleição dessas e eu me elejo”.
Um “galinha verde” na tribuna
José Cyrillo assumiu seu lugar na CMSP em 8 de agosto de 1936. Advogado de 24 anos, era o mais jovem dos vereadores. Como mandava o regimento da época, o novato teve de entrar no plenário acompanhado de uma comissão formada por outros dois parlamentares. Cyrillo tomou posse fazendo o juramento de praxe, sem fascistices. Assim que tomou assento, porém, fez questão de proclamar sua fidelidade ao integralismo e a Plínio Salgado:
“Ao Chefe Nacional, diante da vida e diante da morte, três anauês!”, saudou. As galerias do Palácio Trocadero, repletas de camisas-verdes, batucaram tambores e gritaram: “Anauê!”.
A cena irritou o presidente da Mesa Diretora, Machado de Campos, que reagiu: “Atenção! As galerias não podem se manifestar!”. Não seria a primeira vez que uma atitude de Cyrillo irritaria os colegas.
“Ao Chefe Nacional, diante da vida e diante da morte, três anauês!” José Cyrillo
Único representante da AIB na Câmara, Cyrillo destoava dos demais vereadores por ser o único não filiado a um dos dois partidos que dominavam o cenário político local naqueles tempos: o Partido Republicano Paulista, que lutava para recuperar a hegemonia perdida após a Revolução de 30, e o Partido Constitucionalista, que incluía entre seus membros dissidentes do PRP e ao qual pertencia o governador Armando de Salles Oliveira, que pretendia disputar as eleições presidenciais em 1938.
A disputa entre PRP e PC era apenas pelo poder, sem grandes divergências programáticas, já que ambos eram liberais, conservadores e anticomunistas. No plenário do Trocadero, a disputa ideológica se dava apenas entre todos os outros e Cyrillo, por ser o único que questionava o regime democrático liberal. Nessa guerra cultural, não seriam poucas as vezes em que os vereadores liberais se mostrariam pelo menos tão autoritários e preconceituosos (ou até mais) do que seu colega assumidamente fascista.
“José Cyrillo não media esforços para apresentar a visão do seu partido, nos mais variados temas em discussão”, observa o historiador Ubirajara de Farias Prestes Filho, doutor em História pela USP e secretário de Documentação da CMSP. Na maioria das vezes em que Cyrillo abria a boca no Palácio do Trocadero, era para fazer apartes atacando a democracia liberal, culpada de todos os males possíveis. Diante de uma discordância entre os vereadores de uma comissão, declarava: “Esse entrechoque é comum na liberal democracia”. Sobre uma denúncia de perseguição partidária contra servidores, soltou que “O mal da liberal-democracia é justamente esse: a existência de vários partidos. É por isso que pugnamos por um partido integral”.
Quando seus colegas debatiam o aumento dos preços dos gêneros de primeira necessidade, fez questão de dizer: “Nem é possível resolver essa situação com o regime liberal-democrático”. O assunto podia até ser o plantio de cana-de-açúcar no município, que lá vinha Cyrillo argumentar: “O único meio é mudar de regime”. Após uma dessas falas, o vereador Chagas da Costa reagiu: “É o estribilho de Vossa Excelência” — o jeito de indicar, na edulcorada linguagem parlamentar, o quanto a repetição dessas falas estava enchendo o saco dos colegas.
Outros apelavam para a ironia. Em 19 de setembro de 1936, Abrahão Ribeiro saiu-se com um trocadilho sobre o integralista: “O colega, jovem como é, está ainda, para atacar a liberal-democracia, um tanto verde”. Antes disso, na primeira vez em que Cyrillo pediu espaço para falar na tribuna, em 22 de agosto, o vereador Tenório de Brito, que havia se inscrito antes, não perdeu a chance de alfinetar: “Desejando o nobre vereador Sr. José Cyrillo usar da palavra, gostosamente cederei o meu lugar, como demonstração das vantagens do regime liberal”.
"O mal da liberal-democracia é justamente esse: a existência de vários partidos. É por isso que pugnamos por um partido integral" JOSÉ CYRILLO
Após a gentileza, o camisa-verde se dirigiu à tribuna e fez um longo discurso, interrompido a todo momento por outros parlamentares, que concluiu com “um vibrante anauê à Província de São Paulo”. Nessa fala, Cyrillo explicou como pretendia usar seu mandato para defender a superioridade do integralismo, “combatendo, com o vigor da minha mocidade, a liberal democracia e o comunismo”. Os dois sistemas se alimentavam um do outro, segundo Cyrillo, já que, ao ignorar as más condições de vida dos trabalhadores e privilegiar apenas uma pequena minoria de burgueses, a democracia abria espaço para a revolta dos anarquistas e comunistas: “A liberal democracia transformou o nosso país em uma colônia de banqueiros, esquecendo, muitas vezes, os interesses do povo, e só percebendo agora, com esse movimento comunista, que o Brasil está na agonia”.
Assumindo o papel de chato do rolê parlamentar, Cyrillo conseguia enunciar verdades incômodas sobre as falhas do regime político que seus colegas ignoravam e fazer denúncias mais precisas, sobre os problemas sociais, do que qualquer um deles. Afinal, o camisa-verde não estava mentindo quando se referiu às agruras enfrentadas pela classe trabalhadora e emendou com uma denúncia sobre o caráter autoritário da Lei Monstro: “As classes operárias têm sido esquecidas pelo Estado liberal democrático, se é que esse Estado existe, porque não compreendo o Estado liberal democrático com uma Lei de Segurança e com uma lei de estado de guerra”.
Os vereadores liberais tentavam contestar como podiam as afirmações incontestáveis do colega. Marrey Junior se viu na curiosa posição de defender para um fascista a legitimidade de medidas autoritárias: “Porque, dentro da liberal democracia, há também disciplina. Vossa Excelência está confundindo liberal democracia com anarquia”. E Thomaz Lessa saiu-se com uma afirmação surpreendentemente otimista sobre a realidade de então: “Vossa Excelência esquece-se de que o Brasil tem uma das legislações sociais mais adiantadas do mundo”.
Para além da vontade de expor a hipocrisia de um regime alegadamente democrático que usava e abusava de leis de exceção, é provável que Cyrillo tivesse outro motivo para atacar a Lei Monstro: o receio de que esse pau legislativo, que agora estava dando nos Chicos comunistas, bem poderia vir a dar em Franciscos integralistas — como de fato veio a acontecer. Esse temor ficou claro em 28 de novembro, quando, após Chagas da Costa declarar que “o estado de guerra é hoje contra os comunistas”, Cyrillo o corrigiu: “Contra os inimigos e muitas vezes contra os inimigos dos comunistas”.
Numa época em que as classes populares ainda tinham muito pouco espaço na política, apenas um parlamentar isolado como Cyrillo teria a manha de admitir que “o povo não tem voz ativa junto ao governo” e indagar se existiam “representantes dos operários dentro desta Câmara”. Diante da pergunta, Chagas da Costa ainda tentou uma saída: “Eu fui votado por operários”. Cyrillo não perdoou: “Onde está o operário, o representante profissional? Vossa Excelência esteve em fábricas, sabe as misérias dos operários nessas fábricas?”. E concluiu: “Vossa Excelência não pode saber quais as necessidades dos operários”.
Não havia outro vereador além de Cyrillo que descrevesse de um modo tão direto o sofrimento das classes populares, que parecia ignorado por outros parlamentares. “Quando as classes operárias gritam, no Estado liberal democrático, de desespero, de miséria, de dor e de fome…”, disse, para ser interrompido por inacreditáveis apartes de Chagas da Costa, que perguntou “Onde está a grita?” e acrescentou: “Não têm gritado”. Sem se incomodar, Cyrillo continuou: “Senhor presidente, não se vai procurar o mal para curá-lo. Não! Dão, como remédio, como preventivo, ou como cura completa, as patas dos cavalos e abrem-se as portas dos xadrezes”. O que era bem a descrição do que acontecia com os movimentos de reivindicação dos trabalhadores, presos pelos braços do Deops ou esmagados pela cavalaria da Força Pública.
Ao ouvir as referências a patas de cavalos e portas de xadrez contra os trabalhadores, Naclério Homem e Pereira de Queiroz responderam, dando risada, que esse tratamento era como “óleo de rícino”, comparando a violência policial com um remédio purgante de gosto amargo. Era mais um momento em que os liberais soavam mais fascistas do que o fascista-raiz.
“Certas críticas que Cyrillo dirigia à democracia daqueles tempos faziam sentido, como quando fala sobre o alcance da participação popular. Porém, ao invés de reivindicar mais abertura para as pessoas participarem das atividades políticas, a proposta integralista seguia a direção de maior fechamento e restrição ao processo democrático”, aponta o historiador Ubirajara.
Mais fascistas que o fascista
Cyrillo parecia se divertir ao explorar as contradições do liberalismo de seus colegas. “Mesmo entre os vereadores ditos liberais, havia aqueles que defendiam certas concessões a medidas de exceção mantidas pelo governo Vargas, sobretudo as que tinham como alvo grupos comunistas”, afirma Ubirajara.
Assim, quando Pereira de Queiroz e Chagas da Costa atacaram o integralismo, em 5 de setembro de 1936, por “escravizar a vontade de cada um à vontade do chefe único”, o seguidor de Plínio Salgado contra-argumentou que os liberais “têm a necessidade de estrangular as ideias que pregam” e “preferem governar antidemocraticamente sob a proteção da democracia”.
E foi além. Mesmo sendo visceralmente anticomunista, Cyrillo, em 10 de outubro, apontou a hipocrisia dos liberais que apoiavam a proibição do Partido Comunista do Brasil:
“Por que Vossas Excelências combatem a liberdade do comunismo?”.
As respostas revelaram como o liberalismo dos seus pares era restrito. “A liberdade do comunismo está fora da lei. Queremos a liberdade dentro da lei”, proclamou Abrahão Ribeiro. “A liberdade comunista é a liberdade das feras”, completou Naclério Homem.
Cyrillo também vivia sua própria contradição, a de ser um vereador eleito dentro do sistema político que ele combatia, algo que outros parlamentares volta e meia lembravam. Como quando Chagas da Costa lhe disse: “Tanto somos liberais, que Vossa Excelência ocupa uma cadeira nesta Câmara, por eleição do povo”. Ou da vez que Thomas Lessa apontou: “Vossa Excelência é um ilustre representante popular aqui na Câmara”. Diante dessas observações, o camisa-verde assumia a própria contradição saindo-se com uma profecia sombria: “A minha eleição é o suicídio do regime liberal democrático por meio do voto universal.”
"A minha eleição é o suicídio do regime liberal democrático por meio do voto universal" José Cyrillo
Se bem que, quando se tratava do desprezo pelas esquerdas, todos os vereadores podiam se abraçar e cantar juntos. Uma das poucas propostas de Cyrillo aprovadas com unanimidade foi um requerimento de “voto de pesar e saudade”, em 28 de novembro, pelos militares mortos durante os levantes da ANL em 1935, “vítimas do massacre comunista”, “pertencentes hoje à milícia do além”. Apesar do 7 a 1 sofrido pelos comunistas na Intentona, o vereador fez questão de afirmar que o inimigo ainda estava à espreita, já que o integralismo precisava dele para justificar sua existência. Num trecho muito representativo da retórica integralista, sentenciou: “O comunismo não morreu; está vivo, e não recuará; tentará passar sobre os cadáveres dos próprios companheiros para vencer a ideologia odienta de Lenine [Lênin]. Em nome desses que caíram empoçados em sangue, para salvar a honra e a dignidade da Pátria, nós, integralistas, juramos, auxiliados pela eterna luz do Senhor, comandante das Estrelas no Infinito, do Tempo e dos Espaços, dar a última gota de nosso sangue para salvar o triunfo esplêndido da grande nação brasileira”.
As vítimas da Intentona Comunista são até hoje relembradas em cerimônias das Forças Armadas brasileiras, que, curiosamente, não costumam fazer a mesma celebração em relação aos mortos na revolta dos integralistas — vamos falar disso daqui a pouco, sem spoilers.
Rinha de antissemitas
Outro momento marcante do integralismo na Câmara Municipal se deu quando o vereador Vicente de Azevedo, em 7 de agosto de 1937, fez um longo discurso contra Gustavo Barroso, repudiando o “monturo de ignomínias” e “calúnias contra São Paulo e contra os paulistas” que o ideólogo integralista vinha “assacando sobre a nossa terra e a nossa gente”. O que Barroso havia feito de tão terrível? Dito que João Ramalho, considerado um dos fundadores da cidade de São Paulo, era judeu.
Em seu discurso, Azevedo indicou que via a atribuição como uma ofensa, e das piores. “A mentira histórica de Barroso em relação a João Ramalho é o exemplo da sua maneira de agir em relação a personalidades do mais alto vulto no cenário paulista e nacional. Caracteres ilibados, católicos praticantes, talentos esplêndidos são por esse escritor atirados ao pântano esverdeado do inferno integralista”, disse.
Criticando as fontes e a metodologia usada por Barroso para chegar a essa afirmação sobre João Ramalho, presente no livro A história secreta do Brasil, Azevedo deixou claro que Barroso não tinha o mesmo rigor científico de pesquisadores mais sérios, como… os nazistas. “O movimento racista alemão não é levado a esmo, sem bases etnológicas”, elogiou.
Mais adiante, o vereador explicou por que a “acusação” de ascendência judia sobre João Ramalho era tão ofensiva. É que “quase todas as famílias paulistas” se orgulhavam de serem descendentes de Ramalho, esse herói de “excepcionais qualidades”, que havia legado “seu sangue generoso para a formação da raça dos bandeirantes”. Portanto, se o sangue de Ramalho fosse judeu, isso contaminaria a árvore genealógica de praticamente todas as famílias quatrocentonas de São Paulo. Azevedo terminou sua explicação pessoal comparando os métodos de Barroso aos dos comunistas e insinuando que o escritor antissemita é quem devia ter sangue judeu.
A resposta veio um mês depois, em 18 de setembro de 1937, quando José Cyrillo leu da tribuna uma carta enviada pelo próprio Barroso, em que o escritor, após dizer que o discurso de Azevedo havia sido “um mero ataque pessoal, que não merece resposta”, fez uma longa resposta reafirmando a qualidade de sua pesquisa histórica, chamando Vicente de “defensor de judeus” e questionando, com toda a civilidade esperada de um chefe de milícia fascista, se o vereador seria homem de falar tudo o que falou na cara dele: “[Azevedo] fez isso de longe, dentro do Conselho Municipal. Talvez, de perto, homem para homem, olhos nos olhos, titubeasse e não repetisse a injúria. Talvez que um dia nos encontremos”.
O antissemitismo era um tema de debate, considerado questão de opinião, o que hoje seria impensável. Só se torna algo considerado repulsivo após o fim da Segunda Guerra Mundial Renato Dotta
Nenhum dos demais vereadores demonstrou qualquer incômodo pelo espetáculo no plenário em que cada um dos parlamentares estava, na prática, disputando para ver qual era mais antissemita. “Na discussão que envolveu os vereadores em torno da figura de João Ramalho, fiquei impressionado como o debate priorizava a ‘honra’ dos paulistas e reforçava os estereótipos contra os judeus”, relata Ubirajara Prestes Filho, que recuperou o episódio num artigo escrito com Marília Gabriela Buonavita. “O alcance do antissemitismo era grande entre muitos formadores de opinião do período, o que mostra a circulação dessas ideias. Fica bem claro que o antissemitismo não era uma exclusividade do regime nazista, mas estava presente em muitos outros contextos”, afirma.
É que na época, explica Renato Dotta, o ódio aos judeus não era considerado preconceito, mas um assunto para discussão, com gente contra e a favor. “O antissemitismo era um tema de debate, considerado questão de opinião, o que hoje seria impensável. Só se torna algo considerado repulsivo após o fim da Segunda Guerra Mundial”, esclarece.
O golpe tá aí
Debates como esses e outros, pelas tribunas afora de todas as casas legislativas do País, estavam prestes a serem silenciados — e com a colaboração decisiva dos integralistas e seu dom para invocar o onipresente fantasma do comunismo.
Depois que o Congresso Nacional se recusou a renovar o estado de guerra que dava poderes extraordinários a Getúlio Vargas, o governo anunciou na Rádio Nacional, em 30 de setembro de 1937, uma descoberta que justificaria a volta urgente da lei de exceção: um ambicioso projeto de revolução comunista, chamado Plano Cohen, que previa incêndios em prédios públicos, saques, depredações e assassinatos de autoridades.
Terrível? Seria se fosse. O “plano” não passava de um exercício de imaginação criado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, do serviço secreto do Exército, que nas horas vagas atuava como “Chefe do Estado-Maior” da Milícia Integralista — muitos camisas-verdes eram militares, especialmente da Marinha.
Acontece que Plínio Salgado, em campanha para as eleições presidenciais, marcadas para janeiro de 1938, havia pedido a Mourão um texto sobre as terríveis táticas usadas pelos comunistas, para insuflar seus apoiadores com um pouco mais da boa e velha paranoia.
Mourão obedeceu às ordens, mas entregou um texto tão exagerado, até para os padrões integralistas, que Plínio o mandou jogar fora, pensando que ninguém levaria uma bobagem daquelas a sério. Orgulhoso do que tinha escrito, porém, Mourão mostrou o texto para um colega militar, que o mostrou a outro, e a outro, até que foi parar nas mãos do Ministro da Guerra, o general Góes Monteiro, que encontrou naquele amontoado de delírios o pretexto ideal que o governo vinha buscando para desferir um golpe de Estado.
Quando o “plano Cohen” foi trazido a público pelo governo, a cúpula integralista sabia que se tratava de uma farsa, mas ficou quietinha. Mais uma vez, a sólida formação católica de Plínio Salgado não impediu o chefe nacional do integralismo de ser cúmplice de uma farsa. Numa entrevista concedida em 1969 para Hélgio Trindade, Plínio declarou que ficou em silêncio porque não queria expor a imagem das Forças Armadas como mentirosas. “Eu não podia desmoralizar a única força organizada que nós ainda possuíamos para combater o comunismo”, disse.
O fato é que o golpe de Getúlio Vargas estava aí e os integralistas caíram porque quiseram fazer parte dele, iludidos pela promessa do presidente de que, em troca do apoio para sua aventura autoritária, os camisas-verdes iriam fazer parte do novo governo, com o próprio Salgado chefiando o Ministério da Educação.
"Eu não podia desmoralizar a única força organizada que nós ainda possuíamos para combater o comunismo" Plínio Salgado
Sinais do acordo de Vargas com os integralistas chegaram ao plenário do Palácio do Trocadero, onde José Cyrillo mudou totalmente de atitude em relação às críticas que fizera anteriormente sobre o uso de leis de exceção pelo governo. Dessa vez, o camisa-verde foi só elogios à aprovação do novo estado de guerra na esteira da farsa do plano Cohen, em um requerimento no qual congratulou Getúlio pelo “gesto heroico e patriótico, pedindo a decretação do estado de guerra, em defesa do Brasil, contra os vermelhos comunistas que procuravam dissolver os nossos lares e as nossas instituições”.
Temerosos diante do que as ações do governo federal indicavam, os demais vereadores substituíram o requerimento de Cyrillo por uma moção bem menos entusiasmada, em que basicamente a CMSP pedia às Forças Armadas para, por favor, não participarem de um golpe de Estado. No texto, a Câmara “afirma, neste momento delicado da vida brasileira, sua fé na democracia, sua confiança nas forças armadas – guarda da instituição – e a sua disposição, que é a de todos os brasileiros amantes de sua pátria de colaborar com patriotismo e desinteresse na defesa das instituições e do Brasil”.
O apelo não foi ouvido. Em 9 de novembro de 1937, ocorreu a última sessão do Palácio do Trocadero. No dia seguinte, Getúlio Vargas determinou o fechamento de todas as casas legislativas e impôs uma nova Constituição, “atendendo ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente” (sim, esse era o texto constitucional). A CMSP não voltaria a abrir as portas pelos próximos 11 anos. Começava a ditadura do Estado Novo.
…deu tudo errado
Quem poderia imaginar que, uma vez estabelecido na presidência da República com poder absoluto, Getúlio Vargas chegaria à conclusão de que um bando armado de fascistas que obedeciam cegamente a um líder supremo não seria um aliado confiável? Bom, Plínio Salgado não imaginou e parece ter ficado genuinamente surpreso quando recebeu um ghosting do presidente, que, além de não lhe dar qualquer ministério, ainda determinou o fechamento da AIB.
Os integralistas ficaram verdes de raiva. Na noite de 10 de maio de 1938, articularam uma tentativa de golpe de Estado que chegou perigosamente perto de dar certo — ou, pelo menos, muito mais perto do que os comunistas de 1935 jamais haviam chegado. Graças à colaboração de militares integralistas, os camisas-verdes tomaram o Palácio Guanabara, residência do presidente da República, e encurralaram Getúlio Vargas. O presidente, porém, manteve acesso a uma linha telefônica, que usou para coordenar a resistência. Em poucas horas, o golpe foi debelado e os revoltosos que não fugiram acabaram fuzilados ali mesmo, nos jardins do Palácio. Logo depois, cerca de 1.500 integralistas foram presos, inclusive Plínio Salgado.
O integralismo nunca mais voltaria a ter a mesma força política. Gustavo Barroso e Miguel Reale aceitaram cargos no governo e deixaram o movimento. Ao sair da prisão, agora transformado em líder solitário do movimento, Plínio Salgado partiu para Portugal. Lá, o nacionalista que vivia agarrado a uma bandeira brasileira e falando o tempo todo em “Deus, pátria e família” tentou se aliar ao governo nazista da Alemanha, inimiga declarada do Brasil naquela altura da Segunda Guerra Mundial. Em encontros secretos com representantes do governo alemão, Plínio ofereceu se tornar um representante dos nazistas no Brasil caso os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) vencessem a guerra.
A conspiração de Plínio com os nazistas acabou exposta pelo governo português e o integralista achou melhor abandonar temporariamente a atividade política, dedicando-se a fazer palestras sobre Jesus Cristo.
Em 1945, o Eixo foi derrotado e Benito Mussolini, o homem que tanto havia inspirado Plínio ao recebê-lo para um encontro no Palazzo Venezia, terminou morto pela resistência antifascista italiana e pendurado de cabeça para baixo na Piazza Loreto, em Milão. Após arrastar o mundo para a Segunda Guerra Mundial e provocar toda sorte de horrores, os fascismos saíram de moda por todo o mundo, que passou a considerar que a boa e velha democracia liberal talvez não fosse tão ruim assim.
Essa onda liberalizante chegou ao Brasil, onde a ditadura do Estado Novo acabou ainda em 1945. De olho nos novos tempos, Plínio voltou ao País e criou outro partido. Nessa refundação do integralismo, deu à nova legenda um nome genérico, Partido da Representação Popular (PRP), e buscou evitar tudo o que pudesse lembrar suas origens fascistas: sigma, uniformes, anauês, antissemitismo, milícias armadas e multidões em marcha foram deixados de lado. O PRP buscou se estabelecer como antiliberal e anticomunista, mas democrático, ainda que Plínio continuasse a acreditar nas mesmas ideias de antes — tanto que os estudiosos do movimento entendem que essa fase merece ser chamada de “integralista” tanto quanto o período mais colorido e violento dos anos 30.
Em sua nova fase, o integralismo continuou a se apoiar no anticomunismo, agora revitalizado com a guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética. O PRP se orgulhava de ser o único partido em que não entrava comunista — é que, como o PCB continuava na ilegalidade, era comum que comunistas se infiltrassem em outros partidos, inclusive de direita, como na União Democrática Nacional (UDN). Pragmático, o PRP fez alianças também ao centro e até à esquerda, com Leonel Brizola. Nunca deixou de ser um partido nanico, mas pelo menos em um momento teve um papel relevante na história nacional: em 1955, quando a pequena candidatura presidencial de Plínio Salgado acabou roubando alguns votos de outro candidato conservador, Juarez Távora, da UDN, que acabaram sendo o suficiente para garantir a eleição de Juscelino Kubitschek.
O PRP se portou, na maior parte do tempo, como respeitador da ordem democrática. Menos em 1964, quando apoiou o golpe que deu origem a 21 anos de ditadura militar — mas, até aí, os partidos liberais também fizeram o mesmo.
Por sinal, um nome ligado ao integralismo teve papel central nos dois momentos do século 20 em que a democracia brasileira foi suprimida. O general Olympio Mourão Filho, que nos tempos de capitão havia bolado o Plano Cohen, voltou à cena golpista na madrugada de 31 de março de 1964, quando, de pijama e roupão, deu início às movimentações de seis mil militares rebelados sob seu comando, o que precipitou a derrubada do presidente João Goulart, também falsamente acusado de planejar um golpe comunista (sempre isso).
Que fim levaram
Plínio Salgado morreu em 1975, e com ele o integralismo. Na ausência do líder que havia conduzido o movimento por tanto tempo, surgiu uma série de grupos pequenos e descoordenados, disputando entre si o legado integralista. Essa fase ficou conhecida como neointegralismo, “um espaço conflituoso e repleto de disputas por poderes e representatividade”, na definição de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto em O Fascismo em Camisas Verdes.
Pequenos e divididos, os grupos neointegralistas se limitaram, na maior parte do tempo, a fazer muita discussão pela internet e a se aproximar de alguns partidos, como o Prona e o PRTB. Em 2022, um simpatizante do sigma, Padre Kelmon, chegou a se lançar candidato à Presidência da República, mas sem fazer referência ao integralismo. O único momento recente em que os camisas-verdes chamaram atenção do grande público foi quando um grupo de integralistas jogou dois coquetéis molotov contra a sede da produtora do grupo de humor Porta dos Fundos, na noite de Natal de 2019, por causa de um vídeo considerado desrespeitoso à figura de Cristo — e isso diz tudo sobre o alcance do neointegralismo neste século.
Algumas das atuais facções neointegralistas procuram reescrever a história e negar as ligações dos camisas-verdes com o fascismo, por causa da fama ruim que a ideologia adquiriu após a Segunda Guerra. Tão ruim, por sinal, que hoje é repudiada publicamente pela Câmara Municipal de São Paulo, que em 6 de novembro deste ano aprovou a lei 18.020/2023, que criou o Dia do Combate ao Antissemitismo e Fascismo, a partir de projeto dos vereadores Fabio Riva (PSDB), Cris Monteiro (Novo), Milton Leite (União), Fernando Holiday (PL), Rute Costa (PSDB), Atílio Francisco (Republicanos), Adriano Santos (PSB) e Gilson Barreto (PSDB). A data é celebrada em 9 de novembro, em referência à Noite dos Cristais, em 1938, quando os nazistas promoveram uma série de ataques contra a comunidade judaica na Alemanha.
Mais de 90 anos após a leitura do Manifesto de Outubro no Theatro Municipal, o que resta hoje do integralismo? Fizemos essa pergunta para os dois especialistas no tema ouvidos pela reportagem e as respostas foram divergentes. Para Renato Alencar Dotta, “o integralismo é uma corrente que acaba em si mesma” e que não deixou influência marcante, tornando-se apenas “um pequeno afluente” entre as tendências que desembocaram no ambiente político de hoje: “A extrema-direita atual dialoga muito mais com outras fontes, como a ditadura militar, do que com o integralismo”.
"A extrema-direita atual dialoga muito mais com outras fontes, como a ditadura militar, do que com o integralismo" Renato Alencar Dotta
Já Alexandre de Almeida indica uma importante herança no plano simbólico: “O integralismo não tem um legado material, mas é relevante até hoje por ter feito um trabalho metapolítico muito eficiente e ajudado a manter vivas algumas expressões do conservadorismo brasileiro, como o bordão ‘Deus, pátria e família’, muito sedutor e claro, que está na boca da direita hoje, além da construção do anticomunismo, que também é uma das expressões do conservadorismo brasileiro do tempo presente”.
Quanto a José Cyrillo, o combativo camisa-verde da CMSP em 1936 e 1937, sabe-se que abandonou o integralismo, mas ainda seguiu na política por uns poucos anos. Quando a Câmara reabriu as portas, em 1948, no Palacete Prates, Cyrillo estava de volta, como vereador eleito pelo centrista PSD, com 1.619 votos. Mais articulado politicamente do que antes, chegou a ser vice-presidente da Casa. Ficou até o final do mandato, em 1951, e não participou de mais eleições. Morreu em 1989, aos 77 anos.
Em 2013, os mandatos de Cyrillo e outros 19 vereadores cassados em 1937 foram simbolicamente restituídos, junto com os de outros vereadores vitimados por ações autoritárias ao longo do século 20. Proposta e aprovada pela CMSP, a restituição devolveu também os mandatos de 19 impedidos pela Justiça Eleitoral de tomarem posse, em 1947, pela acusação de serem comunistas (sempre isso), e de outros três cassados pela ditadura militar iniciada em 1964.
Hoje, quem entra no Palácio Anchieta, atual sede da Câmara Municipal de São Paulo, encontra o nome de José Cyrillo, ao lado de outros 41 vereadores, em uma placa de metal instalada no andar térreo. Resgatado, reparado e preservado pela mesma democracia que ele, um dia, sonhou destruir.
Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br
Saiba mais
Anais da Câmara Municipal de São Paulo
ANNAES DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1936. São Paulo: [s.n.], 1936. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/static/atas_anais_cmsp/anadig/Volumes/an1936.pdf
ANNAES DA CAMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO, 1937. São Paulo: [s.n.], v. 2, 1937. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/static/atas_anais_cmsp/anadig/Volumes/an1937.pdf
Livros
BERTONHA, João Fábio. Fascismo, nazismo, integralismo. São Paulo: Ática, 2003.
BERTONHA, João Fábio. Integralismo: problemas, perspectivas e questões historiográficas. Maringá: Eduem, 2014.
CARNEIRO Maria Luiza Tucci; CROCI, Federico (org.). Tempos de Fascismos: Ideologia, Intolerância, Imaginário. São Paulo: Edusp, 2010.
CHAUÍ, Marilena. Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira, In: CHAUÍ, M & FRANCO, M. S. C. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro: CEDEC/Paz e Terra, 1978.
DOTTA, Renato Alencar. Elementos Verdes: Os Integralistas na Mira do DOPS (1938-1981). São Paulo: Editora Todas as Musas, 2021.
ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. São Paulo: Editora Record, 2018.
GONÇALVES, Leandro Pereira; CALDEIRA NETO, Odilon. O Fascismo em Camisas Verdes. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020.
PRESTES, Ubirajara de Farias; BUONAVITA, Marília Gabriela. O Debate Político na Câmara Municipal de São Paulo em 1936 e 1937: o integralismo e a liberal-democracia. In: Paulistânia Eleitoral: Ensaios, Memórias, Imagens. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. São Paulo: Difel, 1979.
Podcasts
HISTÓRIA FM 019: Integralismo: das origens ao neofascismo do século XXI. Entrevistador: Icles Rodrigues. Entrevistado: Odilon Caldeira Neto. Leitura ObrigaHISTÓRIA, 13 jan. 2020.
LeRMOT – Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição: Integralismo e neointegralismo. Uma conversa com Leandro Gonçalves Pereira e Odilon Caldeira Neto. Entrevistador: Rodrigo Coppe. Entrevistados: Leandro Gonçalves Pereira e Odilon Caldeira Neto. LeRMOT, ago. 2020.
Site
Atlas Histórico do Brasil – Período Vargas. Fundação Getulio Vargas.